Opinião

Inclusão digital e os principais desafios na rede pública de ensino

Autores

  • Márcia Bernardes

    é presidente da Undime São Paulo conselheira titular do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP) dirigente municipal de Educação de Mairiporã (SP) professora universitária da UniFaat Centro Universitário e formada em Letras e Pedagogia com especialização em Psicopedagogia Supervisão Escolar Gestão na Educação Infantil e Alfabetização.

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  • Walter Calza Neto

    é advogado especialista em Direito Digital e Propriedade Intelectual formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 1998 pós-graduando em Direito Digital pela Ebradi membro do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) perito judicial do Tribunal de Justiça de São Paulo relator do Tribunal de Ética da OAB-SP membro da Comissão de Proteção de Dados e da Comissão de Inovação e Tecnologia da OAB-SP e da Comissão Especial de Estudo de Proteção de Dados do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

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1 de agosto de 2022, 7h09

A importância e a necessidade da inclusão digital nas escolas são questões indiscutíveis. E isso tornou-se ainda mais evidente com a experiência da educação no período da pandemia da Covid-19. Costumo dizer que a pandemia veio para colocar um holofote nas principais deficiências do ensino público, e, dentre elas, a questão digital foi a que mais se evidenciou.

Uma pesquisa realizada pela Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) em 2021 aponta que o maior desafio durante a pandemia das redes públicas municipais foi o acesso dos estudantes à internet. Dos municípios brasileiros, 78,6% identificaram de média a alta a dificuldade nesse quesito. Essa constatação só reforça a importância da criação de políticas públicas para ampliar a conectividade no país, principalmente entre as regiões mais vulneráveis, entre outras ações.

No entanto, promover a inclusão digital não se resume apenas à conectividade. O país precisa se debruçar em políticas públicas que deem subsídios a todos os programas, desde o financiamento às infraestruturas digitais nas escolas públicas, equipamentos e dispositivos eletrônicos à formação dos profissionais que farão uso dessa ferramenta como uma metodologia de ensino.

E por que é necessário esse tipo de investimento na educação? A inserção da cultura digital nas escolas tem por objetivo preparar os alunos para o uso adequado da internet como uma ferramenta tecnológica a fim de agregar conhecimentos e também gerar dados para que as redes de ensino, através dos gestores e profissionais da educação, possam atuar de forma mais estratégica utilizando os dados e informações a partir de plataformas e sistemas digitais. Porém, para o sucesso do desenvolvimento da competência digital nos alunos e profissionais da educação, faz-se necessário contar com ferramentas adequadas, desenvolver formação e treinamentos aos professores e destacar dentro do currículo e do projeto político pedagógico a importância do digital para a educação. E estes são os dos principais motivos da educação digital ainda enfrentar tantos desafios no Brasil.

A superação desses desafios depende, acima de tudo, de planejamento e execução de políticas públicas com investimentos e financiamento do acesso à internet e a dispositivos tecnológicos que permitam a inclusão dos estudantes da rede pública nesse novo processo de oferta de ensino.

O primeiro passo para superar os desafios da inclusão digital no país é a união colaborativa e integrada de políticas públicas de investimentos entre os governos (União, estado e municípios). Na sequência, pensar em iniciativas nacionais para gerar a qualificação digital aliada a capacitação digital aos profissionais da educação.

No entanto, vale ressaltar que a pandemia veio apenas enaltecer a importância das questões digitais no ensino, no entanto, não podemos esquecer que o embasamento teórico e legal para a implantação da inclusão digital na educação brasileira antecede à pandemia da Covid-19, uma vez que a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) homologada em 20 de dezembro de 2017 traz como uma das dez competências a serem garantidas nos documentos curriculares nacionais é a Competência 5 conhecida como cultura digital.

E o que vem a ser cultura digital? Conceitualmente, cultura digital refere-se às transformações ocorridas pela tecnologia, pela internet e pela rede na forma como produzimos, consumimos e avançamos na cultura.

Sendo assim, a cultura digital como uma competência da BNCC tem por finalidade reconhecer o papel fundamental da tecnologia no dia a dia e estabelecer que os estudantes devem conhecer e interagir no universo digital, sendo capaz, portanto, de fazerem uso adequado, qualificado e ético das diversas ferramentas existentes e de compreenderem o pensamento computacional e os impactos da tecnologia na vida das pessoas e da sociedade, utilizando da ferramenta não apenas como um apoio pedagógico mas também como função social.

Assim, considerando a educação pública como uma porta de oportunidades profissionais e sociais, principalmente às camadas mais vulneráveis da sociedade, se faz urgente os investimentos e a implantação da cultura digital nas escolas públicas brasileiras, garantindo assim uma educação de equidade com qualidade social.

Nesse sentido surgiu o projeto de Lei nº 3.477 de 26 de abril de 2020 da lavra do deputado Idilvan Alencar (PDT-CE) e outros, cuja propositura inicial era a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e professores da educação básica pública.

Em 10 de junho de 2021, após tramitação regular e rejeição de veto presidencial apoiado em suposta violação do 113 do ADCT, o Projeto de Lei foi transformado na Lei Ordinária nº 14.172/2021, conforme publicação no Diário Oficial da União de 11/6/21, página 15, col. 1.

Vale pontuar que apoiada em tese de desvio do processo legislativo decorrente de interferência a gestão material e pessoal da administração pública e ameaça ao equilíbrio fiscal da união, a Presidência da República ajuizou ADI (ação direta de inconstitucionalidade) [1].

A referida ADI foi recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, seguindo voto do relator, ministro Dias Toffoli, entendeu que lei atende ao preceito constitucional que consagra a educação como direito social.

Como não poderia ser diferente, a decisão apoiou-se no fato de que a Lei 14.172/21 respeita as regras constitucionais sobre o direito à educação e o princípio fundamental de que o ensino deve ser ministrado com "igualdades de condições para o acesso e permanência na escola" conforme institui o inciso I do artigo 206 da Constituição.

Pode ser destacado do voto do ministro Dias Toffoli que: "a educação é o primeiro dos direitos sociais consagrados na Constituição de 1988 e que o acesso à internet é um pressuposto para sua concretização, fato que ficou mais evidente diante do contexto da pandemia de covid-19, em que a necessidade de distanciamento social transferiu tarefas presenciais para o formato remoto".

Vale lembrar que o texto original da Lei previa o repasse de o valor de R$ 3,5 bilhões no prazo de 30 dias pelo governo federal para aplicação em políticas públicas para a garantia do acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e aos professores da rede pública de ensino dos estados, Distrito Federal e municípios.

Segundo o texto original, o mencionado valor pode ser empregado para "contratação de soluções de conectividade móvel para a realização e o acompanhamento de atividades pedagógicas não presenciais, vinculadas aos conteúdos curriculares, por meio do uso de tecnologias da informação e da comunicação, com prioridade para os alunos do ensino médio, os alunos do ensino fundamental, os professores do ensino médio e os professores do ensino fundamental, nessa ordem".

A norma traz ainda a limitação de que pode ser utilizado "no máximo, 50% (cinquenta por cento) para aquisição de terminais portáteis que possibilitem acesso a rede de dados móveis para uso pelos beneficiários desta Lei, com prioridade para os alunos do ensino médio e os professores do ensino médio, nessa ordem", devendo o restante ser aplicado em conectividade.

Quanto ao prazo, a norma dispunha que os valores que não fossem aplicados até 31 de dezembro de 2021, atendidas as finalidades e as prioridades previstas no art. 3º, ou que fossem aplicados em desconformidade com o texto legal, deveriam ser restituídos aos cofres da União até o dia 31 de março de 2022.

Contudo, diante da discussão judicial sobre a constitucionalidade da norma, tornou-se necessária a revisão dos prazos.

Conforme constou do voto do ministro Dias Toffoli, o prazo para aplicação do recurso foi prorrogado pelo Congresso Nacional para 31 de dezembro de 2023 e o prazo para eventual devolução para 31 de março de 2024, tornando prejudicado o debate judicial neste sentido, sendo mantido o prazo para que sejam aplicados os cerca de R$ 3,5 bilhões, previstos na Lei 14.172/2021, para garantir acesso à internet, para fins educacionais, a professores e estudantes da rede de educação básica pública.

Em decisão de abril de 2022 o ministro Dias Toffoli já havia corroborado com a visão da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) no sentido de que os estados tiveram um prazo exíguo para planejar a utilização dos recursos, impedindo, por exemplo, a articulação com os municípios e ainda apontando dúvidas dos gestores sobre as possibilidades de aplicação dos recursos, diante do retorno às aulas presenciais.

Conforme afirmou o ministro: "esses elementos demonstram que a implementação da política pública pode ser inviabilizada pela dificuldade de cumprimento dos prazos estabelecidos na lei. Elaborar uma política que garanta a conectividade à internet a cada um desses beneficiários demanda tempo, planejamento, organização e articulação entre os órgãos competentes".

Desta forma, o que se observa é que o Supremo Tribunal Federal corroborou com a visão de que, apesar da volta das aulas presenciais, a educação digital, o acesso à internet e aos conteúdos digitais estão abarcados pelo princípio constitucional trazido no inciso I do artigo 206 do Carta Magna.

Indo mais além, entendo pessoalmente que o fornecimento de conectividade e dispositivos que permitam o acesso aos conteúdos digitais também está abarcado no inciso VII do mesmo artigo que prevê que o ensino será ministrado com garantia de qualidade.

E nesse sentido, observado que a pandemia impôs a necessidade de condução do ensino, entre outras inúmeras atividades, de forma tele presencial e acabou servindo de catalisador para a transformação digital, tem-se um panorama de eclosão de tecnologias como o metaverso como ferramenta de inclusão e educação com possibilidades e funcionalidades até então inimagináveis.

A imersão do aluno, através do metaverso, em eventos históricos, a possibilidade de interação imersiva dos alunos com modelos 3D de alta qualidade de células, animais, modelos atômicos, parte do corpo humano, entre outros, pode tornar a experiência digital transformadora e promissora. Mas para que isso possa ser uma realidade, inclusive entre as camadas mais carentes e de regiões remotas, é imprescindível a oferta de conectividade e dispositivos tanto aos alunos quanto aos professores.

Concluindo, acertada a decisão do STF em acolher a constitucionalidade da lei que visa promover uma educação mais inclusiva, digital e conectada.

Fica agora a missão aos gestores públicos educacionais para formatarem seus projetos e políticas públicas de forma adequada e em tempo hábil para usufruir dos recursos criado pela Lei 14.172/21 [2] e garantidos por força da decisão havida no ADI 6.926.

Autores

  • é presidente da Undime São Paulo, conselheira titular do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP), dirigente municipal de Educação de Mairiporã (SP), professora universitária da UniFaat Centro Universitário e formada em Letras e Pedagogia, com especialização em Psicopedagogia, Supervisão Escolar, Gestão na Educação Infantil e Alfabetização.

  • é DPO do Sport Club Corinthians Paulista e Sparco Automotive, especialista em proteção de dados e propriedade intelectual, responsável pelos setores de Direito Digital, privacidade, compliance e propriedade intelectual do escritório Rodante & Calza Neto Advogados, membro da Comissão Especial de Estudo de Proteção de Dados do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), pós-graduando em Direito Digital pela Ebradi e perito judicial de propriedade intelectual do TJ-SP.

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