Opinião

Quem fomenta a indústria do dano moral? Crítica do Código de Defesa do Consumidor

Autor

  • Marcos Vinicius Mota Santos Silva

    é advogado graduado pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) pós-graduado pela Faculdade Guanambi pós-graduando em processo Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e em Direito do Consumidor pelo Instituto Legale.

2 de agosto de 2022, 11h07

A subversão da lógica dos princípios da lei que protege os consumidores em território nacional, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), tem de modo corriqueiro e inadvertido levado a conclusões jurisprudenciais que reduzem sobremaneira seu alcance e eficácia e o despertar para sua análise teleológica poderá evitar que este moderno e reconhecido microssistema jurídico caia, ainda que parcialmente, em letra morta.

Para tanto, é necessário compreender o movimento jurisprudencial das mais diversificadas cortes brasileiras que ou mantém ou reconhecem em seus níveis de jurisdição algo de difícil de compreensão, isto é, a existência de ato ilícito não punível, que culmina na já banalizada expressão de que, embora reconhecida a conduta ilícita do fornecedor de produtos ou serviços, tal conduta constitui "mero aborrecimento" e que em decorrência deste dissabor cotidiano a que todos, inclusive consumidores lesados, estão expostos, conclui-se pela anômala figura jurídica do ato ilícito impunível com o claro e evidente escopo de se evitar o fomento da "indústria do dano moral".

Em síntese, o sistema de justiça brasileiro, sobretudo em matéria consumerista, tem não raramente decidido pela existência e possibilidade de um dano juridicamente reconhecido, mas que, supostamente de tão pequeno e corriqueiro, impassível de sofrer a reprimenda do Estado-Juiz, o qual abdica de sua essencial função de punir e pedagogicamente corrigir a existência de abusos e desrespeitos ao CDC, pelo que não raramente passam incólume sob o olhar do Judiciário.

Tais decisões, ao revés, abertamente criticam o exercício constitucional do acesso amplo ao Judiciário, seja exigindo o esgotamento de vias administrativas para a solução das mais variadas violações ao consumidor — fato inexistente no ordenamento jurídico pátrio , dificultando-se a consecução do Constitucional Princípio da Inafastabilidade do Judiciário, seja minimizando as relações de consumo e suas violações, por vezes criminosas, a ilícitos impuníveis por constituírem "mero aborrecimento".

Sob o equivocado argumento de se evitar que o Judiciário seja a mola propulsora de um inexistente crescente fomento ao ajuizamento de demandas  a famigerada indústria do dano moral ,  a jurisprudência tem formado reiterados entendimentos do dano não punível, menos grave, reconhecidamente ilícito, porém impunível por não violar o "status dignitatis" e os direitos mais comezinhos da Personalidade Humana, colocando em segundo plano atos ilícitos das grandes corporações que multiplicados aos milhares geram indubitavelmente a sensação de que não respeitar a Lei de Consumo pode valer a pena.

A esse respeito, o mestre Rafael Tocantins Maltez, juiz de direito, nos ensina (2014):

O "quantum" indenizatório deve ser alto, de sorte a propiciar uma compensação para o lesado e uma punição justa e equânime para o agente lesante, visando coibir novos abusos.

Não há que se falar em enriquecimento sem causa, posto que, há muito além de aspectos materiais e morais nesta demanda, mas sim, há verdadeiro aspecto social.

A conduta do demandado, deve ter o condão de ofender à massa de seus consumidores, o que, por si só, caracteriza a existência de danos morais a serem reparados.

Da mesma obra, colaciono o seguinte trecho:

"A indenização punitiva surge, no sistema jurídico vigente, não apenas como reação legítima e eficaz contra a lesão e a ameaça de lesão a princípios constitucionais da mais alta linhagem, mas como medida necessária para a efetiva proteção desses princípios. Com efeito, não é possível, em certos casos, conferir efetiva proteção à dignidade humana e aos direitos da personalidade senão através da imposição de uma sanção que constitua fator de desestímulo ou dissuasão de condutas semelhantes do ofensor, ou de terceiros que pudessem se comportar de forma igualmente reprovável. Não é possível contar apenas com a lei penal e com penas públicas para prevenir a prática de atentados aos direitos da personalidade. A lei tipicamente penal não tem como prever, em tipos delituosos fechados, todos os fatos que podem gerar danos injustos, razão pela qual muitas ofensas à dignidade humana e a direitos da personalidade constituem indiferentes penais e, por conseguinte, escapam do alcance da justiça criminal. Além disso, por razões diversas, nem sempre a sanção propriamente penal, oriunda de uma sentença penal condenatória, se mostra suficiente como forma de prevenção de ilícitos. Nesse contexto, a indenização punitiva constitui instrumento indispensável para a prevenção de danos aos direitos personalíssimos"(página 169).

Assim é que o valor a ser arbitrado a título de danos morais deve ter finalidade intimidativa, situando-se em patamar que represente inibição à pratica de outros atos abusivos por parte das demandadas.

É imperioso que a Justiça dê ao infrator resposta eficaz ao ilícito praticado, sob pena de se chancelar e estimular o comportamento infringente.

O alto valor a ser arbitrado é justo, posto que, as operadoras deliberadamente ignoram, descumprem e dão risadas das decisões judiciais que arbitram valores pequenos, afinal, tais valores não são aptos a reprimir as condutas lesantes dos agentes.

O indigitado magistrado nos assevera em sua análise que não apenas o reconhecimento da ocorrência do dano, mas a certeza de uma punição equânime e verdadeiramente dissuasora da lesiva prática em face do consumidor atingirá a função social, de escopo público. De outro giro, servirá tão somente como "razão de risada" das grandes corporações.

O objetivo do direito, na ótica da Análise Econômica do Direito, é o de analisar as normas legais de modo a promover a eficiência, o que implica a maximização do bem-estar social (POSNER, 2007). Leis ou políticas públicas mal elaboradas levam à insegurança jurídica, reduzindo o bem-estar.

É evidente a defesa de decisões que atentam aos princípios básicos da análise econômica do direto, ciência amplamente difundida nas Universidades de Chicago e Harvard, além da brasileira UERJ, com estudos sob os quais debruçam-se em profundas e práticas divagações sobre a viabilidade, custos e eficácia das decisões judiciais e de todo processo como um todo.

Certo é que o magistrado deva conhecer, ainda que com base empírica, da realidade econômica do ofensor das relações de consumo, promovendo em sua decisão alterações logística capazes de reduzir a incidência de casos e tornando dispendioso a continuidade de práticas lesantes e ilícitas em face do consumidor, cumprindo-se a função social da defesa do consumidor e evidentemente reduzindo a ocorrências de ações judiciais com mesmo objeto, posto que com as adequações devidas não terão novos consumidores a necessidade/possibilidade jurídica de demandar por assuntos já adequados pelas empresas.

Conclui-se, portanto, que a indústria do dano moral, se existente como propalada, decorre, em verdade, da indústria dos atos ilícitos advindos de comportamentos ilegais e contra o CDC perpetrados pelos fornecedores, além do descumprimento primaz da função social que decorre, por vezes, de decisionismos judiciais desconectados com as causas da manutenção desses mesmos atos ilícitos perpetrados contra o consumidor.

Negar acesso pleno e efetivo ao judiciário ou permiti-lo reconhecendo-se as violações contra o consumidor, mas com subterfúgios em situações de "meros aborrecimentos", são indubitavelmente as causas maiores da manutenção dos ilícitos e do grande fomento da prevalência dos mais fortes, antiga lei da selva, ultrapassada em nosso estágio civilizatório  em que o consumidor tem a seu favor a vulnerabilidade da relação.

Bibliografia
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral e indenização Punitiva. Rio de Janeiro: Forenses, 2006.
MALTEZ, Rafael. Envio de mensagens publicitárias eletrônicas para celulares em horários inadequados. 2014. Disponível em: https://rafaelmaltez.jusbrasil.com.br/artigos/158907378/envio-de-mensagens-publicitarias-eletronicas-para-celulares-em-horarios-inadequados.
POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito, tradução: Jefferson Luiz Camargo, 2014.
SCHMID, Allan A. Law and Economics: An Institutional Perspective in MERCURO, Nicholas. Law and Economics. Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989.

Autores

  • é advogado, graduado pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), pós-graduado pela Faculdade Guanambi, pós-graduando em processo Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e em Direito do Consumidor pelo Instituto Legale.

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