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O que fazer depois da carta às brasileiras e aos brasileiros?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

2 de agosto de 2022, 8h00

Louvo a iniciativa da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros que tem à frente a Diretoria da Faculdade de Direito da USP, professores Celso Campilongo e Ana Elisa Bechara, e que já foi assinada por quase 1 milhão de pessoas em menos de uma semana, o que representa cerca de 0,5% da população brasileira (se quiser assinar, use este link).

Spacca
Não há dúvidas que a democracia é importante e imprescindível e a carta o afirma, porém entendo que é insuficiente, pois outras pautas devem ser perseguidas após esta exitosa iniciativa. Afinal, democracia não se esgota nas eleições; é necessário que as instituições também sejam democráticas.

A partir de 1º de janeiro de 2023 teremos novos governantes nos Poderes Executivos e Legislativos nos estados e na União. Qual missão extraordinária eles devem desempenhar? A ordinária todos conhecem: cuidar da saúde, educação, saneamento, lazer, cultura etc. Qual a missão extraordinária, à luz da experiência dos últimos anos, independentemente de quem vença as eleições?

Entendo que deve ser feito um esforço para redesenhar diversas instituições que não estão funcionando a contento, pois sua estrutura jurídica não está respondendo de forma republicana e democrática. Todas já existiam, mas não foram tão colocadas à prova como agora, motivo pelo qual se tornou claro o necessário redesenho jurídico. Seguem alguns exemplos.

Comecemos pelo instituto do impeachment que está inadequado em vários pontos, em especial na capitulação das infrações, com tipos muito abertos, pois foi criado com os olhos voltados ao parlamentarismo, conforme exposto por Rafael Maffei. Apenas um detalhe para comprovar o mau desenho jurídico: não é democrático concentrar o poder decisório nas mãos exclusivas do presidente da Câmara dos Deputados. Já existe uma comissão de alto nível instalada pelo Presidente do Senado estudando a matéria.

É igualmente inadequada a centralização de diversas medidas judiciais e extrajudiciais exclusivamente nas mãos do procurador-geral da República. Uma hipótese seria permitir que um colegiado seja ouvido e decida a respeito, com duplo grau decisório. Isso pode ocorrer através de uma medida legislativa ou interna corporis, mas deve ser considerada sob a ótica da ampliação da democratização nesse nível decisório.

Aspecto igualmente importante diz respeito ao processo legislativo, hoje vastamente vilipendiado, afinal, o produto daquele texto se tornará lei, obrigatória para todos os brasileiros. Dois exemplos: (1) Os projetos de lei devem ser votados nas Comissões, e não apenas no Plenário das Casas, pois isso dificulta o amplo conhecimento da matéria e o efetivo debate de ideias, como ocorreu na votação do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2021, e possivelmente em outras ocasiões. (2) É necessário fortalecer as normas, como as que determinam o interregno de algumas sessões para que a matéria seja apreciada. Isso foi descumprido na votação da EC 123/22, por meio de um singelo requerimento, conforme já comentado.

No que se refere ao processo eleitoral a situação se torna ainda mais complexa, pois desde 1988 não foram realizadas duas eleições sob as mesmas regras, o que é inacreditável. Também salta aos olhos a violação ao princípio da paridade de armas, imprescindível para que todos os candidatos tenham iguais oportunidades. Nesse sentido, o pacote de bondades aprovado pela EC 123/22 é sintomático, pois os diversos auxílios serão distribuídos à mão larga (R$ 41 bilhões) e creditados politicamente à conta do grupo que busca reeleição, com a conivência da emparedada oposição. Parece que os políticos descobriram que existem brasileiros necessitando de ajuda apenas agora, há menos de 90 dias das eleições…

É imprescindível ampliar a democracia partidária no Brasil, porque apenas uma pequena cúpula controla o uso do dinheiro público injetado nos partidos e escolhe quem o vai receber, o que acarreta um verdadeiro compadrio na escolha dos candidatos, privilegiando os donos dos partidos. Sem democracia partidária a democracia no Brasil será capenga.

No âmbito orçamentário é necessário redesenhar as diversas espécies de emendas parlamentares, pois fracionam o uso do dinheiro público, dirigindo recursos à margem de políticas que devem ser necessariamente públicas, e não individuais, com destaque para a excrecência das emendas de relator, que se constituem em um orçamento secreto de mau uso republicano.

É igualmente inaceitável que se aplique 100 anos de sigilo a qualquer ato ou fato corriqueiro da vida pública desse país, conforme exposto (ver aqui). Não é republicano que só após um século tais fatos se tornem públicos.

Outra instituição que merece atenção é o STF, que acumula poderes incomparáveis, pois exerce o controle concentrado de constitucionalidade, próprio do modelo europeu continental, mas seus ministros são vitalícios, como no modelo norte-americano, o que reúne poderes nas mesmas pessoas por muito tempo. Deve-se pensar em mandatos, tal como ocorre nas cortes constitucionais europeias, o que congregaria democracia e república.

O federalismo é outra instituição a ser redesenhada, visando verdadeiramente ampliar a autonomia de estados e municípios, e que é importante para a desconcentração do poder em Brasília, sendo outra pauta democrática a ser analisada.

Rever o desenho jurídico da arrecadação (reforma tributária) e da despesa pública é outra preocupação que deve ser prioritária aos novos governantes, a fim de que haja democracia e república no uso do que é retirado da sociedade e gasto pelo poder público, com amparo na capacidade contributiva e receptiva.

Enfim, são muitos os desafios extraordinários à frente dos novos governantes deste país, sem que isso implique em uma nova constituinte, pois muitos aspectos da atual Carta vêm cumprindo a contento suas funções, como no amplo leque de direitos fundamentais e sociais nela estabelecidos. Nesse âmbito, é necessário ampliar e acelerar sua efetivação, e não os redesenhar.

Não sei se apenas quatro anos serão suficientes para tudo isso, mas é outro passo que deve ser dado de imediato. A Carta às Brasileiras e aos Brasileiros é só um (re)começo. Existe muito trabalho à frente.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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