Opinião

"A Mulher da Casa Abandonada" e o direito ao esquecimento

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2 de agosto de 2022, 20h22

Muito tem se falado de Margarida Bonetti desde o mês passado, devido ao popular podcast de Chico Felitti (Folha de S.Paulo) com o título "A Mulher da Casa Abandonada". Se você não ouviu o podcast, certamente viu os memes e os diversos comentários (maldosos) sobre o caso.

Reprodução/TV Record
Velho casarão em Higienópolis, São Paulo
Reprodução/TV Record

Resumindo, é a história de uma mulher que vive em um casarão localizado em Higienópolis. Até aí tudo bem, se a casa não estivesse caindo aos pedaços — num dos bairros mais nobres de São Paulo — e a mulher não fosse uma procurada do FBI.

Melhor dizendo, Margarida Bonetti NÃO é mais uma procurada do FBI, pois seus crimes prescreveram. Em 2000, ela e seu então marido, Renê Bonetti, foram denunciados por sua empregada doméstica, por sujeitá-la a trabalho análogo à escravidão por mais de 20 anos.

Margarida e Renê são brasileiros, mas foram morar nos Estados Unidos quando ele recebeu uma proposta de emprego. Acabaram levando a empregada, que já trabalhava com a mãe de Margarida havia muitos anos aqui no Brasil.

Durante os 20 anos que moraram nos EUA, a empregada contou que sofreu diversos abusos, como todo tipo de violência física (como tapas e até água quente jogados em seu rosto), restrição na alimentação, negação de atendimento médico e o não pagamento de salário… por todo esse tempo.

Quando a empregada finalmente conseguiu denunciar os crimes, Margarida fugiu para o Brasil e Renê acabou sendo preso e julgado. Ficando seis anos encarcerado nos Estados Unidos.

É um crime horroroso? Sim. Este tipo de crime deveria ser crime hediondo? Com certeza. Mas o que estão fazendo com Margarida Bonetti é legal? NÃO.

Margarida, hoje, tem 68 anos e vive sozinha em sua casa decadente, em condições precárias, repleta de sujeira e caos, o que já nos dá um alerta, pois ninguém deveria viver em condições assim.

Desde o primeiro episódio do podcast sua vida foi virada de cabeça para baixo, pois inúmeros vândalos passaram a pichar a sua casa, pessoas passaram a xingá-la, curiosos tiram fotos e fazem turismo em sua casa, como se fosse uma animal em exposição, entre outros tipos de ataques.

Dado o contexto social, vamos passar para o contexto jurídico.

Mas antes, quero fazer uma ressalva: de modo algum justifico aqui os crimes abomináveis cometidos por essa senhora. E de forma alguma, acho que é admissível sujeitar qualquer ser humano a trabalhos degradantes, fisicamente abusivos e humilhantes.

Comecemos do início.

Porque Margarida Bonetti não foi presa?

Lendo o artigo 5º da Constituição, vemos em seu inciso LI o seguinte texto "Nenhum brasileiro será extraditado (…)", ou seja, como Margarida saiu dos Estados Unidos (país competente para julgar o caso, pois foi lá que tramitou o processo e o local do crime) ANTES da tramitação processual, e o Brasil não pode extraditá-la.

O FBI não pode "meter o pé na porta" e chegar prendendo brasileiros que cometerem crimes em sua pátria, pois violaria a soberania nacional. Mas o governo dos EUA poderia ter emitido uma carta rogatória para a Justiça brasileira, informando os crimes para que, assim, ela fosse julgada aqui pelos crimes cometidos por lá.

Isso não foi feito pelo governo americano.

Por que Margarida não pode mais ser presa?

Vamos supor que o governo americano peça a colaboração da justiça brasileira, e expeça a carta rogatória. Ainda assim, ela não poderia mais ser presa, pois o crime já está prescrito.

No artigo 109 do Código Penal encontramos os prazos prescricionais. Vamos imaginar o pior cenário, no qual Margarida fosse condenada há mais de 12 anos de reclusão, seu crime prescreveria em 20 anos. A denúncia da empregada foi em 2000, estamos em 2022. Ou seja, faz dois anos que prescrevera.

E agora? Nada. Nada mais pode ser feito em relação a esse crime.

É frustrante, eu sei. Também me sinto desamparada de imaginar que alguém que cometeu as atrocidades que ela cometeu esteja livre por aí, vivendo tranquilamente, sem o peso da Justiça e do Estado sob suas costas abusadoras.

O que cabe a nós, cidadãos? Votar melhor, ouvir as propostas dos nossos políticos, cobrar ações, ver se as ideias de reforma social, políticas e legais estão alinhadas com o que nós queremos para o Brasil e para a justiça.

Sabe o que não pode? Confundir Justiça com vingança. Vejo muitos comentários de pessoas que querem praticar o "ódio do bem", tripudiando, humilhando e querendo fazer "justiça" com as próprias mãos.

É importante trazer o direito ao esquecimento, que apesar de ser um assunto novo no Brasil, é muito discutido em doutrina e decisões judiciais.

Esta faculdade debate o direito de que um indivíduo possa ter, para que um fato passado não seja mais exposto ao público, pois causaria transtornos e sofrimento a pessoa.

Sem previsão legal no Brasil, esse tema fora pacificado no Enunciado 531 do CJF/STF em 2013 (sem força de lei) trazendo o entendimento: "A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento".

Todavia, esse direito é bastante polêmico, pois vai na contramão da liberdade de expressão, acesso à informação, a vedação da censura e a liberdade de informação jornalística, temas garantidos constitucionalmente.

Pessoalmente, acredito que esse direito é válido, porque é uma questão humanitária. Até quando uma pessoa tem que ser lembrada e julgada socialmente por um crime? Até onde é válido segregar socialmente alguém? Existe algum crime que não permita que uma pessoa se reintegre a sociedade, livre de estigmas e preconceitos? Todos merecem uma segunda chance? Não seria desumano fazer alguém carregar o peso de uma condenação para sempre (neste caso nem condenada ela fora). Onde fica a dignidade da pessoa humana, garantido pelo artigo 1º, inciso III da nossa Carta Magna?

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