Freios e contrapesos

Populismo, autoritarismo e resistência: cortes constitucionais no jogo do poder (2)

Autor

  • Luís Roberto Barroso

    é professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) mestre pela Yale Law School. Doutor e livre-docente pela Uerj. Senior Fellow na Harvard Kennedy School. Ministro do Supremo Tribunal Federal.

4 de agosto de 2022, 10h01

Continua parte 1.

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3. A democracia no Brasil: ameaças, resistência e superação [1]
Assentadas algumas bases teóricas e descrito o cenário mundial, cumpre agora analisar como o processo histórico do populismo extremista autoritário impactou o Brasil. Em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, após derrotar Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, obtendo quase 58 milhões de votos (55,13%). O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não pôde concorrer em razão da Lei da Ficha Limpa, por possuir, na ocasião, condenação criminal em 2º grau. Capitão reformado do Exército, o presidente eleito se apresentou como o candidato anti-establishment, apesar de ter sido deputado federal por sete mandatos, entre 1991 e 2018. Seus três filhos maiores também tinham carreiras políticas. Apesar da ironia, não é incomum membros da tradicional elite política, econômica ou empresarial se apresentarem como "verdadeiros" representantes do povo. Viktor Orbán, da Hungria, por exemplo, estudou na Universidade de Oxford com bolsa de estudo (scholarship) custeada por ninguém menos do que George Soros, de quem se tornaria arqui-inimigo. E Donald Trump, ícone populista, é um herdeiro bilionário que frequentou algumas das mais afamadas universidades americanas (Ivy league schools) [2].

3.1. O cenário da ascensão de Jair Bolsonaro
A presidente Dilma Rousseff foi temporariamente afastada do cargo em 12/5/2016, após autorizada a instauração do procedimento de impeachment, sendo definitivamente destituída pelo Senado Federal em 31/8/2016. A justificativa formal foram as denominadas "pedaladas fiscais" — violação de normas orçamentárias —, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política. O vice-presidente Michel Temer assumiu o cargo até a conclusão do mandato, tendo procurado implementar uma agenda liberal cujo percurso foi abalado por sucessivas acusações de corrupção. Em duas oportunidades a Câmara dos Deputados impediu a instauração de ações penais contra o presidente.

Até a queda da presidente Dilma Rousseff, o Partido dos Trabalhadores havia permanecido 14 anos no governo. Não é o caso de se fazer aqui o balanço de realizações e desacertos do período. O fato inexorável é que, como não é incomum acontecer, após uma década e meia no poder o desgaste político se tornara inevitável. Havia na sociedade expressiva demanda por alternância no poder. Escândalos ao longo do período incluíram o mensalão, o petrolão, os sanguessugas e outros episódios de corrupção, relatados em diversas colaborações premiadas de agentes públicos e empresários. A tudo se somou o descontrole fiscal revelado a partir do final de 2014, dando lugar a um quadro grave de recessão, desemprego e desinvestimento, com a perda pelo país do grau de investimento atribuído por agências internacionais. Na verdade, o país chegou a sonhar que o futuro havia chegado, com indicadores extremamente favoráveis, que levaram a revista The Economist de 12/11/2009 a celebrar a decolagem e a perspectiva de o Brasil se tornar a quinta maior economia do mundo. Não aconteceu. E em 24/9/2013, quatro anos depois, a mesma revista noticiou que o Brasil, ainda uma vez, desperdiçara uma chance. A queda foi traumática.

Foi nesse contexto que surgiu e ganhou corpo a improvável candidatura de Jair Bolsonaro. Político que jamais estivera no mainstream ou no centro dos processos decisórios, era conhecido por manifestações retóricas radicais, como a defesa da ditadura, da tortura e a declaração de que se pudesse fuzilaria o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ao votar a favor do impeachment da presidente Dilma, prestou homenagem a um militar acusado de ser notório torturador durante o período ditatorial. A ascensão de Bolsonaro coincidiu com o sucesso de movimentos da direita radical em diferentes partes do mundo, capturando parte significativa das bases conservadoras, dos Estados Unidos à Hungria. Com utilização profissional e eficiente das mídias sociais, o candidato conseguiu catalisar o eleitorado que já não queria mais o PT no poder. Muitas das visões radicais acabaram encobertas por promessas que atendiam demandas importantes da sociedade, como enfrentamento da corrupção, liberalismo econômico e supressão da velha política do "toma lá dá cá". Singularmente, o bolsonarismo aglutinou dois segmentos opostos: de um lado, os que estavam frustrados com as promessas constitucionais não cumpridas; e, de outro, os insatisfeitos com as promessas que foram cumpridas [3].

Iniciado o governo, o combate à corrupção foi simbolizado pela indicação do ex-juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça. Não durou. Moro deixou o ministério, pouco mais de um ano após o início do governo, acusando o presidente de interferir na Polícia Federal, inibindo o enfrentamento da corrupção. Para tocar a agenda liberal, foi indicado o economista Paulo Guedes, formado na Escola de Chicago, apelidado de "Posto Ipiranga", pois resolveria todos os problemas. A agenda liberal tampouco durou. Passada a Reforma da Previdência, houve relaxamento da responsabilidade fiscal e paralisia das privatizações, gerando inúmeras baixas na equipe ministerial. Quanto à superação da velha política, o presidente aliou-se ao tradicional Centrão, estigmatizado pela imprensa pela voracidade por cargos e verbas públicas. É célebre a frase de Stephen Holmes de que "a democracia é feita de promessas, decepções e da administração da decepção" [4].

3.2. Ameaças às instituições
Bolsonaro se elegeu seguindo a cartilha populista tradicional: o povo simples, puro e conservador contra as elites sofisticadas, corrompidas e "esquerdistas". Como inevitável, logo se colocou o conflito que marca as relações entre o populismo e a democracia: não há como cumprir as promessas de campanha sem se confrontar com as instituições supostamente ocupadas pelos representantes dessas elites. Na verdade, o populismo tem uma falha conceitual de origem: elites não são uma categoria homogênea, não correspondem a um bloco social único. Justamente ao contrário, existem diversas "elites". Existem, é certo, elites extrativistas que precisam ser enfrentadas, porque colocam o Estado a serviço dos seus interesses. Elas são poderosas no Brasil. Mas existem elites qualificadas e indispensáveis no serviço público, da carreira diplomática aos pesquisadores de instituições de ponta; existem elites intelectuais que pensam e indicam rumos para o país, nas universidades e em diversos think tanks; existem elites empresariais verdadeiramente empreendedoras, decisivas para o emprego e para a geração de riquezas. Na prática, o discurso anti-elite acaba se transformando num discurso antidemocrático, anticientífico e antiempreendedorismo. Além disso, povo tampouco é um conceito unitário
[5]. Num mundo plural, qualquer grupo que se apresente como único representante do povo assume um viés excludente e autoritário.

Os ataques às instituições vieram articuladamente, de sites, blogs e canais de extrema direita, pregando invasão e fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, com retirada à força de seus membros. Revelou-se a existência de esquemas profissionais de desestabilização democrática, com suspeita de financiamento público em alguns casos, potencializados pelo uso massivo das redes sociais, alimentadas por fanáticos, mercenários (que monetizam o ódio e a mentira), trolls [6] e seguidores acríticos. A participação pessoal do presidente em manifestações antidemocráticas gerou preocupações até mesmo em setores que o apoiavam politicamente. Os exemplos foram se multiplicando: a) comparecimento a uma manifestação na porta da sede do comando do Exército, onde se pedia a volta da ditadura militar; b) ataques diários à Justiça Eleitoral, ofensas pessoais aos seus integrantes e acusações falsas de fraude eleitoral em pleitos anteriores; c) desfile de tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, com claros propósitos intimidatórios; d) pedido de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal, em razão de decisões judiciais que desagradavam o Presidente; e) mudança de diretor-geral e de superintendentes da Polícia Federal por atuarem com independência; e f) ataques reiterados a jornalistas e órgãos de imprensa, assim como uso da verba publicitária oficial para cooptar apoios de conglomerados de comunicação social.

Curiosa e paradoxalmente, o momento que gerou maior temor para a estabilidade do regime democrático foi, também, o ponto de reversão do golpismo institucional. Tratou-se da grande manifestação convocada para o 7 de setembro, Dia da Independência. Com aluguel de centenas de ônibus no interior e pagamento de refeições, os organizadores concentraram as manifestações em São Paulo e Brasília, com a expectativa de mais de um milhão de pessoas em cada uma delas. As bandeiras das manifestações eram heterogêneas e incluíam o fechamento do Supremo Tribunal Federal, o impeachment de ministros da corte e o voto impresso com contagem pública manual. Alguns manifestantes defendiam a volta do regime militar, com manutenção do presidente no poder. Outros exigiam o fechamento da representação diplomática da China, fora outras idiossincrasias. O Presidente compareceu a ambas as manifestações, ofendeu diretamente um ministro do STF, acusou outro de pretender fraudar as eleições e afirmou que não mais cumpriria decisões judiciais com as quais não concordasse.

O comparecimento popular, todavia, foi menos de um décimo do esperado, demonstrando o tamanho diminuto da direita radical. Também causou frustração a muitos na militância a não adesão das polícias militares à manifestação, tendo as tropas estaduais permanecido disciplinadas. Nenhum oficial militar graduado fez qualquer sinal de apoio. Além disso, houve reação imediata das instituições e da imprensa. Em suma, não havia respaldo popular nem de qualquer setor relevante à quebra da legalidade. A verdade surpreendente é que 48 horas após a manifestação, o presidente modificou inteiramente o discurso, justificando-se pelo "calor do momento" [7] e procurando aqueles a quem havia ofendido para se explicar como podia. Dias depois, em entrevista à revista Veja, negou qualquer intenção de golpe e, subitamente, passou a afirmar ter confiança nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral, que havia atacado por meses a fio [8].

3.3. A resistência democrática
As repetidas ameaças à legalidade constitucional e à estabilidade das instituições geraram firme reação de múltiplos setores. Em primeiro lugar, a imprensa, a despeito de boicotes publicitários e das próprias dificuldades contemporâneas do seu modelo de negócios, foi um bastião de resistência. Distinguindo com propriedade fato de opinião, manteve o tom crítico e desempenhou com desassombro o papel fiscalizador que lhe cabe. Apesar dos muitos temores de envolvimento das Forças Armadas, também as suas lideranças souberam resistir a seduções indevidas. O ministro da Defesa e os comandantes militares deixaram o cargo com altivez, por não concordarem, segundo divulgado, com o uso político e intimidatório da instituição
[9]. O Supremo Tribunal Federal, que vinha dividido no tema do combate à corrupção, uniu-se na defesa da democracia. Nessa linha, reiterou compromissos com a liberdade de expressão, com a preservação de conselhos da sociedade civil, com o devido processo legal legislativo e, sobretudo, confrontando os ataques às instituições desferidos por grupos extremistas. Em diferentes investigações, que vieram a ser reunidas em um único inquérito, que apura a atuação de organizações criminosas, o Tribunal coibiu, com oitivas, buscas e apreensões e mesmo prisões preventivas, as ameaças de violência contra seus ministros e suas instalações [10].

Relativamente à pandemia, diante de posições de autoridades que negavam ou minimizavam sua importância e consequências, o Supremo Tribunal Federal (STF) produziu uma longa série de decisões que preservaram a saúde da população e salvaram milhares de vida. De fato, o tribunal (i) assegurou o poder dos estados e dos municípios tomarem medidas para proteger a população, (ii) impediu o lançamento da campanha convocando a população a voltar para as ruas e para o trabalho, quando todas as entidades médicas recomendavam recolhimento, (iii) afirmou constituir erro grosseiro, para fins de responsabilização de agentes públicos, a não observância dos consensos médico-científicos, (iv) determinou a divulgação do plano de vacinação, (v) ordenou a vacinação compulsória e (v) a proteção das comunidades indígenas, entre outros julgados. Em ação movida por senadores, o STF determinou, igualmente, a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pelo Senado Federal para apurar a atuação do governo federal durante a pandemia. Nos termos da Constituição, se um terço dos parlamentares da casa legislativa requererem, a instauração é obrigatória, por constituir direito das minorias parlamentares. O relatório final da CPI foi devastador para o governo.

Finalmente, após as manifestações de 7 de setembro, com as graves ameaças do presidente da República às instituições, houve duros pronunciamentos do presidente do Congresso Nacional, do presidente do Supremo Tribunal Federal e, igualmente, do presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Feita a análise do contexto mundial de ascensão do populismo autoritário e do seu impacto específico no Brasil, cabe, por fim, analisar como as democracias têm reagido ao fenômeno, com foco especial no papel desempenhado por supremas cortes e cortes constitucionais.

*Texto originalmente publicado na Revista Direito e Práxis

Continua parte 3.


[1] Sobre o tema, v. Cláudio Pereira de Souza Neto, Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional. Rio de Janeiro: Eduerj, 2020.

[2] Nick Friedman, The impact of populism on courts: institutional legitimacy and the popular will. Oxford: The Foundation for Law, Justice and Society, 2019, p. 2.

[3] Sobre o tema, v. Daniel Capecchi Nunes, Promessa constitucional e crise democrática: o populismo autoritário na Constituição de 1988. Mimeografado. Tese de doutorado submetida ao PPGD da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2022.

[4] Palestra no Youtube sobre "How democracies die". Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=nHr6Mcqq-Ek. Acesso em 12 jul. 2019.

[5] David Prendergast, The judicial role in protecting democracy from populism. German Law Journal 20:245, 2019, p. 246: "Populist claims are misconceived to begin with in presupposing a definitive unitary people".

[6] Troll, na linguagem da internet, identifica o usuário que veicula mensagens inflamatórias, agressivas e frequentemente falsas para produzir engajamento pela raiva, indignação, ódio e radicalismo.

[7] Bolsonaro recua e diz que fala golpista no 7/9 decorreu do calor do momento. UOL, 9 set. 2021. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/09/jair-bolsonaro-nota-stf.htm.

[8] "A chance de um golpe é zero", diz Bolsonaro em entrevista à Veja. https://veja.abril.com.br/politica/a-chance-de-um-golpe-e-zero-diz-bolsonaro-em-entrevista-a-veja/.

[9] Segundo o ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública, Raul Jungmann, o presidente da República teria determinado que jatos da Força Aérea Brasileira sobrevoassem o prédio do Supremo Tribunal Federal acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio, em ameaça aos juízes da corte. A recusa teria motivado a demissão. Jungmann: Bolsonaro determinou que jatos sobrevoassem STF para quebrar vidros. Poder 360, 20 ago. 2021. https://www.poder360.com.br/brasil/jungmann-bolsonaro-determinou-que-jatos-sobrevoassem-stf-para-quebrar-vidros/.

[10] Também o Tribunal Superior Eleitoral, integrado por três ministros do STF, enfrentou os comportamentos antidemocráticos instaurando procedimentos para apurar falsas alegações de fraude contra o sistema eletrônico de votação, bem como determinando a "desmonetização" de sites e canais que difundiam desinformação contra o processo eleitoral e contra a democracia.

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