Contas à Vista

Clamor por densidade democrática: do 11/8 ao Ploa a ser enviado em 31/8

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9 de agosto de 2022, 8h02

Nesta quinta-feira, 11 de agosto, muitos serão os atos públicos de defesa do Estado democrático de Direito em todo o país. No dia em que se celebra a instituição dos cursos jurídicos no território nacional, será lida Carta de destacada envergadura cívica já assinada por mais de 800 mil brasileiras e brasileiros, a qual está aberta para novas adesões no endereço disponível aqui.

Spacca
Trata-se de manifesto que reafirma o compromisso inegociável da nossa sociedade com a democracia, a qual foi conquistada mediante duras lutas capitaneadas, entre outros, pelo professor Goffredo da Silva Telles Junior que, em 1977, denunciava o estado de exceção imposto pela ditadura militar.

Desde então, passaram-se 45 anos de construção social e institucional em prol do Estado Democrático de Direito que hoje vivenciamos. A garantia de que não haverá retrocessos autoritários está sedimentada em nossa Constituição Cidadã. Todavia, questionamentos infundados sobre o processo eleitoral e o risco de desacato ao resultado dado pelas urnas eletrônicas justificam a imprescindibilidade e a oportunidade da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros.

Os que a elaboraram buscaram o consenso possível em torno de balizas minimalistas do nosso pacto constitucional civilizatório. Somente assim foi possível erigir um arco amplo de apoios e adesões, razão pela qual a Carta merece nosso enfático reconhecimento por sua relevância político-histórica.

Assinei a Carta, prestigiarei sua leitura no Largo do São Francisco e convido os leitores desta coluna para que se somem a nós. Não posso, porém, deixar de dialogar com a indagação sobre os desafios subsequentes, provocação essa feita pelo professor Fernando Facury Scaff, com quem tenho a honra de dividir esta coluna Contas à Vista:

"são muitos os desafios extraordinários à frente dos novos governantes deste país, sem que isso implique em uma nova constituinte, pois muitos aspectos da atual Carta vêm cumprindo a contento suas funções, como no amplo leque de direitos fundamentais e sociais nela estabelecidos. Nesse âmbito, é necessário ampliar e acelerar sua efetivação, e não os redesenhar.

Não sei se apenas quatro anos serão suficientes para tudo isso, mas é outro passo que deve ser dado de imediato. A Carta às Brasileiras e aos Brasileiros é só um (re)começo. Existe muito trabalho à frente."

Fernando F. Scaff nos propõe que lancemos a mirada para o horizonte a partir de 1º de janeiro de 2023 e arrola vários desafios, como, por exemplo, o enfrentamento do Orçamento Secreto e o resgate do federalismo. Muitas seriam as laudas necessárias para pontuar o largo alcance das ideias do meu nobre colega de coluna. Dados os limites deste curto e privilegiado espaço, pretendo dialogar com a agenda scaffiana de uma revisão do arranjo jurídico da receita e da despesa pública para que "haja democracia e república no uso do que é retirado da sociedade e gasto pelo poder público, com amparo na capacidade contributiva e receptiva".

A agenda em prol da equidade fiscal é clamor não só dos presentes dias, como também revela um complexo e longevo desafio histórico. Em 5 de outubro de 1988, no discurso de promulgação da Constituição, Ulysses Guimarães reconhecera que somente é cidadão "quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa". Sob esse parâmetro qualitativo, 33 milhões de famintos não podem ser considerados cidadãos em sua plena acepção, muito embora votem e, precisamente por isso, somente são lembrados — tal como feito na justificação da Emenda 123/2022 — às vésperas do pleito eleitoral.

Há poucos dias, aliás, foi divulgado levantamento no qual foi constatado que, em metade dos municípios do país, o número de empregos formais é inferior ao número de famílias brasileiras dependentes do Programa Auxílio Brasil e, portanto, em condição de insegurança alimentar.

Enquanto isso, seguem em elevação os juros, a um custo fiscal que superou a marca de meio trilhão de reais nos últimos doze meses. Em igual medida, têm sido batidos os recordes históricos na distribuição de dividendos tanto na iniciativa privada, quanto na Petrobras, em especial.

A iniquidade orçamentária brasileira é tanta que a riqueza subtributada (inclusive na forma de dividendos extraordinários isentos de imposto de renda) tem garantia total de ampla remuneração na dívida pública, até mesmo com liquidez praticamente imediata quando consideramos as operações compromissadas. É o melhor dos mundos para quem não paga tributos conforme sua capacidade contributiva: risco zero, rentabilidade alta e liquidez imediata na dívida pública.

Ora, se constitucionalizar é civilizar, seguimos majoritariamente descrentes da nossa própria capacidade de conter a barbárie orçamentário-financeira que acomoda e naturaliza tanta desigualdade. Eis a razão pela qual defender direitos sociais na realidade brasileira de 1988 e de hoje, mesmo às vésperas do 11/8, soa como esforço quixotesco e ingênuo, quando não é rotulado tão somente como fiscalmente irresponsável.

Oportuno resgatar, aliás, a comparação feita por Wolfgang Streeck [1]:

"A assimetria fundamental da Economia Política consiste no fato de as reivindicações de remuneração do capital serem consideradas condições empíricas de funcionamento de todo o sistema, enquanto as correspondentes reivindicações do trabalho (e por igualdade social) são consideradas fatores de perturbação".

Fato é que, no Brasil, o alargamento do exercício da democracia prometido pela Constituição de 1988 se ressente da inércia e do antagonismo do Estado, a pretexto de limites fiscais intransponíveis. Vale notar, contudo, que aludidas restrições incidem iníqua e seletivamente apenas sobre as despesas primárias que amparam as políticas públicas encarregadas de cumprir os ditames daquela.

Cínicos fiscais alegam a impossibilidade de assegurar recursos públicos suficientes para avançar no que Ulysses Guimarães chamara de "campo das necessidades sociais", enquanto nenhuma contenção é efetivamente erigida em face das despesas financeiras e da regressiva matriz tributária brasileira.

A mudança almejada em 5 de outubro de 1988 tem sido frustrada, porque sempre há os que alegam que nossa Constituição Cidadã não cabe no orçamento. Mas aqui cabe retrucar acerca da existência de orçamento legítimo fora dos compromissos constitucionais. A indagação estruturante, do ponto de vista normativo, resume-se a: o que é conteúdo e o que é continente nessa relação entre Constituição e orçamento público?

Eleger prioridades e calcular as necessidades sociais para que sejam consideradas como norte de reflexão do orçamento público é papel sistêmico do planejamento setorial de cada política pública para fins de cumprimento intertemporal da Constituição. Não se trata de voluntarismo irresponsável pretender que as leis orçamentárias sejam aderentes ao planejamento setorial e resguardem-lhe recursos suficientes para a execução das suas metas e estratégias ao longo do tempo.

A bem da verdade, exigir que a execução orçamentária seja aderente ao planejamento setorial das políticas públicas e pretender que o ciclo orçamentário seja destinado — intertemporalmente — ao cumprimento dos ditames constitucionais é consequência de vivermos sob a égide de um substantivo Estado Democrático de Direito.

Irresponsável é a pretensão de esvaziar nosso arcabouço constitucional, invertendo [2] a relação entre Constituição e orçamento para quase sempre ampliar os espaços de captura patrimonialista e manter intocadas nossas iniquidades fiscais.

Os desafios prospectivos deste 11 de agosto não se iniciam apenas em 1º de janeiro de 2023. A bem da verdade, o envio do projeto de lei orçamentária em 31 de agosto traz consigo a pauta nuclear de resguardar pleno cumprimento a todas as obrigações constitucionais e legais de fazer que amparam os direitos fundamentais, sobretudo nos respectivos planos setoriais como conteúdo substantivo do orçamento impositivo, a que se refere o artigo 165, §º10, da Constituição.

A equalização das capacidades contributiva e receptiva suscitada por Fernando F. Scaff, em última instância, pauta a imperativa necessidade de mudança nas regras fiscais brasileiras, para que seja respeitada a prioridade alocativa dos direitos fundamentais no ciclo orçamentário brasileiro.

Precisamos assumir, com honestidade e pragmatismo, a necessidade de imediata revisão do teto dado pela Emenda 95/2016 como o núcleo do debate no projeto de orçamento para 2023. Defender o adensamento substantivo da democracia brasileira é esforço de justiça fiscal que deve ser feito de forma transparente e equilibrada para que seja resguardado o custeio dos serviços públicos essenciais, sobretudo diante da frágil capacidade de arrecadação dos entes subnacionais após o assédio normativo da União contra o ICMS.

Não podemos interditar reflexão equitativa sobre nossas regras fiscais e, sobretudo, acerca do regime jurídico da nossa dívida pública. Ora, inibir a arrecadação tributária, direta ou indiretamente, implica escolher uma entre as seguintes opções: ou precarizar serviços públicos para reduzir o tamanho do Estado ou ampliar o financiamento governamental pela via do endividamento público ou pela via inflacionária.

Urge, pois, aproveitar o envio do Ploa-2023 nos três níveis da federação tanto para debater o financiamento constitucionalmente adequado das obrigações constitucionais e legais de fazer que amparam os direitos fundamentais, quanto para resguardar a continuidade dos serviços públicos essenciais de forma federativamente equilibrada.

Afinal, no suposto confronto entre a Constituição e o orçamento regido pelo teto da EC 95, devemos nos lembrar que o orçamento e o próprio teto só são legítimos em face daquela. Talvez, precisamente por isso, o maior desafio democrático do Ploa-2023 de todos os entes políticos seja responder — de forma desnudada e dramática — qual é a razão de ser do Estado brasileiro.

Não podemos abdicar do pacto civilizatório que ousamos celebrar na CF/1988 e que defenderemos no próximo 11/8, até porque, como bem concluíra doutor Ulysses, "a Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança". Que essa mudança comece a partir da nossa percepção fiscal acerca do dever de assegurar plena cidadania a tantos famintos e invisíveis e a partir do efetivo enfrentamento da desigualdade ainda tão naturalizada por dentro do ciclo orçamentário.


[1] STRECK, Wolfgang. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Lisboa: Actual, 2013, p. 103.

[2] BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição econômica. Boletim de Ciências Econômicas XLIX, p. 2/23, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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