Opinião

Fundos de investimento e tribunais: prazo prescricional para responsabilização civil

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8 de agosto de 2022, 15h06

É notável, nos últimos anos, o crescimento do número de ações judiciais e procedimentos arbitrais que discutem questões relacionadas a fundos de investimento. Aí se incluem, por exemplo, as demandas de responsabilização civil contra gestores e administradores de fundos. Muitas vezes, a vasta jurisprudência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)  encarregada de julgar o tema na esfera administrativa fornece precedentes úteis para dirimir aquelas disputas. Todavia, algumas relevantes discussões são exclusivas da esfera cível e, por isso mesmo, não são tratadas pelas normas ou pelos julgados daquela autarquia.

Exemplo disso foi visto no caso do REsp nº 1.965.982 (de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, publicado no DJe de 08/04/2022), no qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reconheceu a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, em execução movida contra o cotista, para atingir ativo pertencente ao fundo de investimento no qual ele investe.

Foi o caso, também, de outra decisão do STJ que, apesar de tratar sobre matéria extremamente relevante ao regime jurídico dos fundos de investimento — e que também é exclusiva da esfera cível , acabou passando despercebida pela comunidade jurídica. Trata-se da decisão monocrática proferida pela ministra Nancy Andrighi no julgamento do AREsp nº 1.970.187 (publicada no DJe de 26/11/2021 e já transitada em julgado), que analisava a prescrição em para responsabilização civil de administrador e gestor de fundo de investimento. No caso, a ministra relatora reformou o entendimento do tribunal estadual de origem (que aplicava prazo prescricional de três anos) para fazer incidir o prazo de dez anos, previsto no artigo 205, do Código Civil.

Historicamente, fundos de investimento sempre tiveram seu regime jurídico disciplinado por norma infralegal. Desde 2001, sua regulação é concentrada nas mãos da CVM, que é bastante ativa na produção de regras sobre o tema  atualmente estando em curso, inclusive, processo de ampla atualização da norma geral existente sobre o assunto. Com a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), os fundos de investimento passaram a estar previstos no Código Civil, embora apenas pouquíssimos dispositivos lhes tenham sido dedicados. Em realidade, ao mesmo tempo em que previu regras legais mínimas, o legislador reafirmou expressamente a competência da CVM para disciplinar, de forma detalhada, o regime jurídico aplicável ao instituto (artigo 1.368-C, §2º, do Código Civil).

Assim, uma vez que esse regime continua sendo delineado eminentemente por normas regulamentares, é natural que algumas questões (justamente aquelas que são exclusivas da esfera cível) sejam reguladas de forma mais superficial ou mesmo fiquem carentes de qualquer tratamento. Não só porque elas não interessam à esfera administrativa, mas também porque a CVM é bastante cuidadosa para não regular matérias que poderiam ser interpretadas como sendo de reserva legal (isto é, que só poderiam ser normatizadas pelo Poder Legislativo). É discutível, por exemplo, se a autarquia teria competência para definir prazos prescricionais  e, talvez por isso, as normas que expede para regular os fundos de investimento não tratam sobre o ponto. Tampouco o Código Civil ou qualquer outro diploma legal o fazem. Portanto, não existe previsão, na Lei ou na regulação, sobre qual seria o prazo prescricional para se demandar, especificamente, contra o gestor e o administrador de fundos.

Diante dessa lacuna, é comum que, em casos concretos, esses prestadores de serviço invoquem a aplicação do prazo de três anos, normalmente por dois fundamentos. Primeiro, porque esse é o prazo aplicável para pretensões de responsabilização civil (artigo 206, §3º, V, do Código Civil). Segundo, porque também é de três anos o prazo para se postular contra administradores de sociedades (artigo 206, §3º, VII, b, do Código Civil). Já os investidores usualmente se socorrem do artigo 205, do Código Civil, que prevê aplicação do prazo de dez anos, para toda hipótese em relação à qual não houver prazo específico previsto na legislação  e que a Corte Especial do STJ pacificou como sendo o prazo aplicável a demandas de natureza contratual (no famoso julgamento do EREsp nº 1.280.825, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, publicado no DJe de 02/08/2018).

A decisão monocrática da ministra Nancy Andrighi, como se mencionou, aplicou esse precedente a uma demanda de responsabilização civil de gestor e administrador de fundo de investimento, sem problematizar qual seria o regime específico desses profissionais, mas apenas reconhecendo que "o prazo prescricional para as ações fundadas no inadimplemento contratual  incluindo o da reparação de perdas e danos por ele causados  é de dez anos, nos termos do artigo 205 do CC/02". Reformou-se, assim, o julgamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, também sem promover a problematização que o tema merecia, afirmava que seria "aplicável à hipótese o prazo prescricional trienal, previsto no artigo 206, parágrafo 03º, inciso V, do Código Civil (pretensão de reparação civil)" (AI nº 2146743-81.2019.8.26.000, julgado em 04/10/2020).

Em primeiro lugar, o entendimento da ministra Nancy Andrighi parece em linha com a compreensão de que a relação entre investidores, de um lado, e gestores/administradores de fundos, de outro, possui natureza contratual (e não extracontratual). De fato, essas partes têm a sua relação jurídica disciplinada por um regulamento, que contém regras a que as partes se submetem apenas se assim for da sua vontade  o que revela um caráter contratual. Essa conclusão não se altera pelo fato de, como em qualquer contrato, aquela relação jurídica também sofrer a incidência de normas imperativas (como aquelas que impõem a gestores e administradores os conhecidos deveres de diligência e de lealdade).

Em segundo lugar, a aplicação do prazo de dez anos parece consistente com o fato de que fundos de investimento não possuem natureza jurídica de sociedade. Esse ponto foi, durante anos, objeto de amplo debate acadêmico: apesar de as legislações mais antigas e a regulação da CVM sempre se referirem aos fundos de investimento como "condomínio", os doutrinadores se dividiam entre os que afirmavam a natureza condominial e os que se inclinavam pela natureza societária. No entanto, a Lei da Liberdade Econômica inseriu no Código Civil a referência de que fundos de investimento constituiriam modalidade especial de "condomínio", ao mesmo tempo em que afirmou expressamente que eles não se sujeitam às regras gerais do instituto do condomínio (artigo 1.368-C, §1º).  Assim, a única conclusão razoável que se extrai da menção legal de que fundos possuem natureza de condomínio  mas não se submetem às regras do condomínio  é que a vontade do legislador foi encerrar definitivamente aquele debate e afastar, dos fundos de investimento, a aplicação da legislação societária.

Por não se tratar de uma decisão colegiada — e pelo fato de a questão não ter sido problematizada à luz do regime específico dos fundos de investimento , dificilmente aquele julgado pacificará a jurisprudência sobre qual seria o prazo prescricional incidente às demandas de responsabilização daqueles prestadores de serviço. Mesmo assim, entendemos que o caso é merecedor de destaque e que a decisão foi coerente com a natureza tanto dos fundos de investimento em si (espécie de condomínio, não de sociedade) como da relação jurídica que une os investidores aos gestores e administradores do veículo (uma relação contratual). A decisão é reveladora, também, do fenômeno que se mencionou no início deste artigo  ao qual os agentes da indústria e operadores do Direito devem ficar atentos , a respeito da propagação, no cotidiano dos tribunais brasileiros, das discussões envolvendo o regime jurídico dos fundos de investimento.

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