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Consultor Jurídico

Bernardes e Calza: Inclusão digital e desafios na rede pública

1 de agosto de 2022, 7h09

Por Márcia Bernardes, Walter Calza Neto

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A importância e a necessidade da inclusão digital nas escolas são questões indiscutíveis. E isso tornou-se ainda mais evidente com a experiência da educação no período da pandemia da Covid-19. Costumo dizer que a pandemia veio para colocar um holofote nas principais deficiências do ensino público, e, dentre elas, a questão digital foi a que mais se evidenciou.

Uma pesquisa realizada pela Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) em 2021 aponta que o maior desafio durante a pandemia das redes públicas municipais foi o acesso dos estudantes à internet. Dos municípios brasileiros, 78,6% identificaram de média a alta a dificuldade nesse quesito. Essa constatação só reforça a importância da criação de políticas públicas para ampliar a conectividade no país, principalmente entre as regiões mais vulneráveis, entre outras ações.

No entanto, promover a inclusão digital não se resume apenas à conectividade. O país precisa se debruçar em políticas públicas que deem subsídios a todos os programas, desde o financiamento às infraestruturas digitais nas escolas públicas, equipamentos e dispositivos eletrônicos à formação dos profissionais que farão uso dessa ferramenta como uma metodologia de ensino.

E por que é necessário esse tipo de investimento na educação? A inserção da cultura digital nas escolas tem por objetivo preparar os alunos para o uso adequado da internet como uma ferramenta tecnológica a fim de agregar conhecimentos e também gerar dados para que as redes de ensino, através dos gestores e profissionais da educação, possam atuar de forma mais estratégica utilizando os dados e informações a partir de plataformas e sistemas digitais. Porém, para o sucesso do desenvolvimento da competência digital nos alunos e profissionais da educação, faz-se necessário contar com ferramentas adequadas, desenvolver formação e treinamentos aos professores e destacar dentro do currículo e do projeto político pedagógico a importância do digital para a educação. E estes são os dos principais motivos da educação digital ainda enfrentar tantos desafios no Brasil.

A superação desses desafios depende, acima de tudo, de planejamento e execução de políticas públicas com investimentos e financiamento do acesso à internet e a dispositivos tecnológicos que permitam a inclusão dos estudantes da rede pública nesse novo processo de oferta de ensino.

O primeiro passo para superar os desafios da inclusão digital no país é a união colaborativa e integrada de políticas públicas de investimentos entre os governos (União, estado e municípios). Na sequência, pensar em iniciativas nacionais para gerar a qualificação digital aliada a capacitação digital aos profissionais da educação.

No entanto, vale ressaltar que a pandemia veio apenas enaltecer a importância das questões digitais no ensino, no entanto, não podemos esquecer que o embasamento teórico e legal para a implantação da inclusão digital na educação brasileira antecede à pandemia da Covid-19, uma vez que a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) homologada em 20 de dezembro de 2017 traz como uma das dez competências a serem garantidas nos documentos curriculares nacionais é a Competência 5 conhecida como cultura digital.

E o que vem a ser cultura digital? Conceitualmente, cultura digital refere-se às transformações ocorridas pela tecnologia, pela internet e pela rede na forma como produzimos, consumimos e avançamos na cultura.

Sendo assim, a cultura digital como uma competência da BNCC tem por finalidade reconhecer o papel fundamental da tecnologia no dia a dia e estabelecer que os estudantes devem conhecer e interagir no universo digital, sendo capaz, portanto, de fazerem uso adequado, qualificado e ético das diversas ferramentas existentes e de compreenderem o pensamento computacional e os impactos da tecnologia na vida das pessoas e da sociedade, utilizando da ferramenta não apenas como um apoio pedagógico mas também como função social.

Assim, considerando a educação pública como uma porta de oportunidades profissionais e sociais, principalmente às camadas mais vulneráveis da sociedade, se faz urgente os investimentos e a implantação da cultura digital nas escolas públicas brasileiras, garantindo assim uma educação de equidade com qualidade social.

Nesse sentido surgiu o projeto de Lei nº 3.477 de 26 de abril de 2020 da lavra do deputado Idilvan Alencar (PDT-CE) e outros, cuja propositura inicial era a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e professores da educação básica pública.

Em 10 de junho de 2021, após tramitação regular e rejeição de veto presidencial apoiado em suposta violação do 113 do ADCT, o Projeto de Lei foi transformado na Lei Ordinária nº 14.172/2021, conforme publicação no Diário Oficial da União de 11/6/21, página 15, col. 1.

Vale pontuar que apoiada em tese de desvio do processo legislativo decorrente de interferência a gestão material e pessoal da administração pública e ameaça ao equilíbrio fiscal da união, a Presidência da República ajuizou ADI (ação direta de inconstitucionalidade) [1].

A referida ADI foi recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, seguindo voto do relator, ministro Dias Toffoli, entendeu que lei atende ao preceito constitucional que consagra a educação como direito social.

Como não poderia ser diferente, a decisão apoiou-se no fato de que a Lei 14.172/21 respeita as regras constitucionais sobre o direito à educação e o princípio fundamental de que o ensino deve ser ministrado com "igualdades de condições para o acesso e permanência na escola" conforme institui o inciso I do artigo 206 da Constituição.

Pode ser destacado do voto do ministro Dias Toffoli que: "a educação é o primeiro dos direitos sociais consagrados na Constituição de 1988 e que o acesso à internet é um pressuposto para sua concretização, fato que ficou mais evidente diante do contexto da pandemia de covid-19, em que a necessidade de distanciamento social transferiu tarefas presenciais para o formato remoto".

Vale lembrar que o texto original da Lei previa o repasse de o valor de R$ 3,5 bilhões no prazo de 30 dias pelo governo federal para aplicação em políticas públicas para a garantia do acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e aos professores da rede pública de ensino dos estados, Distrito Federal e municípios.

Segundo o texto original, o mencionado valor pode ser empregado para "contratação de soluções de conectividade móvel para a realização e o acompanhamento de atividades pedagógicas não presenciais, vinculadas aos conteúdos curriculares, por meio do uso de tecnologias da informação e da comunicação, com prioridade para os alunos do ensino médio, os alunos do ensino fundamental, os professores do ensino médio e os professores do ensino fundamental, nessa ordem".

A norma traz ainda a limitação de que pode ser utilizado "no máximo, 50% (cinquenta por cento) para aquisição de terminais portáteis que possibilitem acesso a rede de dados móveis para uso pelos beneficiários desta Lei, com prioridade para os alunos do ensino médio e os professores do ensino médio, nessa ordem", devendo o restante ser aplicado em conectividade.

Quanto ao prazo, a norma dispunha que os valores que não fossem aplicados até 31 de dezembro de 2021, atendidas as finalidades e as prioridades previstas no art. 3º, ou que fossem aplicados em desconformidade com o texto legal, deveriam ser restituídos aos cofres da União até o dia 31 de março de 2022.

Contudo, diante da discussão judicial sobre a constitucionalidade da norma, tornou-se necessária a revisão dos prazos.

Conforme constou do voto do ministro Dias Toffoli, o prazo para aplicação do recurso foi prorrogado pelo Congresso Nacional para 31 de dezembro de 2023 e o prazo para eventual devolução para 31 de março de 2024, tornando prejudicado o debate judicial neste sentido, sendo mantido o prazo para que sejam aplicados os cerca de R$ 3,5 bilhões, previstos na Lei 14.172/2021, para garantir acesso à internet, para fins educacionais, a professores e estudantes da rede de educação básica pública.

Em decisão de abril de 2022 o ministro Dias Toffoli já havia corroborado com a visão da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) no sentido de que os estados tiveram um prazo exíguo para planejar a utilização dos recursos, impedindo, por exemplo, a articulação com os municípios e ainda apontando dúvidas dos gestores sobre as possibilidades de aplicação dos recursos, diante do retorno às aulas presenciais.

Conforme afirmou o ministro: "esses elementos demonstram que a implementação da política pública pode ser inviabilizada pela dificuldade de cumprimento dos prazos estabelecidos na lei. Elaborar uma política que garanta a conectividade à internet a cada um desses beneficiários demanda tempo, planejamento, organização e articulação entre os órgãos competentes".

Desta forma, o que se observa é que o Supremo Tribunal Federal corroborou com a visão de que, apesar da volta das aulas presenciais, a educação digital, o acesso à internet e aos conteúdos digitais estão abarcados pelo princípio constitucional trazido no inciso I do artigo 206 do Carta Magna.

Indo mais além, entendo pessoalmente que o fornecimento de conectividade e dispositivos que permitam o acesso aos conteúdos digitais também está abarcado no inciso VII do mesmo artigo que prevê que o ensino será ministrado com garantia de qualidade.

E nesse sentido, observado que a pandemia impôs a necessidade de condução do ensino, entre outras inúmeras atividades, de forma tele presencial e acabou servindo de catalisador para a transformação digital, tem-se um panorama de eclosão de tecnologias como o metaverso como ferramenta de inclusão e educação com possibilidades e funcionalidades até então inimagináveis.

A imersão do aluno, através do metaverso, em eventos históricos, a possibilidade de interação imersiva dos alunos com modelos 3D de alta qualidade de células, animais, modelos atômicos, parte do corpo humano, entre outros, pode tornar a experiência digital transformadora e promissora. Mas para que isso possa ser uma realidade, inclusive entre as camadas mais carentes e de regiões remotas, é imprescindível a oferta de conectividade e dispositivos tanto aos alunos quanto aos professores.

Concluindo, acertada a decisão do STF em acolher a constitucionalidade da lei que visa promover uma educação mais inclusiva, digital e conectada.

Fica agora a missão aos gestores públicos educacionais para formatarem seus projetos e políticas públicas de forma adequada e em tempo hábil para usufruir dos recursos criado pela Lei 14.172/21 [2] e garantidos por força da decisão havida no ADI 6.926.


[1] ADI 6.926