Opinião

Contexto das emendas parlamentares no orçamento dos Estados Unidos

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2 de agosto de 2022, 19h33

O tema das emendas orçamentárias vem tendo papel de destaque nos debates sobre o orçamento federal brasileiro dos últimos anos. E tal atenção vem sendo conferida, em boa parte, às emendas do relator-geral do orçamento, as quais, de forma anômala, implicaram gastos de bilhões de reais nos últimos dois anos [1].

Mas será que as citadas ferramentas orçamentárias, de teor não programático e direcionado, também encontram espaço de relevância no processo orçamentário federal de países como os Estados Unidos (e nas correlatas discussões envolvendo a matéria orçamentária)?

Conforme se verifica por meio deste estudo, apesar das emendas orçamentárias lato sensu serem observadas (e também questionadas) nos Estados Unidos, a correlata aplicação e abordagem se dá de forma distinta daquela ocorrida em território nacional brasileiro.

E o bom alinhamento entre os Poderes Executivo e Legislativo tem sido fundamental para o bom uso de ferramenta tão importante para uma maior democratização do uso da verba orçamentária.

Contexto das emendas orçamentárias no Brasil e nos EUA
É notório que o tema das emendas orçamentárias retornou à pauta dos debates nacionais desde o surgimento do que se chama de orçamento impositivo [2]. No passado, mais especificamente em 1994, as emendas orçamentárias já eram objeto de discussões em virtude do escândalo de corrupção envolvendo parlamentares brasileiros, o esquema intitulado de Anões do Orçamento [3].

Seja qual for a sua espécie, as emendas individuais, de bancada, de comissões e de relatoria têm alcançado papel institucional de relevância no processo orçamentário federal brasileiro. E a referida existência se mostra marcada por debates atrelados à falta de transparência de gastos e a um enredo mais amplo concernente à luta entre os Poderes Executivo e Legislativo quanto ao manejo das dotações orçamentárias federais.

Guardadas as devidas diferenças políticas e orçamentárias entre o Brasil e os Estados Unidos, verifica-se que o fenômeno de incremento das interferências de congressistas (ou de grupo de congressistas) no orçamento federal americano também ocorre no bojo do correlato processo orçamentário. A referida roupagem é, entretanto, diferenciada da brasileira.

Assim, costumeiramente denominadas de earmarks e, historicamente, desprovidas de qualquer caráter jurídico-normativo, as dotações individualizadas e direcionadas no orçamento federal americano parecem ressurgir com nova roupagem, depois de um banimento de dez anos, integrando-se a um conjunto de medidas institucionais tendentes ao acréscimo de transparência e responsividade [4].

As earmarks no processo orçamentário dos EUA
Para a agência governamental americana responsável pela coordenação do orçamento no âmbito do Poder Executivo, o Office of Management and Budget (OMB), as earmarks consistem em "fundos para projetos, atividades ou instituições não solicitadas pelo Executivo, ou complementos de fundos que o Congresso direciona para atividades específicas" [5].

Assim, mesmo que desprovidas de previsão jurídico-normativa, ou de definição formal, observa-se que as earmarks vinham sendo amplamente utilizadas no bojo do processo orçamentário federal americano até o ano de 2011 [6], data em que o Congresso dos Estados Unidos, em concordância com o presidente Barack Obama, decidiu pela suspensão do seu uso [7].

Entendidas por seus críticos como mecanismos de troca de favores eleitorais e de incentivo à corrupção, nota-se naquele país um movimento de incremento dos argumentos favoráveis às earmarks. Para os seus defensores, as earmarks contribuem para melhores níveis de responsividade e de uma efetiva e concreta facilitação da participação popular no processo orçamentário federal [8].

De tal maneira, sob a percepção de que as earmarks viabilizam um melhor atendimento das necessidades de pequenos grupos da sociedade e/ou dos cidadãos, verifica-se, no final de 2021, decisão conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo pelo retorno do referido instrumento à conjuntura do processo orçamentário americano. As earmarks passam a vigorar sob a rubrica do Community Project Funding [9].

Community Project Funding e a nova perspectiva das dotações orçamentárias dirigidas nos Estados Unidos
No bojo da 117ª sessão do Congresso americano, de 2021, dá-se a reinstituição dos earmarks e da possibilidade de realização de despesas congressuais diretas, o que se verifica por meio de instrumento denominado de Community Project Funding, ou CPF.

Apesar de sua semelhança com as earmarks, nota-se que o Community Project Funding passa a vigorar mediante uma série de novas determinações procedimentais. Tudo isso, tal como amplamente divulgado quando da sua instituição, para fins de combate ao uso abusivo dos referidos instrumentos de dotação dirigida [10].

Em tais linhas, verifica-se que o Community Project Funding passa a existir em conformidade com algumas exigências voltadas a agregar transparência, controle de seu alcance, rigor na sua verificação e uma maior participação comunitária [11], dentre as quais:

1. A necessidade de realização dos pedidos de verbas públicas direcionadas, de forma exclusiva, pelos endereços eletrônicos estabelecidos para o referido intuito;

2. A exigência de formalização, pelos parlamentares responsáveis pela requisição, de declaração de ausência de interesse pessoal quanto ao direcionamento das correspondentes verbas públicas;

3. A imposição do limite de 10 projetos com subsídio das referidas verbas direcionadas por cada parlamentar;

4. A determinação de limite do valor dos recursos públicos direcionados aos CPFs em montante de até 1% das verbas discricionárias;

5. A exigência de prévio apoio local quanto ao direcionamento das referidas verbas; e

6. A vedação da disponibilização de recursos públicos para entidades com fins lucrativos.

Mesmo diante da ausência de uma efetiva verificação do sucesso das recentes medidas do Community Project Funding no combate ao mal uso do instrumento das emendas parlamentares, é inegável o papel de destaque que tais ações vêm tendo para o sucesso no retorno do uso das emendas parlamentares nos Estados Unidos.

Assim, com amplo apoio em ambas as Casas Legislativas, o Community Project Funding também tem recebido grande suporte por parte do Poder Executivo americano. E isso tem se refletido no tamanho do aporte orçamentário feito a título de Community Project Funding, para o ano fiscal de 2022, que girou em torno de 9 bilhões de dólares [12].

Conclusão
Tal como aqui no Brasil, as emendas parlamentares consistem em ferramentas já conhecidas por países como os Estados Unidos, no qual os debates envolvendo o tema também são destaque nos jornais.

Contudo, apesar das críticas com relação às emendas parlamentares terem provocado a proibição de seu uso nos Estados Unidos, verifica-se que, em 2021, o instrumento foi reinstituído no país sob uma nova roupagem, uma versão oficial e burocratizada das extintas earmarks: o Community Project Funding.

Apesar das diferenças existentes entre os processos orçamentários dos Estados Unidos e do Brasil, e do corrente uso de algumas das medidas realizadas no bojo do Community Project Funding em território nacional brasileiro, convém observar as possibilidades encontradas pelos Estados Unidos para a melhoria do debate sobre instrumento tão relevante para o alcance dos interesses de grupos menores e de cidadãos.

Assim, um ponto que se destaca no contexto americano consiste no interesse conjunto do Executivo e do Legislativo pela permanência do referido instrumento. E de forma alinhada com medidas de controle de transparência e de responsividade.

Este artigo expressa a opinião dos autores, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.


[2] O "orçamento impositivo" diz respeito à parte do Orçamento-Geral da União com definição pelos parlamentares e sem sujeição a alteração pelo Poder Executivo. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/02/orcamento-impositivo-entenda-como-funciona-e-o-que-esta-em-analise-pelo-congresso.ghtml. Acesso em 20 de junho de 2022.

[3] No bojo do relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, restou sugerida a exclusão do mecanismo das emendas. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/ 84896. Acesso em em 20 de junho de 2022.

[5] Tradução livre de: "fund for projects, activities, or institutions not requested by the executive, or add-ons to requested funds which Congress directs for specific activities". Disponível em https://sgp.fas.org/crs/misc/m012606.pdf. Acesso em 10 de junho de 2022.

[6] No endereço eletrônico da instituição Open Secrets, é possível que se encontre informações de valores e de beneficiários de cada uma das earmarks propostas por cada um dos parlamentares para a 111ª sessão, do ano fiscal de 2010. Disponível em: https://www.opensecr ets.org/earmarks/. Acesso em 20 de junho de 2022.

[7] FOX, Laura; DIAZ, Danielle. House Republicans reverse earmark ban, opening door to both parties using the formerly banned practice. CNN. 17 de março de 2017. Disponível em: https://edition.cnn.com/2021/03/17/politics/house-republicans-earmarks-spending-practice/index.html. Acesso em: 2 de junho de 2022.

[8] HUDAK, John. Earmarks are back, and Americans should be glad. Brookings. 2021. Disponível em: https://www.brookings.edu/blog/fixgov/2021/03/17/earmarks-are-back-and-americans-shoul d-be-glad/. Acesso em 3 de junho de 2022.

[11] COULTER, Hannah; BARKOVIC, Lisa; GOLD, Rich; BRANDER, Robert. Congress Launches FY 2023 Community Project Funding Process After Successful Revival. Holland & Knight. 2022. Disponível em: https://www.hklaw.com/en/insights/publications/2022/04/congress-launches-fy-2023-community-project-funding-process. Disponível em: https://appropriations.house.gov/sites/democrats.appropriations.house.gov/files/documents/Community%20Project%20Funding%20-%20Fact%20Sheet%20on%20Reforms_0.pdf. Acesso em: 3 de junho de 2022.

[12] COULTER, Hannah; BARKOVIC, Lisa; GOLD, Rich; BRANDER, Robert. Congress Launches FY 2023 Community Project Funding Process After Successful Revival. Holland & Knight. 2022. Disponível em: https://www.hklaw.com/en/insights/publications/2022/04/congress-launches-fy-2023-community-project-funding-process. Disponível em: https://appropriations.house.gov/sites/democrats.appropriations.house.gov/files/documents/Community%20Project%20Funding%20-%20Fact%20Sheet%20on%20Reforms_0.pdf. Acesso em: 3 de junho de 2022.

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