Garantias do Consumo

Decreto 11.150/22 define mínimo existencial irrisório para superendividados

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3 de agosto de 2022, 8h02

O superendividamento é fenômeno estigmatizante que, atualmente, no Brasil, atinge uma média de 44 milhões de pessoas que não conseguem efetivar o pagamento de suas dívidas de consumo, exigíveis e/ou vincendas, sem comprometer o mínimo existencial. Em face deste consternador cenário, em 1º de julho de 2021, iniciou-se a vigência da Lei Federal nº 14.181, recentemente regulamentada pelo Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022, com efeitos preliminares a partir de 60 dias. O teor do novel édito tem causado grande preocupação em decorrência de fixar irrisório valor para a manutenção do estado vital das pessoas físicas que, de boa-fé, encontram-se impossibilitadas de efetivar a quitação dos débitos que lhes acometem [1]. Estabeleceu-se, no bojo do seu artigo 3º, como parâmetro, "a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário mínimo vigente".

Considerou-se, assim, que o montante de R$ 303,00 seria suficiente para a sobrevivência do ser humano e a satisfação das suas necessidades basilares, causando ampla e justificada irresignação por parte das entidades que atuam na defesa dos consumidores. Em manifestação sobre o tema, o Instituto Brasileiro de Direito do Consumidor apontou que "valor do mínimo existencial é afronta ao povo brasileiro. Decreto do Governo Federal coloca a população abaixo da linha da pobreza". Alerta Ione Amorim, coordenadora do Programa de Serviços Financeiros da entidade, que as novas regras permitirão que as instituições financeiras "possam utilizar quase toda a renda do consumidor para o pagamento de dívidas e juros, sobrando apenas cerca de R$ 300,00 para que as pessoas possam comer, comprar remédios e pagar o aluguel" [2].

O exame detido do decreto conduziu o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor a emitir nota técnica, em que identifica dois principais problemas que se circunscrevem à "ausência de constitucionalidade" e à "clara ilegalidade" da regulamentação. Denuncia que restou violado o "princípio da proporcionalidade" e imposta a "fragmentação dos deveres fundamentais de proteção aos consumidores", na medida em que o mínimo existencial regulamentado "inviabilizará planos de pagamento e repactuações já ajustadas e em ajustamento". O "flagrante ferimento à legalidade constitucional", segundo o Brasilcon, assenta-se no conteúdo restritivo do édito em desarmonia com a Lei nº 11.141/2021 [3].

O Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais enunciou três principais questões no conteúdo do multicitado decreto, quais sejam: 1) a sua "inconsistência" e o "esvaziamento inconstitucional da Lei 14.181/2021"; 2) excessos quanto aos limites e às possibilidades do poder regulamentar; 3) "o mínimo existencial não se limita ao mínimo vital" em face da "transversalidade do crédito". Concluiu-se que a sobredita regulamentação deverá necessariamente, "sob pena de ilegalidade e consequente nulidade", respeitar o diploma legal vigente, "mormente no que concerne ao princípio de prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor" [4].

A incompatibilidade do Decreto nº 11.150/2022 com a efetiva salvaguarda dos sujeitos afetados pelo superendividamento desvela-se incontestável. Não se amolda aos ditames internacionais, que vigoram desde o século 20, ignora normas integrantes da Constituição Federal de 1988, além de se debater, explicitamente, com o microssistema consumerista atualizado pela Lei nº 14.181/2021. A regulamentação, imposta pelo poder público federal, ressoa em absoluto descompasso com o quanto previsto no artigo 25, item 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, visto que desconsidera o direito do ser humano a um "nível de vida suficiente", que lhe assegure alimentação, vestuário, alojamento, assistência médica e o acesso aos serviços sociais necessários [5]. Viola adrede os artigos 11 e 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, pois a despeito de o Brasil tê-lo recepcionado por meio dos Decretos 591/92 e 678/92 [6], o édito não se coaduna com o "direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome" e terem "condições de existência" aceitáveis.

O malfadado decreto qualifica como portadores do mínimo existencial os que disponham mensalmente de valor que se equipara ao que a Organização das Nações Unidas intitula como "linha da miséria", ou seja, aqueles que sobrevivem com até U$ 1,90 por dia; o que corresponde a uma média de R$ 304,95 mensais [7]. A proteção constitucional do consumidor, assegurada como direito fundamental, pela Carta Maior, no artigo 5º, inciso XXXII, foi sobrepujada e inadmissivelmente inserida no mesmo patamar que a liberdade mercadológica [8]. Os direitos sociais basilares, para uma vida minimamente digna, terminaram relegados a um segundo plano, ultrajando-se o artigo 6º da Constituição Federal de 1988, assim como os fundamentos do respeito à cidadania e à dignidade da pessoa humana. Olvidaram-se os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade justa e solidária, garantindo-se a erradicação da pobreza e da marginalização.

A inconstitucionalidade do conjunto normativo, sub oculis, como apontado pelas aludidas entidades, é inquebrantável e o Brasil, assustadoramente, criou norma regulamentar em completa dissonância com o plano internacional, demonstrando postura incoerente e ausente de fundamentação. No que concerne à ilegalidade do Decreto nº 11.150/2022, constatam-se os seguintes aspectos conflitantes com o Código de Defesa do Consumidor: 1) o estabelecimento de percentual aviltante, como visto alhures, para a definição do mínimo existencial e, ipso facto, o vilipêndio ao princípio da intervenção estatal; 2) a exclusão de dívidas que, em conformidade com a legislação vigente, deveriam ser contabilizadas para a configuração do superendividamento; 3) a não atualização do montante com a progressão do salário mínimo; 4) a concentração de poderes no âmbito exclusivo do Conselho Monetário Nacional; 5) o incentivo à oferta irresponsável do crédito veementemente vedada; e 6) o desrespeito ao tratamento assegurado pela Lei nº 14.181, prevendo-se que "a repactuação preservará as garantias e as formas de pagamento originariamente pactuadas".

A delimitação do mínimo existencial é fator primordial para a aplicação das normas acopladas pela Lei do Superendividamento. Importantíssimo notar que a modus operandi para a sua apuração revela-se dissonante com o quanto previsto na legislação, uma vez determina que se considere a "contraposição entre a renda total mensal do consumidor e as parcelas das suas dívidas vencidas e a vencer no mesmo mês" [9]. A configuração do superendividamento não está atrelada apenas a uma "base mensal" do indivíduo, mas, sim, como leciona Gilles Paisant consiste em um fenômeno estrutural [10] e que não pode ser visto de forma fragmentada. O percentual estipulado denota-se totalmente incoerente com a realidade econômica dos inseridos no contexto estrutural de desequilíbrio financeiro. O verdadeiro propósito foi atender às pressões dos agentes econômicos, reduzindo-se, drasticamente, a incidência da Lei nº 14.181/2021 em atenção aos apelos das instituições financeiras. Agiu o poder público em detrimento do do princípio da intervenção estatal, eis que não cumpriu o seu dever de "ação governamental no sentido de proteger o consumidor" [11], de acordo com o artigo 4º, inciso I, alínea "c" e "d", do CDC [12]. A presença do poder público tornou-se crucial perante a autonomia privada que campeava às soltas e vindicava uma maior fiscalização e acompanhamento [13].

Existem valores que a própria Lei 14.181/2021 já havia determinado que não seriam computados para a identificação do estado de superendividamento dos sujeitos. Trata-se daquelas provenientes de contratos celebrados de forma dolosa e as decorrentes de vínculos jurídicos com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. O Decreto ampliou o rol de exclusão considerando as dívidas de consumo tão somente aquelas atinentes à destinação final [14]. O artigo 4º, parágrafo único, incisos I a III, impôs, arbitrariamente a não contabilização de despesas que podem causar forte desequilíbrio para as pessoas e que podem ser alocadas em cinco conjuntos: 1) tributos; 2) despesas condominiais; 3) operações de crédito; 4) financiamentos de atividade empreendedora ou produtiva; e 5) renegociação de dívidas mesmo que sejam de consumo.

No primeiro e segundo grupos, estão os débitos gerados pelos tributos e despesas condominiais vinculados a imóveis e móveis de propriedade do consumidor. O terceiro encontra-se composto por contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval, bem como os saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, englobando antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos. Ainda contempla os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga, os decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica, os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas. Inaceitável que tais despesas não sejam consideradas, pois estão associadas ao consumo e jamais poderiam ser desprezadas pelo governo federal. No quarto conjunto, foram expurgados os montantes gerados por atividades econômicas, mesmo que subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); o que destoa com o finalismo aprofundado ou mitigado [15].

A nítida intenção do Decreto de se atender aos apelos do setor financeiro é indubitavelmente perceptível quando se visualiza o teor da alínea "f" do inciso I do artigo 4º. Foram excluídas também as dívidas de consumo renegociadas, demonstrando-se que se almejou amputar, o mais intensamente possível, os efeitos das normas que versam sobre o superendividamento. Nesse mesmo sentido convergem os parágrafos 2º e 3º do art. 3º, porquanto impedem que o percentual do mínimo existencial acompanhe a atualização do menor piso salarial e coloca esta tarefa exclusivamente em mãos do CMN. Não respeita a existência do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e a fundamental participação democrática [16] dos órgãos e entidades que o integram quanto à fixação do montante que atinge milhões de brasileiros. As autarquias federais não são instrumentos da Política Nacional de Consumo e a denominada "captura das agências reguladoras" poderá comprometer ainda mais o grave estado destes vulneráveis [17].

A responsável e ética oferta de crédito, preconizada pela Lei nº 14.181, foi completamente menosprezada pela regra constante no artigo 5º, caput, e parágrafo 1º, incisos I e II, do Decreto. Possibilitou-se a substituição de operações de crédito anteriormente contratadas, desde que se prestem a "melhorar as condições do consumidor" e o mínimo existencial "não será considerado impedimento". Ora, como é cediço, em regra, as instituições financeiras não estão voltadas para a extremamente debilitada situação econômica dos indivíduos e tal regra viola o quanto disposto pelos art. 54-D, II, do CDC. Estatui o artigo 6º do indigitado decreto, "a repactuação preservará as garantias e as formas de pagamento originariamente pactuadas". Contempla norma que não se compatibiliza com as medidas asseguradas no artigo 104-A, parágrafo 4º, inciso I, do CDC, quais sejam: dilação dos prazos de pagamento e redução dos encargos e de remuneração da dívida. Urge, pois, que as entidades componentes do SNDC ingressem com urgente providência para a desconstituição de conjunto normativo atentatório à sobrevivência e à dignidade dos superendividados.

 


[1] Conferir a obras: BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia Martini. Comentários à Lei 14.181/2021: A Atualização do CDC em Matéria de Superendividamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. MARQUES, Claudia Lima.; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli.; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do Consumidor Endividado II. Vulnerabilidade e Inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor: mínimo existencial, casos concretos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[3] Conferir a Nota Técnica no sítio eletrônico do Brasilcon.

[4] Examinar: CALAIS-AULOY, Jean. Le crédit à la consommation: suggestion en vue d'une intervention législative assurant la protection efficace du consommateur contre le dangers du prêt lié à la vente. La semaine juridique: ed. G. Jurisprudence, Paris, Jurisclasseur, n. 18.109, 1975. CALAIS-AULOY, Jean. Les cinq réformes qui rendraient le crédit moins dangereux pour les consommateurs. Recueil Dalloz, Chron., 1975.

[5] Cf.: HOWELLS, Geraint; RAMSAY, Iain; WILHELMSSON, Thomas. Consumer law and its international dimension. In: HOWELLS, Geraint; RAMSAY, Iain; WILHELMSSON, Thomas. Handbook of Research on International Consumer Law. Elgar, 2010. BOURGOIGNIE, Thierry (Ed.). L’intégration économique et la protection du consommateur. Québec: Blais, 2009, p. 9 e seguintes.

[6] Conferir o art. 11 do citado Decreto.

[7] Conferir a Nota Técnica no sítio eletrônico do Brasilcon.

[8] Cf.: SAHIÁN, J. Dimensión Constitucional de la Tutela a los Consumidores. Diálogo con los Derechos Humanos. Buenos Aires: Thomson Reuters La Ley, 2017, p. 34-45.

[9] Conferir o art. 3º, parágrafo 1º, do Decreto.

[10] PAISANT, Gilles. La protección jurídica a los consumidores europeus: balance y perspectivas com motivo del sexagésimo aniversario de la unión europea. Revista de Direito do Consumidor, ano 26, n. 111, maio/jun., 2017, p. 377-393. GJIDARA, Sophie. L'endettement et le droit privé. Paris: LGDJ, 1999.

[11] Tratam do tema: LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2005, p. 151-152. MOSSET ITURRASPE, Jorge. Como contratar en una economia de mercado. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 1998.

[12] Assim dispõe o parágrafo 2o do art. 17 do Decreto n. 6.523/08.

[13] BARCELLONA, Pietro. Intervento statale e autonomia privata nella disciplina dei rapporti economici. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1969, p. 23-25.

[14] Note-se que, de acordo com o art. 7º, o disposto no Decreto não se aplica para fins de concessão de benefícios da assistência social.

[15] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 65.

[16] Cf.: DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Trad. de Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo:WMF Martins Fontes, 2012, p. 306.

[17] STIGLER, George J. The theory of economic regulation. Bell Journal of Economics and Management Science, 1971, p. 3.

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