Seguros Contemporâneos

Ainda sobre os desdobramentos do rol taxativo da ANS

Autor

  • Henderson Fürst

    é doutor em Direito pela PUC-SP doutor e mestre em Bioética pelo Cusc professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas professor de Bioética do Hiae presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP diretor da Sociedade Brasileira de Bioética e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

4 de agosto de 2022, 8h04

Muito embora a 2ª Seção do STJ tenha pacificado o entendimento da taxatividade do rol de procedimentos cobertos por planos e seguros de saúde no EREsp 1.886.929, o debate está longe de acabar, seja porque ainda não vinculou definitivamente (como se pode ver por recente notícia veiculada pela ConJur de decisão do TJ-SP mantendo o entendimento contrário [1], bem como do TJ-SE [2]), seja porque a questão se encontra em discussão no STF pelas ADIs 7.088 e 7.183 e a recém-proposta ADPF 986.

Enquanto o debate permanece, é preciso analisar a decisão dada pela 2ª Seção, pois ela contém alguns avanços e pontos controversos que precisam de melhor debate e compreensão jurídica para a sua adequada aplicação — e é sobre tais pontos que se trata este artigo.

O primeiro deles é o respeito à medicina baseada em evidências, tema que ganhou destaque com a pandemia, pois se compreendeu (finalmente) que não há direito à saúde adequadamente efetivado se não for aquele pelo paradigma científico contemporâneo mais adequado à comprovação de segurança e eficácia do tratamento. Enquanto o SUS possui mecanismos próprios de incorporação de tecnologia (como o Conitec) e a sua judicialização passou a ser analisada com mais cautela com dados e pareceres do convênio NatJus, a judicialização do sistema de saúde suplementar não possuía o mesmo crivo. Neste sentido, a decisão reforça o respeito às análises de segurança e eficácia já realizados pela ANS, ao estabelecer que primeiro se deve observar o que foi incorporado e, caso não seja suficiente, pode-se ampliar para outras possibilidades, desde que não tenha sido rejeitado expressamente pelo Comitê de Incorporação da ANS anteriormente e haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da Medicina baseada em evidências.

Como mencionamos, o SUS possui mecanismos próprios de análise de eficácia e segurança do paciente, seja para política pública de saúde (Conitec), seja para avaliação de situações concretas judicializadas (NatJus). E aqui há um problema criado pela decisão do STJ. Tanto Conitec quanto NatJus foram desenhados para lidar com a cobertura de procedimentos no âmbito do SUS, financiados com dinheiro público. Não possuem financiamento nem funcionamento adequados para lidar com a demanda reiterada e cotidiana advindas da judicialização da saúde suplementar e seguros de saúde. Além disso, a expressão "4.3: haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais e estrangeiros" deixa por demais ampla a possibilidade de avocação de outros órgãos que também não sejam formulados para tal análise, ou ainda se desvirtue o sentido de "aprovação" para "recomendação", como é o caso de um registro concedido pela Anvisa, no Brasil, ou ainda o uso compassivo ou off-label que possa ser recomendado por algum órgão estrangeiro.

Por fim, a decisão estabeleceu a possibilidade inédita de resolução adequada de conflitos complexos pelo diálogo interinstitucional com "entes ou pessoas com expertise técnica na área de saúde, incluída a comissão de atualização do rol de procedimentos em saúde suplementar". Trata-se de um mecanismo de proceduralização judicial que é estabelecido pelo Tribunal, mas sem indicar precisamente o seu conteúdo. A proposta da proceduralização, neste caso, é fomentar a jurisdição com um mecanismo sofisticado que possibilite melhor adequação de resposta jurídica a problemas complexos da sociedade, especialmente aqueles que envolvam (bio)tecnologia e cujo resultado da decisão pode ser ainda mais complexo do que o próprio problema [3]. Além disso, considerando a mutabilidade e desenvolvimento científico, a resposta jurídica não estaria fechada e definitiva, mas aberta e flexível ao influxo do desenvolvimento das novas tecnologias e do desenvolvimento da ciência.

Anteriormente falamos sobre o tema [4], demonstrando como três características precisam ser observadas para as aplicações de técnicas de proceduralização em temas que envolvam saúde: a abertura, a atualização e a prudência. Neste sentido, se o processo se tornar um espaço de diálogo interinstitucional para que possa também ser um momento de desenvolvimento institucional, é preciso que também a sociedade civil possa participar do debate, pois certamente repercutirá para outros pacientes e familiares, o que enseja melhor organização da sociedade civil para a adequada advocacy.

Quanto à atualização, importa ressaltar que o processo de um paciente não tem, no atual estado de prática processualística brasileira, instrumentos para ser o lugar adequado para debates interinstitucionais avanços de atualização — sem contar o tempo necessário para tanto, que pode atrapalhar a própria atenção em saúde do paciente que pleiteia. Por outro lado, pode ser um interessante mecanismo de ações coletivas, muito embora seja importante considerar os movimentos dados pela própria ANS que, após a Resolução ANS 470/2021 e Lei 14.307/2022, reduziu o prazo de atualização do rol de 18 meses para 180 dias e já apresentou pelo menos duas novas incorporações: a ampliação de cobertura assistencial para pacientes com transtornos globais do desenvolvimento, pela RN 539/2022, e a ampliação de cobertura de tratamento antineoplásicos de uso oral para tratamento de câncer, por meio da RN 540/2022, de 5 de julho de 2022.

Assim, a decisão do STJ abriu um novo espaço para debate, além de novos capítulos a serem observados no STF e Congresso Nacional. Mas, em todos eles, no avanço da decisão é preciso sempre se manter: a previsibilidade, a segurança e a eficácia dos tratamentos disponíveis ao paciente, como manutenção do próprio paradigma de medicina baseada em evidência para a realização do direito fundamental à saúde.

 

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

 


[3] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 1.256.

[4] FÜRST, Henderson. Proceduralização Jurídica e Biodireito. In: FÜRST, Henderson; GOUVÊA, Carina. Advocacia em bioética. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, p. 65.

Autores

  • Brave

    é presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP, diretor da Sociedade Brasileira de Bioética, doutor em Direito pela PUC-SP, doutor e mestre em Bioética pelo Cusc, professor de Bioética do Hospital Israelita Albert Einstein e professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas e da ABDConst.

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