Território Aduaneiro

Onde fica o Direito Aduaneiro na discussão sobre o THC2?

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

9 de agosto de 2022, 8h03

Ao longo dois últimos anos, grande destaque tem sido dado às discussões e reviravoltas envolvendo a cobrança da taxa sobre o serviço de segregação e entrega (SSE), também chamada de THC2 — visto ser um desdobramento ou continuação do serviço cobrado por meio da capatazia, que em inglês é denominada de Terminal Handling Charge (THC).

Spacca
A título de curiosidade, entre 2020 e 2022, apenas no ConJur, foram publicados mais de oito artigos sobre o tema. Isso se deve ao fato de que a legalidade da referida taxa já foi objeto de análise por diversos Poderes e instituições governamentais, sendo alvo de decisões emanadas pelo Judiciário, pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e até mesmo pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) [1].

Diante disso, poderia o leitor se perguntar: "Por que mais um artigo? O que restou inexplorado depois de tanta discussão?"

Ocorre que, em todas as análises feitas — processuais e acadêmicas (que tivemos acesso) — a discussão sobre a legitimidade da cobrança do THC2 gira em torno da existência de pagamento em duplicidade — uma vez que a capatazia já seria taxa voltada à remunerar tais custos e serviços — e que seria indevida pela ausência de análise de impacto regulatório e/ou provas que determinassem não se tratar de prática anticompetitiva.

Em outras palavras, por ser uma taxa cobrada por terminais portuários em relação aos seus usuários, a abordagem das análises existentes é feita a partir do direito privado e, sob tal perspectiva, tem a livre concorrência e os limites do poder regulatório estatal como pontos centrais.

O que parece restar esquecido é que se trata de taxa cobrada por operadores portuários, na qualidade de concessionários da União (sujeito ativo), do importador (sujeito passivo) e no contexto do despacho aduaneiro, sendo esta parte do que se chamará de custo de importação. Diante de tais características e circunstâncias, não resta dúvida que, apesar de não ter sido dado espaço ao Direito Aduaneiro e a seus especialistas no debate, trata-se de típica taxa aduaneira e que precisa ser analisada a partir desse prisma.

Feito este esclarecimento, o que se propõe no presente artigo é explorar a temática da legalidade da cobrança do THC2 a partir das normas internacionais e nacionais que disciplinam e direcionam as taxas aduaneiras, ao invés da perspectiva concorrencial que vem prevalecendo até então.

Para tanto, deve-se iniciar a análise tecendo alguns esclarecimentos conceituais e contextuais.

O THC2 é taxa cobrada pelos terminais pelo serviço de segregação e entrega dos contêineres aos recintos alfandegados independentes (terminais retroportuários, portos secos e Clias) e se destina a situações em que o importador não faz a armazenagem da carga dentro do terminal molhado (de contêineres), solicitando que ela seja transferida a outro recinto. Na visão dos terminais portuários, os serviços de segregação e entrega para que o importador possa mover a carga até os recintos fora do porto organizado geram custos extras, sendo a cobrança necessária, fato contestado pelos importadores, que alegam que a taxa seria abusiva e utilizada como forma de reserva de mercado.

Entre as idas e vindas da discussão — bastante acalorada e desorganizada, visto que levada a diferentes instâncias e órgãos quase que simultaneamente —, restou decido pela necessidade de que a Antaq, autoridade competente para regulamentar o tema, emitisse norma que guiasse a prática e impusesse limites à cobrança da taxa. Isso levou à publicação da Resolução Normativa (RN) Antaq nº 34/2019.

Essa RN — posteriormente substituída pela RN Antaq nº 72/2022 — além de buscar clarificar os conceitos por trás do SSE [2] e do THC [3], teve como função legalizar a cobrança do THC2 dentro de limites pré-definidos, os quais foram fixados em consonância com seu artigo 5º, de forma a permitir que os serviços não contemplados no box rate [4] poderão ser livremente negociados, desde que atentem para condições comerciais e valores máximos estipulados pela Antaq [5].

Considerando o conteúdo da norma, percebe-se que o THC2, apesar de ser taxa de natureza aduaneira, foi tratada apenas do ponto de vista regulatório-concorrencial, sob o qual prevaleceu o entendimento de que o mero estabelecimento de limites máximos de cobrança em tabela imposta pela Antaq, acompanhado do dever de publicidade das cobranças de forma antecipada aos usuários/contribuintes, seria suficiente para garantir sua adequação e legalidade.

Avaliando as decisões proferidas por todos os órgãos citados anteriormente, verifica-se que nenhuma sequer trouxe à discussão as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), de modo que os critérios da referibilidade e, principalmente, da relação entre o preço e custo do serviço prestado não foram utilizados como fundamento decisório. Do contrário, não se teria como solução inicial a imposição de preço máximo, visto que isto contraria diretamente a lógica imposta pelas normas multilaterais assinadas e ratificadas pelo Brasil.

Ademais, ainda que a realização de análises de impacto regulatório seja desejável e vise estimular políticas governamentais mais sadias e alinhadas às práticas de mercado, sua utilidade no presente caso é questionável, visto que a premissa que guiou o estudo do caso é, a nosso ver, falha.

Em junho do presente ano (2022), o tema ganhou novo episódio com decisão do plenário do TCU, por unanimidade, que anulou todos os dispositivos da Resolução Antaq nº 72/2022 que dizem respeito à possibilidade de cobrança da THC2 [6]. Na visão do relator, Min. Vital do Rêgo, a Resolução nº 72/2022, após dez anos da Resolução nº 2.389/2012, "foi uma tentativa de dirimir a controvérsia", contudo, "não foi feliz na busca pela pacificação do assunto".

O referido acórdão destaca como razão de decidir o fato de que o THC seria devido apenas quando o importador opta por armazenar sua carga fora do terminal portuário, não existindo quando a carga passasse pelos mesmos trâmites para que fosse armazenada no local. Portanto, a cobrança não se daria pela existência de serviço potencial ou efetivamente prestado, mas pela não permanência da carga no armazém do depositário, tratando-se de valor devido em razão de problemas de origem concorrencial.

Nesse contexto, o TCU pontuou que, consequentemente, há aumentos de custos para o consumidor final e ainda, que não há registro de cobrança de taxa idêntica em sistema portuário de nenhum outro país, sendo certo que não há como expressar os ganhos econômicos.

Entende-se que tais análises são úteis e relevantes ao caso vertente, mas buscam embasar a ilegalidade da exação em questões complexas e abstratas, quando a questão pode e deve ser resolvida pela simples e direta aplicação de lei aduaneira — no caso, o Gatt.

Desde o nascimento do sistema multilateral de comércio, por meio da assinatura do Gatt, em 1947, existe um esforço coletivo para a redução das barreiras ao comércio internacional, tendo sido convencionado que a única forma de protecionismo permitida seria a imposição de tarifas, desde de que limitadas aos valores negociados no âmbito do acordo e em consonância com as diretrizes do seu Artigo II.

Assim, considerando que a utilização indiscriminada de taxas e encargos geraria distorções e barreiras [7] às importações e às exportações de bens, levando inclusive à evasão dos compromissos tarifários assumidos pelos Estados e comprometendo o nível negociado de acesso a mercados, a regulamentação e restrição a esses instrumentos tornou-se questão imprescindível ao devido funcionamento do sistema multilateral.

O Gatt, internalizado pelo Brasil e inserido no âmbito do ordenamento jurídico nacional inicialmente por meio da Lei nº 313/48 (Gatt/47) e, posteriormente, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), por meio do Decreto nº 1.355/94 (Gatt/94) —, dispõe em seu artigo II:2(c) o direito das partes signatárias em aplicar taxas e encargos sobre às operações de comércio exterior, desde que estes "guardem proporção com os custos dos serviços prestados".

Em tempos mais recentes, a mesma preocupação levou os membros da OMC a reforçarem tal regra por meio do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), promulgado, no Brasil, por meio do Decreto nº 9.326/2018 e que, de forma muito semelhante ao Gatt, traz em seu artigo 6º a obrigação de que taxas e encargos sobre comércio exterior sejam "limitadas ao custo aproximado dos serviços prestados ou relacionados com a operação de importação ou exportação específica" e que não sejam impostos sobre operações específicas no sentido de criar discriminações.

Em resumo, o quadro normativo traçado pelas obrigações da OMC para as taxas aduaneiras é que elas devem obedecer o que, no direito interno, chamamos de Teoria da Equivalência, segundo a qual o contribuinte deve responder e arcar com o gasto que gerou ao Estado — ou particular que exerça atividade estatal por concessão —, impedindo que haja livre arbitramento de preços [8].

Ora, esclarecidos tais limites, os quais restam internalizados no ordenamento brasileiro sob o status de lei ordinária, verifica-se que a discussão travada no âmbito do Judiciário, TCU, Cade e Antaq sobre o tema são prescindíveis. Isto porque, muito antes de ponderar o impacto regulatório ou de arbitrar o que seriam valor máximos considerados adequados, caberia aos envolvidos duas simples avaliações: (1) verificar se o THC2 é um serviço que atende aos requisitos do artigo 145, II, da CF e, (2) quantificar o custo do serviço a fim de constatar se os valores cobrados à título da referida taxa guardam proporção com este e, portanto, se cumprem a regra determinada no Gatt e no AFC.

A Constituição, acompanhada pelo CTN [9], estabelecem que taxas têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

No caso do THC2, de partida, já se verifica que o serviço público divisível que é utilizado não é específico, uma vez que só é exigido do importador quando este opte pela armazenagem fora do porto organizado. Do contrário, o serviço — ainda que existente — não gera qualquer tipo de custo adicional que gere cobrança do usuário. Portanto, não resta atendida a primeira — e essencial — condição para a cobrança de qualquer taxa, seja ela aduaneira ou de qualquer outra natureza.

Da mesma forma, ainda que não tenha sido realizado estudo sobre o custo efetivo do SSE, resta claro que os valores que vêm sendo cobrados são significativos e desproporcionais ao tipo de atividade exigida do operador portuário, o que igualmente indica o não cumprimento da segunda condição.

Do exposto, cabe concluir que a decisão do TCU de junho deste ano, seja qual o seu fundamento legal, é notícia positiva aos importadores e à manutenção do status de cumprimento das normas da OMC pelo Brasil.

O que se espera, em relação a este e tantos outros casos afeitos à área aduaneira, é que empresas, especialistas e julgadores enfrentem os temas levando em consideração o amplo leque de compromissos internacionais firmados pelo Brasil e que delimitam de forma taxativa até onde as normas e regulamentos nacionais podem ir. Do contrário, o Direito Aduaneiro continuará sendo indevidamente ofuscado por outros ramos e a segurança jurídica dos envolvidos restará prejudicada.

 


[1] No que concerne à análise do Cade sobre a questão, destacam-se os seguintes processos: PA 08700.005418/2017-84, rel. cons. Paulo Burnier da Silveira, julg. 08/5/2019; RV 08700.005723/2018-57, rel. cons. Cristiane Alkmin Schmidt; PA 08012.001518/2006-37, rel. cons. Paulo Burnier da Silveira, julg. 8/8/2018; PA 08012,003824/2002-84, rel. cons. Gilvandro Vasconcelos Coelho de Araújo, julg. 4/2/2016; e PA 08012.007443/1999-17, rel. cons. Luiz Carlos Prado, voto-vista cons. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 27/4/2005.

[2] De acordo com o inciso IX do art. 2º da RN Antaq nº 34/3019, o Serviço de Segregação e Entrega de contêineres (SSE) refere-se ao "preço cobrado, na importação, pelo serviço de movimentação das cargas entre a pilha no pátio e o portão do terminal portuário, pelo gerenciamento de riscos de cargas perigosas, pelo cadastramento de empresas ou pessoas, pela permanência de veículos para retirada, pela liberação de documentos ou circulação de prepostos, pela remoção da carga da pilha na ordem ou na disposição em que se encontra e pelo posicionamento da carga no veículo do importador ou do seu representante".

[3] De acordo com o inciso X do art. 2º da RN ANTAQ n. 34/3019,a Taxa de Movimentação no Terminal (Terminal Handling Charge – THC) refere-se ao "preço cobrado pelos serviços de movimentação de cargas entre o portão do terminal portuário e o costado da embarcação, incluída a guarda transitória das cargas pelo prazo contratado entre o transportador marítimo, ou seu representante, e instalação portuária ou operador portuário, no caso da exportação, ou entre o costado da embarcação e sua colocação na pilha do terminal portuário no caso da importação".

[4] Box rate é a tarifa cobrada pelo serviço de movimentação de cargas entre o portão de um terminal portuário e o porão da embarcação e vice versa.

[5] Art. 5º da RN Antaq nº 34/3019 dispõe que "Os serviços não contemplados no Box Rate e os serviços de armazenagem, quando demandados ou requisitados pelos clientes ou usuários do terminal sob a responsabilidade da instalação portuária ou dos operadores portuários, obedecerão às condições de prestação e remuneração livremente negociadas, devendo os valores máximos serem previamente divulgados em tabelas de preços, observadas as condições comerciais estipuladas no contrato de arrendamento e nas normas da Antaq, vedadas as práticas de preços abusivos ou lesivos à concorrência".

[6] TCU. Acórdão nº 1448/2022. Processo nº TC 021.408/2019-0. Plenário. Rel. min. Vital do Rêgo. Dj 22/6/2022.

[7] De acordo com a noção geral que acompanha as normas da OMC, entende-se por distorção ou barreira ao comércio qualquer medida que implique tratamento discriminatório entre produtos importados e nacionais de forma não autorizada — ou seja, além do imposto de importação ou das exceções contidas nos artigos XX e XXI do Gatt. Tal tratamento, menos favorável, pode ser verificado em relação a medidas que afetem a venda de um produto estrangeiro no mercado interno em termos de oferta, preço, distribuição, transporte, etc.

[8] Sobre a Teoria da Equivalência e sua contraparte, a Teoria do Benefício, ver DANIEL NETO, Carlos Augusto ; PINHEIRO, H. . Igualdade e equivalência nas taxas e seus parâmetros de controle na jurisprudência do STF. In: FREITAS, Leonardo B.; COSTA, Simon R.; MARTINS, Rafael L.. (Org.). Direito e finanças públicas nos 30 anos da constituição: experiências e desafios nos campos do direito tributário e financeiro. 1ed. Florianópolis: Tirant lo blanch, 2018, v. 8, p. 341-364.

[9] Art. 77 do CTN.

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    é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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