Opinião

Separação dos poderes: delimitação do mérito administrativo

Autor

  • Ricardo Adriano Haacke

    é procurador municipal mestrando em administração pública pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em Direito Administrativo Direito Constitucional Direito Processual Civil e Direito Tributário.

5 de agosto de 2022, 20h26

Gestão pode possuir diversos sentidos. Não obstante, em nosso tema proposto, numa visão finalística de policy-making, apresenta-se como uma busca infindável por melhorias das mais variadas ordens. Neste aspecto, o desenvolvimento social e a criação de políticas públicas prestacionais apresentam-se como a batuta que rege o comportamento do político, que, muitas vezes imbuído por clamor social e a perspectiva de reeleição, acaba estabelecendo um novo aparato governamental, vocacionado para esta finalidade.

Não obstante, também é certo que toda política pública demanda artifícios técnicos e financeiros, o que nem sempre é alcançável, pois como sabemos "os recursos são escassos e as necessidades infinitas".

Comentando o tema, o ministro Gilmar Mendes apud REIS, ao dissertar sobre normas fundamentais enquanto direitos a prestações positivas, traça os seguintes apontamentos:

"Observe-se que, embora tais decisões estejam vinculadas juridicamente, é certo que a sua efetivação está submetida, dentre outras condicionantes, à reserva do financeiramente possível ('Vorbehalt des finanziell Möglichen'). Nesse sentido, reconheceu a Corte Constitucional alemã, na famosa decisão sobre 'numerus clausus' de vagas nas Universidades ('numerus-clausus Entscheidung'), que pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito estão submetidas à ‘reserva do possível’ ('Vorbehalt des Möglichen')."

Evidencia-se a dificultosa missão de compreender a dimensão dos direitos sociais impostos ao Estado no sistema constitucional vigente.

Análise do tema
Hodiernamente vislumbramos diversas decisões de nossos tribunais, sob o fundamento da força normativa da constituição, que deveriam estar inseridas no campo de atuação do administrador. É conhecida esta multiplicações de ações de cunho prestacional, onde o Poder Judiciário impõe a implementação de uma política pública, abstraindo o panorama organizacional envolto, e, malfadadamente, em que pese os detrimentos, ainda não existe uma solução congruente da contenda.

A intervenção judicial em matéria de políticas públicas deve estar relegada àquelas tônicas mais sensíveis. Noutras palavras, é preciso delimitar acertadamente e estritamente o espectro de proteção dos direitos sociais, sob pena de invadir o mérito da máquina pública governamental, e, com isto, comprometer a agenda governamental e o policy making do Poder Executivo, ainda que por vias oblíquas.

Para explicar o fenômeno, o professor Fernando Facury Scaff, doutor em direito pela USP, traz a definição de "sentença aditiva", bastante utilizada por juristas italianos, que assim apregoam:

Entende-se por "sentença aditiva" aquela que implica em aumento de custos para o Erário, obrigando-o ao reconhecimento de um direito social não previsto originalmente no orçamento do poder publico demandado.

Sobre a possibilidade de tal exigência, Luis Roberto Barroso citado em artigo de Otegildo Carlos Siqueira, faz críticas à excessiva judicialização de políticas públicas prestacionais:

"apontando o caráter programático da norma de direito à saúde que, conforme expresso na Constituição Federal, será oferecido através de políticas sociais e econômicas e não por decisões judiciais. Por conseguinte, é o Executivo que tem a melhor visão não só dos recursos, mas também das necessidades para otimizar os gastos com a saúde pública. Ademais, se a própria Carta Maior assegurou aos eleitos pelo voto popular (legitimidade democrática) a prerrogativa de gerir os recursos públicos seria impropriedade proceder-se de forma diversa. Suscita, ainda, a mais comum das críticas, a financeira, revestida da já referida reserva do possível. Dentre outras questões aponta também que decisões judiciais que impliquem em fornecimento de medicamento provocam a desorganização da Administração Pública e, por fim, se o Judiciário assume tal postura termina por privilegiar tão somente aqueles que têm acesso qualificado à Justiça em detrimento dos demais."

Indagamos, então, se é possível reconhecer diretamente, com base na norma constitucional definidora,  um direito fundamental social subjetivo a uma prestação concreta por parte do Estado, isto é, na visão Ingo Wolfgang Sarlet:

"se há como compelir judicialmente os órgãos estatais, na qualidade de destinatários de determinado direito fundamental, à prestação que constitui seu objeto. Em suma, cuida-se de averiguar até que ponto os direitos sociais prestacionais efetivamente carecem de uma plena justicialidade, razão pela qual, segundo alguns, são merecedores do qualificativo leges imperfectae, devendo, de acordo com outros, ser considerados como direitos relativos, porquanto geram direito subjetivo apenas com base e nos termos da legislação concretizadora."

Dessarte, como diferenciar direitos sociais previstos em normas de eficácia imediata em contraposição de normas programáticas que estabelecem objetivos sem assegurar direitos?

Ao pesquisar sobre o tema, a professora Marta Arretche, do Departamento de Ciência Política da USP, assevera que:

"Os constituintes de 1988 optaram pelo formato das competências concorrentes para a maior parte das políticas sociais brasileiras. Na verdade, as propostas para combinar descentralização fiscal com descentralização de competências foram estrategicamente derrotadas na ANC 1987-88 (Souza, 1997). Assim, qualquer ente federativo estava constitucionalmente autorizado a implementar programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento. Simetricamente, nenhum ente federativo estava constitucionalmente obrigado a implementar pro- gramas nestas áreas. Decorre deste fato a avaliação de que a Constituição de 1988 descentralizou receita, mas não encargos (Almeida, 1995; Affonso; Silva, 1996; Affonso, 1999; Willis et al., 1999)."

O professor Scaff alerta que:

"Implementar políticas públicas requer um planejamento mais acurado e uma analise financeira detalhada sobre a receita disponível. Em especial sobre os gastos públicos a serem realizados  inclusive indicando o grupo socieconômico das pessoas que devem ser beneficiadas por elas. Isto é de suma importância sob pena de existirem erros graves na implementação dessas politicas, seja por a) obter recursos de quem tem capacidade contributiva reduzida, e não deve ser alvo de maior tributação; seja por b) destinar estes recursos a quem deles pode prescindir, acarretando uma verdadeira "captura" dos benefícios sociais por uma camada da sociedade que deles pode prescindir, e deixando de lado os verdadeiros destinatários daquelas politicas".

Assim, algumas decisões aditivas, mostram-se superficiais do ponto de vista pragmático do Executivo, defrontando o ativismo judicial, pois não reclamam a urgência impingida pelo julgador na materialização do objeto, que, em última análise, pode não ser efetivo e comprometer o orçamento público. Recursos, aliás, que poderiam ser melhor logrados pela camada social interessada caso o plano de trabalho do governante não fosse afetado.

Outrossim, é sabido que com a promulgação da Carta Constitucional de 1988 foi criado um sofisticado sistema orçamentário, ampliando-se os mecanismo de fiscalização que existiam anteriormente, o que acabou se evidenciando com a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 —  Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) —, que deve ser estudada como uma ferramenta para organizar a vida financeira do pais, sancionada, à época pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em um período de grande instabilidade econômica, trazendo à nossa realidade aparelhos de accountability necessários.

Portanto, se por um lado a Carta Política elencou os fatos tributáveis (artigos 157 a 159, da Constituição da República), bem como a competência de cada ente federativo para instituir e arrecadar o que for devido, por outro, quanto às despesas, o sistema orçamentário nacional determina o que deve ser utilizado por cada ente federativo para planejar os gastos governamentais, inclusive os empenhos que decorrem de decisões judiciais.

Este procedimento muitas vezes possui complicações e demanda a especialização de profissionais para montar as peças orçamentárias, que nem sempre estão presentes nos quadros dos entes federativos de menor envergadura, tornando o cumprimento das obrigações impostas pelo Judiciário ainda mais dispendiosas, eis que se faz necessária a contratação de consultorias especializadas, onerando "o cofre" já enxuto daquele município com baixa arrecadação.

No mesmo giro, se é certo que a formação de políticas públicas exige conhecimento técnico e deslocamento de servidores (homem-hora), não caberia ao Judiciário, quando impor uma atuação específica, apontar as fontes de custeio?

No Tribunal Constitucional italiano, esta discussão foi cenário de um intenso debate, pois preceitua a Magna Carta daquele país, em especial o 4° paragrafo do artigo 81 que: "Ogni altra legge che importi nuove o maggiori spese deve indicare i mezzi per farvi fronte". Isto é, qualquer outra lei que imponha despesas novas ou maiores deve indicar os meios para satisfazê-las (lei aqui compreendida em seu sentido mais amplo).

Na Itália, a discussão chegou ao fim, afastando-se a aplicação do disposto no artigo 81, §4°, da Lei Maior Italiana, em relação às decisões judiciais. Da mesma maneira, no Brasil, não se aplica o artigo 167, I, da CF/88 ao debate sobre sentenças que geram custos.

Segundo Scaff (2008):

"no Brasil as 'sentenças que custam' com efeitos imediatos decorrem muito mais da implementação direta da Constituição pelo Poder Judiciário, a margem de norma legal ou regulamentar, e a margem de todo sistema orçamentário estabelecido pela própria Constituição. Daí que surge a questão sobre 'quem ordena o pagamento da conta'."

Acontece que, sem estudo casuístico, a decisão judiciária determinística deixa de prestigiar o interesse público envolto, tornando-se sem efeitos reais na vida da população interessada, prestigiando não mais que uma sensação de dever social cumprido das autoridades que requerem a execução do direito, transmutando-se em policy-making corporativista, e defiance do que é preconizado pelas Cortes Superiores em suas fundamentações.

Conclusão
Mais do que ponteiros legais que poderiam, com facilidade, ser trocados por algum algoritmo, ou, no pior dos casos, pensadores classistas, que apanham mais desalentos do que soluções ao Estado; a consciência jurídica das primeiras linhas de socorro jurisdicionais deve imiscuir-se no pensamento cartesiano, aprendendo que o interprete da norma não está alheio à moral como outrora pensava-se (hard positivism), mas deve concebê-la objetivamente e com moderação (soft positivism), não implodindo a dialética do sistema.

O  Estado é naturalmente ramificado para harmonizar com melhor traquejo o anseio social tutelado, reverenciando, outrossim, o cânon democrático. Daí porque é necessário que seja prestigiada a resolução do gestor público, que foi eleito como representante do povo e inserto na praxe administrativa, mormente em um sistema presidencialista de coalizão (coalition theories); sem distender a "justiça social apriorística", por não experienciar as concretas sequelas daquilo que foi julgado.

Referências
ARRETCHE. Marta. Federalismo e Políticas Sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo, 2004.

MILANI, Carlos RS. O princípio da participação social na gestão de políticas públicas locais, uma análise de experiências latinoamericanas e européias. Revista de Administração Pública (FGV). Rio de Janeiro, 2008.

BverfGE: Coletânea das decisões do Tribunal Constitucional Federal, nº 33, S. 333.

MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Revista Jurídica Virtual, no 14, Julho/2000 apud REIS, Wanderlei José dos. O princípio da reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no brasil. Univag. Disponível em: <https://www.univag.com.br/storage/post/13/06.pdf>. Acesso em: 13 de jul. de 2022.

SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível. Direitos Humanos Desafios Humanitários Contemporâneos: dez anos do Estatuto dos Refugiados, págs. 444 a 476,  DelRey, 2008 .

ITÁLIA, Constituição da República de 1947. Disponível em:<https://www.senato.it/sites/default/files/media-documents/COST_PORTOGHESE.pdf>. Acesso em: 13 de jul. de 2022.

MACIEL, Débora Alves; KOERNER, Andrei. Sentidos da Judicialização da Política: duas análises. Lua Nova, nº 57, 2002.

ROBBINS, L. (1932). Naturaleza y significación de la ciencia económica. México: Fondo de Cultura Económico, 1944.

SIQUEIRA, Otegildo Carlos. Direitos prestacionais: reserva do possível, mínimo existencial e ponderação jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14 , nº 2307, 25 out. 2009 . Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13735. Acesso em: 14 jul. 2022 apud BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamente e parâmetros para atuação judicial. Revista Interesse Público, Belo Horizonte, nº 46, nov./dez. 2007, p. 49-54.

Autores

  • Brave

    é procurador municipal, mestrando em Administração Pública pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direito Processual Civil e Direito Tributário.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!