Opinião

Problema dos nomes dos candidatos militares

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9 de agosto de 2022, 15h09

Desde seus primórdios, as civilizações se organizaram pelo critério da hierarquia. A verticalização hierárquica marcou a instituição familiar, as instituições religiosas, as relações de trabalho e a organização político-estatal. À luz da ideia de hierarquia, cada um sabe qual é o seu status na escala de mando/submissão. Como sustentam Carl Sagan e Ann Druyan [1], sem eliminar abusos, bem ou mal, a "pax dominatoris", substituindo a lógica do combate físico por métodos institucionais de solução de disputas, mostrou-se relativamente útil como mecanismo de sobrevivência da nossa espécie.

Contudo, desde as revoluções liberais do século 18, a vida civil nas democracias passou a pressupor confronto de ideias, persuasão e deliberação, em ambiente horizontal de igualdade e liberdade. Desde então, ao menos para a vida política vem se reduzindo a importância do pensamento autoritário que caracterizou a precedente história da civilização, o que vem permitindo a exteriorização de descontentamentos outrora emudecidos pela "pax dominatoris". "Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso" [2], dizia Hannah Arendt.

Ao revelar em 1923 o caráter iliberal do fascismo no artigo "Forza e consenso", Benito Mussolini deplorou as dificuldades do liberalismo italiano de lidar com descontentamentos gerados por medidas governamentais. Para Mussolini, o liberalismo retiraria a força do Estado em nome de "teorias antivitais", de modo que o governo estaria sempre à mercê do primeiro grupo organizado a derrubá-lo. Buscando o retorno às antigas ordens políticas de dominação/submissão, e em substituição ao ideal de liberdade que via como desgastado, ele propôs a tríade "ordine, gerarchia, disciplina" como slogan capaz de exercer fascínio maior em termos de organização política [3].

Apesar de fracassado o projeto iliberal fascista, nem por isso a tríade "ordem, hierarquia e disciplina" foi extirpada como método de organização de todas as esferas das sociedades democráticas e liberais. Se no âmbito político a relevância da tríade vem minguando, o pensamento verticalizante por ela substancializado continua sendo pujante fator organizacional das famílias, da religião institucionalizada e das forças armadas.

No regime político brasileiro instituído pela Constituição de 1988, coexistem esquemas organizacionais horizontais e verticais. A hierarquia e a disciplina seguem fatores organizacionais básicos das Polícias Militares e dos corpos de bombeiros militares (artigo 42) e das Forças Armadas (artigo 142). Por outro lado, a vida civil articula-se em torno dos vetores liberais do pluralismo político (artigo 1º, V), da liberdade de expressão (artigos 5º, VIII, IX e 220), do voto igualitário para todos (artigo 14) e do pluripartidarismo (artigo 17).

Contudo, a verticalização militar e horizontalização civil vêm enfrentando novos desafios no Brasil, a julgar pelo crescimento da participação como candidatos a cargos eletivos de militares.

Como aponta William Nozaki [4], de 2018 para 2020, o número de militares cedidos para cargos civis federais saltou de 2765 para 615 Segundo o autor, os militares passaram a marcar "presença intensa também em áreas-meio, de gestão, em diversos ministérios, tais como planejamento, orçamento, licitação, logística, projeto e comunicação".

Na mesma linha, levantamento de Jean-Philip Stuck [5] mostrou acréscimo na participação de militares da ativa ou da reserva nas eleições de 2018 na condição de candidatos. Na comparação com as eleições de 2014, o acréscimo foi da ordem de 11%, totalizando quase 1.000 militares da ativa ou da reserva postulantes a cargos eletivos. Na ocasião, segundo Stuck, mais de 500 candidatos incluíram suas designações hierárquicas (patentes) nos nomes de urna, representando acréscimo de cerca de 40% na comparação com as eleições de 2014.

A maior participação como candidatos rendeu frutos aos militares. Entre deputados estaduais, deputados federais e senadores, foram 72 eleitos em 2018 [6]. Para a Câmara dos Deputados e Senado, foram eleitos 22 militares, dos quais 20 deputados e dois senadores, sendo que em 2014 foram apenas fez eleitos (todos deputados).

Atualmente, o sítio da Câmara registra 15 deputados que ostentam a patente militar em seus nomes. Segundo dados do sítio da Câmara, são cinco capitães, três coronéis, dois generais, três sargentos, um major e um subtenente [7].

Apesar da ampliação da participação de militares em atividades administrativas e eleitorais, a Constituição de 1988 traz desestímulo bifronte à politização da caserna e à militarização da vida civil, a começar pela proibição de alistamento eleitoral dos conscritos durante o período do serviço militar obrigatório (§ 2º do artigo 14). Mas não é só. Enquanto em serviço ativo, o militar: se alistável, é elegível, devendo se afastar da atividade se contar menos de dez anos de serviço, ou, se contar com mais tempo, será agregado pela autoridade superior, passando, no ato da diplomação, para a inatividade, caso eleito (§ 8º do artigo 14); não pode estar filiado a partidos políticos (inciso V do artigo 142); em regra, será transferido para a reserva tão logo tome posse em cargo ou emprego público civil permanente (inciso II do artigo 142).

Em linha com a Constituição, a Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, o Estatuto dos Militares, estabelece distinção entre o ambiente tipicamente militar e o civil ou político. Observados em conjunto a Constituição e o Estatuto dos Militares, podemos extrair a diretriz de que a atividade do militar no meio político deve ser mais restrita do que a do cidadão em geral. Nesse sentido, o Estatuto proíbe ao militar "quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político" (artigo 45), e o uso dos uniformes "em manifestação de caráter político-partidária" (artigo 77, § 1º, "a").

O Estatuto dos Militares vai além, pois dispõe em seu artigo 28 sobre longa série de proibições, considerando que "o sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis". Entre essas proibições destacam-se restrições sobre o uso do posto, graduação ou da designação hierárquica em contexto extramilitar.

Refiro-me às vedações dos incisos XVII e XVIII do artigo 28 do Estatuto dos Militares. Pela primeira regra, o militar deve "abster-se de fazer uso do posto ou da graduação para obter facilidades pessoais de qualquer natureza ou para encaminhar negócios particulares ou de terceiros". E, pela segunda, estatui-se que o militar deve "abster-se na inatividade do uso das designações hierárquicas: a) em atividades político-partidárias; b) em atividades comerciais; c) em atividades industriais; d) para discutir ou provocar discussões pela imprensa a respeito de assuntos político ou militares, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, se devidamente autorizado; e e) no exercício de cargo ou função de natureza civil, mesmo que seja da Administração Pública".

Nesses dispositivos, o Estatuto dos Militares busca, de um lado, evitar que o prestígio das instituições militares sirva indevidamente para promoção pessoal de seus membros; e, de outro lado, que disputas ideológicas típicas do regime de liberdade e persuasão do mundo civil atrapalhem o ambiente verticalizado militar.

Se essas considerações estão corretas, no direito eleitoral deveríamos investigar se representa algum problema a multiplicidade de candidatos que vêm ostentando nas urnas eletrônicas e em suas campanhas nomes precedidos pelo posto ou designação hierárquica. Essa prática seria conforme ao direito?

Para investigar possível resposta, vem à tona a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, a Lei das Eleições, que conta com regra que disciplina as variações nominais com as quais o candidato pode ser registrado, podendo ser "o prenome, sobrenome, cognome, nome abreviado, apelido ou nome pelo qual é mais conhecido, desde que não se estabeleça dúvida quanto à sua identidade, não atente contra o pudor e não seja ridículo ou irreverente" (artigo 12, caput).

Há imprecisão quanto ao que pode ser considerado desconforme ao "pudor", "ridículo" ou "irreverente". São conceitos jurídicos que a doutrina administrativista costuma chamar "indeterminados", que são técnicas por meio da quais o legislador concede ao aplicador do direito "certa de liberdade para decidir-se no caso concreto, tendo em conta sua posição mais favorável para reconhecer, diante da multiplicidade dos fatos administrativos, a melhor maneira de satisfazer a finalidade da lei nas situações empíricas emergentes" [8].

Porém, deve-se ter em conta que há disciplina legal sobre o que lesiona o pudor militar, ou o "pundonor", na linguagem mais intensa do Estatuto dos Militares. Se para a generalidade dos candidatos há imprecisão sobre o que seria ofensivo ao pudor em termos de variações nominais, para os militares essa imprecisão foi praticamente eliminada pela lei. Assim, sem recurso a percepções particulares sobre o que é ou não moral, é possível entender que militares, da ativa ou da inatividade, não podem se valer de seus postos ou designações hierárquicas em atividades político-eleitorais.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quase apreciou essa questão quando julgou o Recurso Especial Eleitoral nº 720-48.2014.6.08.0000, sob a relatoria do ministro Henrique Neves da Silva, na sessão de 21 de agosto de 2014. Vigia à época a Resolução-TSE nº 23.405, de 27 de fevereiro de 2014, que, ao dispor sobre a escolha e o registro de candidatos, desenvolveu o conteúdo do artigo 12 da Lei nº 9.504, de 1997, para estipular, no § 2º de seu artigo 30, que "não será permitido na composição do nome a ser inserido na urna eletrônica, o uso da expressão e/ou siglas pertencentes a qualquer órgão da administração pública direta, indireta federal, estadual, distrital e municipal".

O Ministério Público Eleitoral (MPE) havia recorrido de acórdão que deferira registro de candidato que utilizara o posto militar "cabo" em variação nominal. De acordo com o relatório do acórdão, o MPE entendia que teria havido violação ao § 2º do artigo 30 da Resolução-TSE nº 23.405, de 2014, na medida em que "a graduação que precede o nome permite que se estabeleça ligação com a instituição pública à qual o candidato é vinculado, a Polícia Militar, e afeta a igualdade de oportunidades entre os concorrentes do pleito". Porém, o TSE negou provimento ao recurso do MPE com base nessas considerações do voto do relator:

"Todavia, o nome ora em discussão, 'Cabo […]', não contém expressão nem sigla pertencente a órgão da administração pública, como no caso supracitado, mas apenas menção a uma patente, que não é exclusiva da Polícia Militar, como sugere o recorrente, mas pode se referir à Marinha do Brasil, ao Exército Brasileiro ou à Força Aérea Brasileira, ou, até mesmo, a organização paramilitar. Assim, não há falar em associação direta do termo 'cabo' com a instituição que o candidato integra.
Como bem afirmou o Tribunal de origem, trata-se de aspecto próprio da vida profissional do candidato, que não é capaz de confundir o eleitorado, não atenta contra o pudor nem é ridículo ou irreverente, possibilitando, ao contrário, que o candidato seja identificado pelo nome pelo qual é mais conhecido, o que é permitido pela legislação eleitoral, conforme se verifica do teor do art. 12 da Lei n° 9.504/97.
Ademais, o inciso III do art. 31 da Res.-TSE n° 23.405 prevê: 'Ao candidato que, por sua vida política, social ou profissional, seja identificado pelo nome que tiver indicado, será deferido o seu uso, ficando outros candidatos impedidos de fazer propaganda com o mesmo nome'.
Por fim, a regra do § 20 do art. 30 da Res.-TSE n° 23.405, por ser derivada da proibição contida no art. 40 da Lei n° 9.504, de 1997, que proíbe o uso na propaganda eleitoral de 'símbolos, frases ou imagens, associadas ou semelhantes às empregadas por órgão de governo, empresa pública ou sociedade de economia mista', não pode receber interpretação ampliativa de forma a contemplar hipótese não prevista.
A identificação do candidato por substantivo comum que designa profissão ou patente não se confunde com a proibição do uso do substantivo concreto que identifica a instituição."

Nesse julgado de 2014, a discussão provocada pelo MPE e desenvolvida no âmbito do TSE fixou-se basicamente em regras da legislação eleitoral. É certo que se descartou na ocasião que o uso da patente militar poderia configurar ofensa ao pudor ("não atenta contra o pudor", diz-se), mas não houve deliberação específica sobre o que, nos termos da lei, pode configurar para o militar ofensa ao pudor ou "pundonor" (artigo 28, caput, do Estatuto dos Militares).

Nas próximas eleições, candidatos militares certamente buscarão ostentar seus postos e designações hierárquicas em suas campanhas eleitorais e na urna eletrônica, emulando estratégia que já se mostrou exitosa. Podemos afirmar que a Constituição estimula o exercício pelos militares de atividades político-eleitorais? Há elementos distintivos entre civis e militares que justificam tratamento eleitoral diferenciado, mais restritivo, quanto aos últimos? É razoável supor que é conforme ao plano constitucional uma progressiva indistinção entre o que é civil e o que é militar?

Essas e outras questões precisam ser enfrentadas pelo TSE. Trata-se de refletir sobre qual modelo de organização política devemos seguir, se baseada nos ideais horizontais de liberdade, persuasão e deliberação ou nos tradicionais ideais de ordem, hierarquia e disciplina.


[1] SAGAN, Carl; DRUYAN, Ann. Shadows of Forgotten Ancestors. New York, 1993, p. 299.

[2] ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 129.

[3] Disponível em http://www.adamoli.org/benito-mussolini/pag0183-01.htm. Aceso em 30 de junho de 2022.

[4] NOZAKI, William. Caderno da Reforma Administrativa: 20. A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder? Brasília: Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), maio de 2021.

[8] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 949.

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