Marquinhos Xukuru

Crime contra patrimônio em contexto de conflito étnico não afasta inelegibilidade

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2 de agosto de 2022, 10h19

O fato de uma conduta criminosa contra patrimônio privado ser praticada no contexto de conflitos étnico entre grupos indígenas rivais não é suficiente para descaracterizá-la como tal. Havendo condenação, incide a inelegibilidade de oito anos prevista na Lei Complementar 64/1990.

Thiago Gomes/Agência Pará
Líder indígena pernambucano foi eleito prefeito em 2020, mas não assumirá cargo
Thiago Gomes/Agência Pará

Com esse entendimento, o Tribunal Superior Eleitoral manteve o indeferimento da candidatura do Cacique Marquinhos Xukuru, que concorreu sub judice em 2020 e acabou eleito prefeito de Pesqueira (PE). A cidade terá de se submeter a eleições suplementares para escolher o novo chefe do Executivo.

A candidatura foi contestada porque o cacique foi condenado pela Justiça Federal por ter participado do incêndio de uma casa em 2003. O crime aconteceu no contexto de conflitos entre o grupo dos Xukuru de Orubá, do qual Marquinhos é líder, e os Xukuru de Cimbres.

Após o assassinato de dois membros dos Xukuru de Orubá, eles reagiram com a queima de veículos e imóveis do grupo rival. A pena final foi de 4 anos de reclusão, mas a punibilidade foi extinta por indulto concedido pela então presidente Dilma Rousseff em 18 de julho de 2016.

Para o Ministério Público Eleitoral e para a candidata Maria José (DEM), a condenação gerou a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea "e", item 2 da Lei Complementar 64/1990. A regra diz que estão inelegíveis os que forem condenados, em decisão transitada em julgado, pelos crimes contra o patrimônio privado.

Marquinhos Xukuru foi condenado com base no artigo 250 do Código Penal, que está inserido no capítulo de crimes contra a incolumidade pública. Apesar disso, o fato de ter incidido a agravante do parágrafo 1º, inciso II, alínea "a" (incêndio em casa habitada), a conduta pode ser enquadrada, também, como crime contra o patrimônio privado.

Esse foi o ponto que gerou debate e divergência no TSE. Venceu a posição do relator, ministro Sérgio Banhos, segundo a qual a condenação realmente gerou a inelegibilidade. Ele foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Carlos Horbach, Alexandre de Moraes, Mauro Campbell e Benedito Gonçalves.

Como o indulto não livra o condenado dos efeitos secundários da condenação, a inelegibilidade seguiu, apesar da extinção da punibilidade. E nos termos da artigo 1º, inciso I, alínea E da Lei Complementar 64/1990, o prazo de oito anos como inelegível começa após o cumprimento da pena — ou seja, a partir da data de indulto. O cacique Marquinhos Xukuru não poderá concorrer até 18 de julho de 2024.

TSE
Para o ministro Sérgio Banhos, o crime cometido pelo cacique teve caráter patrimonial apto a atrair inelegibilidade
TSE

Bem econômico ou sobrevivência?
Relator, o ministro Sergio Banhos aplicou jurisprudência do STJ para firmar o caráter patrimonial do crime de incêndio contra casa habitada. E citou jurisprudência do TSE no sentido de que exame das causas de inelegibilidade por condenação criminal deve levar em conta bem jurídico protegido.

O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator destacando que o crime de incêndio previsto no artigo 250 do Código Penal tutela a incolumidade física, mas protege também a integridade física e o patrimônio privado. "E aqui, a qualificadora foi exatamente a questão patrimonial", destacou.

Abriu a divergência e ficou vencido o ministro Luiz Edson Fachin, que propôs uma análise a partir do contexto em que se deu o crime. O episódio do incêndio gerou uma das condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O tribunal internacional considerou que houve perseguição política e que o governo não garantiu proteção e propriedade coletiva da terra das populações tradicionais.

Segundo o presidente do TSE, o que estava em jogo no incêndio não era a casa como bem econômico, mas a sobrevivência e a existência da comunidade indígena. "O aspecto econômico e a patrimonialidade, relevantes sim, não são a questão central para tornar inelegível o candidato", ressaltou.

Abdias Pinheiro/SECOM/TSE
Para o ministro Fachin, o que estava em jogo no incêndio não era o bem econômico, mas a sobrevivência da comunidade indígena.
Abdias Pinheiro/SECOM/TSE

Defendeu que não cabe à corte reduzir todos conflitos a um padrão de conflito que, historicamente, parte de uma visão socioeconômica que não se enquadra à situação das brigas étnicas indígenas brasileiras. "Do ponto de vista técnico, não há causa jurídica para inelegibilidade", defendeu, isoladamente, o ministro Fachin.

Tramitação caótica
O caso do Cacique Marquinhos Xukuru começou a ser julgado pelo TSE em dezembro de 2020 e teve trâmite um tanto caótico. Ele foi iniciado duas vezes no Plenário virtual, mas reiniciado por pedidos de destaque.

Em uma das vezes em que foi ao Plenário físico/telepresencial, houve ordem de sobrestamento. Isso porque havia no Supremo Tribunal Federal uma ação que contestava a constitucionalidade de um trecho do artigo 1º, inciso I, alínea "e", item 2 da Lei Complementar 64/1990.

Caberia ao STF definir se a lei, ao prever que a inelegibilidade pela condenação criminal começa após o cumprimento da pena, permitiria uma espécie de inelegibilidade indeterminada, o que contrariaria o princípio da proporcionalidade e comprometeria o devido processo legal. Em março de 2022, o STF decidiu não conhecer da ação.

REspe 0600136-96.2020.6.17.0055

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