Opinião

A Convenção de Montreal e o limite de indenização no transporte aéreo de carga

Autor

  • Priscila De Luca

    é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogada da banca Lee Brock e Camargo Advogados (LBCA).

5 de agosto de 2022, 11h05

Em recente decisão proferida no EREsp nº 1.289.629/SP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou a questão da necessária aplicação da Convenção de Montreal aos casos de transporte aéreo internacional e, mais especificamente, sobre a limitação da responsabilidade do transportador nos termos da alínea 3 do artigo 22 da referida norma.

Inicialmente, considerando a resistência de alguns julgadores em aplicar o quanto estabelecido na Convenção de Montreal, restou muito bem esclarecido pelo ministro Luis Felipe Salomão a inequívoca e indispensável acolhimento do artigo 178 da Constituição Federal [1], ao determinar que serão aplicáveis no Brasil os acordos firmados pela União: "revela-se inequívoco que a controvérsia atinente à responsabilidade civil decorrente de extravio de mercadoria importada objeto de contrato de transporte celebrado entre a importadora e a companhia aérea (hipótese dos autos) também se encontra disciplinada pela Convenção de Montreal, por força da regra de sobredireito inserta no artigo 178 da Constituição, que, como dito alhures, determina a prevalência dos acordos internacionais subscritos pelo Brasil sobre transporte internacional".

Ou seja, a legislação brasileira reconhece que os tratados e acordos internacionais, uma vez subscritos pelo Brasil, possuem força de lei e como tal devem ser aplicados, reforçando inclusive o quanto disposto no artigo 732 do Código Civil [2], de que os tratados internacionais e a Lei Especial devem ser fielmente observados nas hipóteses de contrato de transporte.

Temos, portanto, que tanto o artigo 178 da Constituição quanto o artigo 732 do Código Civil determinam a observância dos tratados internacionais assinados e ratificados pela União Federal no que tange à ordenação do transporte internacional, sendo que em casos de transporte de cargas, a norma aplicável é à Convenção de Montreal.

Vale destacar, inclusive, que tal entendimento já havia sido explicitado pelo Supremo Tribunal Federal [3] ao determinar a aplicação das limitações de indenizações impostas nas Convenções de Varsóvia e Montreal nos moldes da tese fixada no Tema 210.

Feitas essas considerações, convém destacar a irretocável conclusão do ministro Luis Felipe Salomão ao entender pela aplicação da limitação da responsabilidade do transportador, prevista no artigo 22, alínea 3 da Convenção de Montreal, em casos de danos à carga durante a realização do transporte:

"(..) o artigo 22, alínea 3, do tratado estabelece que, no transporte de carga, a responsabilidade do transportador — em caso de destruição, perda, avaria ou atraso — limita-se a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Nesse último caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, salvo se provar que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino".

Ou seja, nos termos do artigo 22, alínea 3 da Convenção de Montreal [4] a responsabilidade civil da transportadora limita-se a 17 direitos especiais de saque 5 por quilograma, salvo se o expedidor realizar, ao entregar o volume para transporte, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino e tenha pago uma quantia suplementar.

Ora, é claro que a Convenção de Montreal afasta a responsabilidade ilimitada do transportador, quando não for feita (pelo contratante do transporte) a declaração especial de valor da carga, documento que implica no pagamento de taxa suplementar para transporte. Assim, restando provada a ocorrência de extravio ou avaria da carga, o transportador aéreo responderá objetivamente pelos danos, restando apenas se averiguar se o contratante cumpriu com a incumbência que lhe competia (entrega de declaração especial de valor da carga com pagamento de taxa suplementar) para o recebimento de indenização integral reclamada ou não.

Trata-se de verdadeira obrigação sinalagmática, de modo que caso queira o contratante ser indenizado integralmente por eventuais avarias ou extravio da carga transportada, deverá proceder com a declaração especial, pagando a taxa suplementar, nascendo aí o seu direito de reclamar a indenização integral. A disposição é evidentemente clara no mundo negocial em que os transportes de cargas se operam, pois sendo declarada carga de alto valor, o risco da companhia aérea também é maior, sendo plenamente necessário que esta cobre mais por um serviço de maior risco.

O que não se permite, até mesmo por atentar quanto à boa fé que se espera dos contratantes, é a omissão do valor da carga transportada para que seja feito um transporte mais barato e, em caso de dano, se alegue que o valor da referida carga era muito superior ao presumido.

Vemos, portanto, que a decisão prolatada no EREsp nº 1289629/SP traz a segurança jurídica que se espera do Poder Judiciário e põe fim a duas discussões até então existentes: aplicabilidade ou não da Convenção de Montreal e, em caso de aplicabilidade, a necessária observância à limitação indenizatória prevista no artigo 22, alínea 3.

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[1] Artigo 178. Constituição. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

[2] Artigo 732. Código Civil. Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais.

[3] RE 1.228.425 AgR-segundo, relatora ministra Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 30.3.2020.

[4] Artigo 22. 3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.

[5] Artigo 23 do Decreto nº 5.910/2006: As quantias indicadas em Direitos Especiais de Saque mencionadas na presente Convenção consideram-se referentes ao Direito Especial de Saque definido pelo Fundo Monetário Internacional. A conversão das somas nas moedas nacionais, no caso de ações judiciais, se fará conforme o valor de tais moedas em Direitos Especiais de Saque, na data da sentença. O valor em Direitos Especiais de Saque da moeda nacional de um Estado Parte, que seja membro do Fundo Monetário Internacional, será calculado de acordo com o método de avaliação adotado pelo Fundo Monetário Internacional para suas operações e transações, vigente na data da sentença. O valor em Direitos Especiais de Saque da moeda nacional de um Estado Parte que não seja membro do Fundo Monetário Internacional será calculado na forma estabelecida por esse Estado.

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