Opinião

Criação de órgão pericial autônomo à luz do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil

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1 de agosto de 2022, 13h08

Em 1996, o Brasil reconheceu perante o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas que era necessário tomar medidas para dar fim à impunidade das violações de direitos humanos por autoridades policiais, "provocadas por um funcionamento excessivamente lento das engrenagens da justiça, fruto, por sua vez, em muitas ocasiões, da incapacidade dos estados de realizar uma investigação policial eficiente" [1]. Infelizmente, desde o caso Favela Nova Brasília, ocorrido em 1994 e 1995 no Rio de Janeiro, até os dias atuais, a resolução dessa problemática permanece urgente.

Em 2020, o Brasil atingiu o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais (MDIP) desde que o indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com 6.416 vítimas fatais de intervenções de policiais civis e militares da ativa, em serviço ou fora [2].

As polícias estaduais produziram, em média, 17,6 mortes por dia. Desde 2013, primeiro ano de monitoramento do indicador, o número de mortes por agentes do Estado cresceu em 190%. Há de se atentar, aqui, para o crescimento mesmo em um cenário de pandemia da Covid-19, no qual a circulação de pessoas foi reduzida, tal qual a quantidade de crimes contra o patrimônio cometidos.

Em se tratando de violência policial, faz-se necessário salientar que, além de apresentar a quinta maior taxa de letalidade policial do Brasil, o RJ lidera em números absolutos as mortes pela polícia. Segundo o FBSP [3], em 2019, 1.814 pessoas foram mortas por policiais em serviço e fora de serviço. Já em 2020 o número caiu para 1.245 pessoas mortas pela polícia no estado, principalmente em virtude da determinação do Supremo Tribunal Federal quanto à suspensão das operações policiais nas favelas durante a pandemia do coronavírus em face da ADPF 635 [4].

Entretanto, apesar da redução no número absoluto de mortes em 2020, o Rio de Janeiro apresenta sete dos dez municípios com as maiores taxas de letalidade policial do país [5]: Japeri, Itaguaí, Angra dos Reis, São Gonçalo, Queimados, Mesquita e Belford Roxo. Além disso, somente em 2021, houve 61 chacinas no Grande Rio, sendo uma delas a operação mais letal da história da polícia do Rio de Janeiro, na qual 28 pessoas foram mortas: a chacina do Jacarézinho. Recentemente, em 2022, o cenário parece se repetir com a chacina da Vila Cruzeiro, quando 23 pessoas foram mortas durante uma operação policial ocorrida em 24 de maio, na Vila Cruzeiro, zona norte do Rio de Janeiro, e com a quarta operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro realizada pelo Bope e pelo Core no último dia 21 de julho no Complexo do Alemão, a qual resultou em 18 mortes.

Nesse contexto, se faz importante rememorar a decisão do caso Favela Nova Brasília, quando pela primeira vez o Brasil foi condenado internacionalmente por reconhecida violência e negligência policial. O caso em questão trata das duas operações policiais ocorridas nos dias 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995 na Favela Nova Brasília, Complexo do Alemão, que resultou em 26 homens vítimas de homicídio e três mulheres vítimas de violência sexual [6].

À época, ambas as incursões foram investigadas tanto pela Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, quanto pela Comissão de Investigação policial instaurada pelo governador do estado.

Além disso, o caso tramitou primeiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sendo iniciado através das petições apresentadas pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e pela Human Rights Watch Americas, em 1995 e 1996. Em de setembro de 1998 e fevereiro de 2001, a comissão emitiu os relatórios de admissibilidade relativos aos dois episódios e, em seguida, juntou os casos para que tramitassem conjuntamente.

Em 2011, a comissão emitiu então o Relatório de Mérito nº 141/2011, conforme o artigo 50 da Convenção Americana, no qual chegou a uma série de conclusões e postulou recomendações ao Estado brasileiro, considerando inclusive que, em 2009, a pretensão punitiva do estado brasileiro quanto às ações penais em questão fora extinta, uma vez que ultrapassado o lapso temporal máximo prescrito na legislação doméstica [7]. O Estado foi notificado quanto ao relatório em questão em 2012, sendo concedido um prazo de dois meses para informar sobre o cumprimento das recomendações, as quais não foram atendidas, mesmo frente a dois adiamentos.

Nesse cenário, "diante da necessidade de obtenção de justiça", a Comissão IDH submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos as ações e omissões do Estado brasileiro que ocorreram, ou continuaram ocorrendo, subsequentes a 10 de dezembro de 1998, data de aceitação da competência da corte pelo Estado, "sem prejuízo de que o Estado pudesse aceitar a competência da Corte para conhecer da totalidade do caso, em conformidade com o disposto no artigo 62.2 da Convenção" [8].

Assim, em 16 de fevereiro de 2017, foi publicada a condenação do Brasil proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, estabelecendo um precedente quanto à responsabilidade internacional do Estado pela violação do direito à vida e à integridade pessoal das vítimas, além de estabelecer parâmetros sobre o dever de investigar com a devida diligência e impor os estândares de imparcialidade, independência, respeito e duração em prazo razoável do processo. O Brasil foi condenado por violar os seguintes artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos: 5.1 (integridade pessoal), 8.1 (garantias judiciais), 25 (proteção judicial), 1.1 (dever geral de respeito e garantia dos direitos consagrados) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno).

Por conseguinte, faz-se necessário atentar para o Ponto Resolutivo 16, o qual determinou que o Estado deveria estabelecer os mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual resultantes de operação policial, em que prima facie policiais sejam possíveis acusados, "desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público" [9], assistido por policial, técnico criminalístico e administrativo que não pertençam ao órgão de segurança do qual faz parte o possível acusado.

Logo, considerando o cenário acima descrito de constante violação de direitos humanos praticada por agentes de estado e frente à decisão da Corte IDH, mostra-se necessária a criação de um órgão pericial independente em relação à Polícia Civil. Isto, tendo em vista que um dos principais problemas concernentes à violência policial em incursões da polícia civil é que a própria Polícia Civil conduz as investigações dos casos em que se supõe que um de seus membros é autor de violações de direitos humanos.

Nesse prisma, ressaltam-se as práticas constantes da polícia para acobertar as mortes por ela produzidas. Conforme descrito pela Human Rights Watch (HRW) [10], uma técnica recorrente é retirar o cadáver da vítima da cena do crime e levá-lo a um hospital, alegando um falso socorro à vítima, no intuito de destruir provas da cena do crime e, concomitantemente, simular um ato de boa-fé por parte dos agentes. Descreve a ONG em seu relatório que em alguns casos, "policiais forjaram provas ao colocarem armas nas mãos das vítimas e as dispararem, ou, ainda, ao deixarem drogas junto aos seus corpos", além de ameaçarem testemunhas a fim de desencorajar depoimentos.

Afora a alteração da cena do crime pelos próprios policiais, que se utilizam dos chamados "autos de resistência" para não serem responsabilizados criminalmente pelas execuções extrajudiciais, tem-se uma atuação falha do Ministério Público, cuja função institucional é exercer o controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, CF) [11]. A despeito da atribuição constitucional ao MP, a Human Rights Watch expôs em um relatório de 2016 [12] que, segundo o próprio Ministério Público, dos 3.441 casos de homicídio cometidos pela polícia registrados entre 2010 e 2015, o MP-RJ apresentou denúncia de apenas quatro (0,1% dos casos). Ressalta-se, assim, um cenário em que quando a polícia civil não realiza as investigações adequadas, o Ministério Público estadual, mesmo com poder para conduzir suas próprias investigações de forma independente, coletar provas e escutar testemunhas, não utiliza sua prerrogativa para investigar os homicídios cometidos por agentes de estado.

Soma-se aos dados acima apresentados a extinção do Grupo de Ação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), em abril de 2021, o qual detinha como atribuição de especialidade a investigação de abusos policiais. Desde então, os casos de morte por agentes do estado são de competência dos promotores com jurisdição sobre o caso ("promotores naturais"). O problema, então, se agrava, na medida em que esses promotores podem vir a investigar abusos cometidos por policiais que atuam consigo em outros casos, temendo o risco de retaliação ao submeterem uma denúncia contra esses agentes. Além de não serem especializados na temática, também podem escolher não realizar investigações próprias, confiando na investigação da Polícia Civil, o que é problemático no que concerne à imparcialidade, como exposto anteriormente.

Frente a este cenário, mostra-se extremamente necessária uma mobilização dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário visando a criação de órgão pericial externo em relação à Polícia Civil, em um cenário de urgente realização de uma reforma estrutural do Sistema de Justiça Criminal. Objetivando concretizar o Ponto Resolutivo 16 da decisão acima referida da Corte IDH, assim como considerando tal medida crucial para a redução da letalidade no estado do Rio de Janeiro, exige-se, juntamente à criação do órgão pericial autônomo, um marco normativo à luz do Protocolo de Minnesota [13], a capacitação dos profissionais envolvidos e um planejamento orçamentário que assegure a viabilidade de tais medidas.

Isto, tendo em vista que, até o momento, o que se tem é a Resolução CNJ nº 414/2021 estabelecendo diretrizes e quesitos periciais para o controle judicial sobre os exames de corpo de delito realizados nos casos em que há indícios de prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes [14], em conformidade com os parâmetros do Protocolo de Istambul [15]. Além disso, o conselho formulou anteriormente a Resolução CNJ nº 213/2015 instituindo as audiências de custódia como mecanismo para controle judicial de eventual violência na abordagem policial.

Por fim, durante a audiência pública sobre a supervisão de cumprimento da sentença do caso Favela Nova Brasília, em 2021, o CNJ demonstrou a pretensão de realizar um mapeamento nacional sobre a existência de corpos periciais independentes à polícia civil, a fim de analisar quais estados tiveram êxito ao enfrentar a questão [16]. Entretanto, a questão da perícia autônoma segue em aberto, conforme apontado pelo próprio conselho no Sumário Executivo versando sobre o caso Favela Nova Brasília, não tendo sido enfrentada de maneira eficaz pelos três poderes.

 


[1] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Favela Nova Brasília (Cosme Genoveva e outros) vs. Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Pág. 29. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 7/6/2022.

[2] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário de Segurança Pública 2021. Pág. 58. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf. Acesso em 6/6/2022.

[3] Ibidem.

[4] A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 foi ajuizada visando reconhecer e sanar graves lesões a preceitos fundamentais constitucionais decorrentes da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

[5] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário de Segurança Pública 2021. Pág. 65. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf. Acesso em 6/6/2022

[6] Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sumário Executivo Caso Favela Nova Brasília (Cosme Genoveva e outros) vs. Brasil. Série Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Brasília: 2021. Pág. 12.

[7] Ib. Pág 13.

[8] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Favela Nova Brasília (Cosme Genoveva e outros) vs. Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Pág. 5. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 7/6/2022.

[9] Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sumário Executivo Caso Favela Nova Brasília (Cosme Genoveva e outros) vs. Brasil. Série Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Brasília: 2021. Pág. 14.

[10] Human Rights Watch (HRW). Relatório "O bom policial tem medo": Os custos da violência policial no Rio de Janeiro. 7 de julho de 2016. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2016/07/07/291419. Acesso em 6/6/2022.

[11] Da mesma forma detalham a questão o art. 3º da LC 75/1993 e a Resolução 20/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

[12] Human Rights Watch (HRW). Relatório "O bom policial tem medo": Os custos da violência policial no Rio de Janeiro. 7 de julho de 2016. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2016/07/07/291419. Acesso em 6/6/2022.

[13] O Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes potencialmente ilícitas consiste em um conjunto de diretrizes internacionais que abarca a investigação de mortes nas quais se suspeita da responsabilidade por agentes do estado. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/Publications/MinnesotaProtocol_SP.pdf.

[14] Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sumário Executivo Caso Favela Nova Brasília (Cosme Genoveva e outros) vs. Brasil. Série Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Brasília: 2021. Pág. 24.

[15] O Protocolo de Istambul consiste em um manual para a investigação e documentação eficaz da tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, produzido no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/a_pdf/manual_protocolo_istambul.pdf.

[16] No Brasil, até 2015 haviam 18 estados em que os órgãos periciais já estavam desvinculados da estrutura da Polícia Civil, apesar de a Constituição Federal não prever a existência de órgão pericial autônomo. Segundo uma pesquisa realizada pela perita criminal federal Márcia Aiko Tsunoda, "pode-se concluir que os órgãos periciais que já se encontram desvinculados da Polícia Civil, de forma geral, apresentaram melhora tanto na qualidade do resultado final de seu trabalho para a sociedade quanto na sua gestão". Porém, ressalta-se a necessidade de um orçamento próprio, corregedoria independente e condição de órgão de segurança pública alcançar sua autonomia funcional. Disponível em: http://www.periciacriminal.org.br/no-brasil/. Acesso em 6/6/2022.

Autores

  • é graduanda em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), integrante da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da FGV (Laccrim-FGV) e diretora de comunicação do projeto Absorvidas.

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