Opinião

Da capitalização de juros e a criação da teoria do duodécuplo

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15 de abril de 2022, 11h04

Com a implementação do atual Código de Processo Civil, verifica-se que o legislador pátrio demonstrou de forma categórica o intuito de unificar o entendimento jurisprudencial, introduzindo ao sistema jurídico diversas ferramentas para solucionar a falta de isonomia nas decisões.

A formação de precedentes e unificação da jurisprudência é cada vez mais uma realidade. Dentro do capítulo dos elementos e efeitos da sentença, o CPC/15 (artigo 489) destaca que é imprescindível a subsunção do fato ao precedente, enunciado ou súmula, indicando de forma concisa os fundamentos determinantes e equiparados ao caso em análise.

O referido artigo é salutar para compreendermos a incongruência na teoria denominada como "duodécuplo", adotada pelo tribunais pátrios para vigorar sobre a efetiva contratação dos juros capitalizados, especialmente nos instrumentos envolvendo instituições financeiras.

Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou o entendimento de que a capitalização de juros somente será válida nas hipóteses em que houver efetivo pacto prévio, claro, preciso e ostensivo, em termos práticos, em nomenclatura de fácil compreensão ao consumidor que, por sua vez, possui clara e inequívoca hipossuficiência técnica.

A propósito:

"CIVIL. BANCÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS. CONTRATAÇÃO EXPRESSA. NECESSIDADE DE PREVISÃO. DESCARACTERIZAÇÃO DA MORA. 1. A contratação expressa da capitalização de juros deve ser clara, precisa e ostensiva, não podendo ser deduzida da mera divergência entre a taxa de juros anual e o duodécuplo da taxa de juros mensal. 2. Reconhecida a abusividade dos encargos exigidos no período de normalidade contratual, descaracteriza-se a mora. 3. Recurso especial não provido" [1].

Outrossim, toda a problematização envolvendo a capitalização de juros no ordenamento jurídico brasileiro reflete diretamente na alta complexidade da matéria e a assunção do STJ de matérias que muitas vezes são matérias específicas da matemática financeira. A própria Corte Superior por intermédio do ministro Luiz Felipe Salomão assinalou não ser questão "tranquila nem entre os matemáticos".

Especialmente pela complexidade, os Tribunais de Alçada vêm divergindo com as premissas estabelecidas pela Corte Superior, dando azo para criação de jurisprudências que autorizam a cobrança de capitalização pela mera divergência entre a taxa de juros remuneratórios mensais elevada ao duodécuplo, isto é, caso o contrato preveja encargos mensais em 1% ao mês, e 12,68%, a cobrança de juros capitalizados seria supostamente aceita.

Contudo, é notório que a mera existência de discriminação da taxa mensal e da taxa anual de juros, sendo esta, superior ao duodécuplo daquela, não configura estipulação expressa de capitalização mensal, pois há ausência da clareza e transparência indispensáveis à compreensão do consumidor hipossuficiente, parte vulnerável na relação jurídica.

Há de se ressaltar ainda, que em recente julgamento realizado pela Terceira Turma desta Corte, no REsp 1.302.738/SC, sufragou-se por unanimidade, o entendimento de que a especificação, no contrato bancário da taxa mensal de juros e da taxa anual de juros, não configura informação capaz de, por si só, representar pactuação expressa de capitalização mensal de juros.

A ministra Nancy Andrighi durante o julgamento deliberou de forma majestosa as particularidades que fundamentaram a sua convicção, sobretudo sobra a hipossuficiência técnica do consumidor, quando da contratação dos serviços:

"Não tenho dúvida alguma em aderir às premissas tão bem expostas pelo relator, amparado na doutrina de Cláudia Lima Marques, Rizzato Nunes e Paulo de Tarso Sanseverino, acerca da absoluta necessidade de que o contrato bancário seja transparente, claro, redigido de forma que o consumidor, leigo, vulnerável não apenas economicamente, mas sobretudo sem experiência e conhecimento econômico, contábil, financeiro, entenda, sem esforço ou dificuldade alguma, o conteúdo, o valor e a extensão das obrigações assumidas. a pactuação de capitalização de juros deve ser expressa. a taxa de juros deve estar claramente definida no contrato. a periodicidade da capitalização também. Sobretudo, não deve pairar dúvida alguma acerca do valor da dívida, dos prazos para pagamento e dos encargos respectivos.
[…]
Por outro lado, há os conceitos abstratos, de matemática financeira, de 'taxa de juros simples' e 'taxa de juros compostos'. Dizem respeito ao processo matemático de formação da taxa de juros cobrada. Com o uso desses métodos calcula-se a equivalência das taxas de juros no tempo (taxas equivalentes). Quando a taxa é apresentada em uma unidade de tempo diferente da unidade do período de capitalização diz-se que a taxa é nominal; quando a unidade de tempo coincide com a unidade do período de capitalização a taxa é a efetiva. Por exemplo, uma taxa nominal 12% ao ano, sendo a capitalização dos juros feita mensalmente. Neste caso, a taxa efetiva é de 1% ao mês, o que é equivalente a uma taxa efetiva de 12,68% ao ano. Se a taxa for de 12% ao ano, com capitalização apenas anual, a taxa de 12% será a taxa efetiva anual.
[…]
Por outro lado, ao conceito de juros capitalizados (devidos e vencidos), juros compostos (devidos e vencidos), capitalização ou anatocismo é inerente a incorporação ao capital dos juros vencidos e não pagos, fazendo sobre eles incidir novos juros. Não se trata, aqui, de método de matemática financeira, abstrato, prévio ao início da vigência da relação contratual, mas de vicissitude intrínseca à concreta evolução da relação contratual. Conforme forem vencendo os juros, haverá pagamento (aqui não ocorrerá capitalização); incorporação ao capital ou ao saldo devedor (capitalização) ou cômputo dos juros vencidos e não pagos em separado, a fim de evitar a capitalização vedada em lei.
[…]
A mera circunstância de estar pactuada taxa efetiva e taxa nominal de juros não implica, portanto, capitalização de juros, mas apenas processo de formação da taxa de juros pelo método composto".

De forma conclusiva, a ministra em questão assevera que a legislação não proíbe a formação de juros compostos, mas que a situação não pode (e nem deve) se confundir com a capitalização de juros em sentido estrito, a qual deve ser pactuada de forma ostensiva, por mais que os institutos se assemelhem:

"Assim, embora o método composto de formação da taxa de juros seja comumente designado, em textos jurídicos e matemáticos, como 'juros compostos', empregada esta expressão também como sinônimo de 'capitalização', 'juros capitalizados' e 'anatocismo', ao jurista, na construção do direito civil, cabe definir a acepção em que o termo é usado na legislação, a fim de que os preceitos legais e respectivas interpretações jurisprudenciais não entrem em contradição, tornando incoerente o sistema.
Tomando por base essas premissas, concluo que o Decreto 22.626⁄33 não proíbe a técnica de formação de taxa de juros compostos (taxas capitalizadas), a qual, repito, não se confunde com capitalização de juros em sentido estrito (incorporação de juros devidos e vencidos ao capital, para efeito de incidência de novos juros, prática vedada pelo artigo 4º do citado Decreto, conhecida como capitalização ou anatocismo). […]
Por outro lado, se constasse do contrato em exame, além do valor das prestações, da taxa mensal e da taxa anual efetiva, também cláusula estabelecendo 'os juros vencidos e devidos serão capitalizados mensalmente', ou 'fica pactuada a capitalização mensal de juros', por exemplo […].
Não se cogita de capitalização, na acepção legal, diante da mera fórmula matemática de cálculo dos juros. Igualmente, não haverá capitalização ilegal, se todas as prestações forem pagas no vencimento. Neste caso, poderá haver taxa de juros exorbitante, abusiva, calculada pelo método simples ou composto, passível de revisão pelo Poder Judiciário, mas não capitalização de juros".

Com efeito, nossos Tribunais de Alçada, praticamente de forma uníssona vêm aplicando a teoria duodécuplo para autorizar a comprovação da capitalização de juros, se baseando no REsp nº 973.827/RS, o que afastaria a necessidade de pacto prévio e ostensivo para a cobrança do encargo:

"APELAÇÃO CÍVEL  AÇÃO REVISIONAL  CLÁUSULAS CONTRATUAIS  CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – APLICABILIDADE  CAPITALIZAÇÃO MENSAL  POSSIBILIDADE  COMISSÃO DE PERMANÊNCIA  AUSÊNCIA DE PACTUAÇÃO — ENCARGOS DE INADIMPLÊNCIA REGULARIDADE – SENTENÇA MANTIDA  RECURSO NÃO PROVIDO  O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos bancários, conforme pacificado na Súmula 297 do STJ, desde que haja relação de consumo, ainda que por equiparação  Sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, adequar-se-á o princípio pacta sunt servanda, tornando-o relativo, face à função social do contrato e à boa-fé das partes, proporcionando a defesa do consumidor em caso de pactos abusivos, sem que isso enseje insegurança jurídica  A capitalização de juros é lícita se contratada, conforme MP 1.963-17/2000  As instituições financeiras não se sujeitam à limitação dos juros remuneratórios de 12% ao ano. A divergência entre a taxa de juros anual e o duodécuplo da taxa de juros mensal indica a existência de previsão contratual acerca da capitalização de juros  Nos termos da Súmula nº 472 do STJ: 'A cobrança de comissão de permanência – cujo valor não pode ultrapassar a soma dos encargos remuneratórios e moratórios previstos no contrato — exclui a exigibilidade dos juros remuneratórios, moratórios e da multa contratual'  Ausente, no caso, a pactuação de comissão de permanência, tendo sido previstos apenas juros remuneratórios de inadimplência, com a mesma taxa para o período da normalidade contratual, multa de 2% e juros de mora de 1% ao mês". [2]

O maior reflexo prático da aplicação incorreta do precedente é o endividamento exacerbado do correntista que já se encontra em uma situação delicada, tendo em vista que a capitalização de juros ocorrerá justamente no período de inadimplemento, traduzindo na majoração desenfreada de juros e sem que o correntista tenha noção de como a dívida chegou a tal patamar.

Com a pandemia mundial propiciada pelo Covid-19, inúmeros estabelecimentos comerciais se obrigaram a fechar as portas, reflexo das medidas de segurança adotadas para conter a proliferação do vírus, restaurantes, hotéis, transporte público e escolas foram os serviços que mais sofreram negativamente os reflexos.

É notório que muitos comerciantes, especialmente os de pequeno e médio porte, encontram óbice no pagamento de seus tão necessitados financiamentos, junto as inúmeras instituições financeiras espalhadas pelo Brasil, não por uma manobra a fim de frustrar o recolhimento da monta devida, mas sim uma realidade, eis que os frutos do seu comércio não traduzem no mesmo retorno financeiro como de costume.

A questão vai muito além, até mesmo pelo fato de existir discussões quanto a similitude de conceitos, tanto nos tribunais e na doutrina pátria, compostas de pessoas extremamente estudiosas e com um entendimento jurídico anômalo, na imagem dos nossos tão respeitados Ministros do STJ, como também, aos profissionais da matemática financeira que após anos de estudos ainda divergem sobre a matéria.

Nesse sentido, não seria justo impor ao consumidor o conhecimento necessário para compreender a diferenciação da taxa através de "mero" cálculo aritmético, presumindo a capitalização, já que sequer a própria jurisprudência sabe assimilar a diferenciação dos termos "capitalização de juros" e "juros compostos", quiçá aplicar o precedente com a sua real essência e ratio decidiendi.

Na mesma linha de raciocínio, segue trecho do Ilustre Professor Hélio Ricardo Diniz Krebs, na sua coluna Capitalização mensal de juros: a "tese do duodécuplo":

"A necessidade premente de se observar a correta interpretação do acórdão do REsp 973.827⁄RS e o real significado das Súmulas 539 e 541 do STJ repousa especialmente no fato de que, a aplicação da 'tese do duodécuplo' para permitir a capitalização mensal de juros em contratos sem previsão expressa para tanto, tem causado enormes prejuízos aos mutuários de todo o país, sejam pessoas físicas ou jurídicas, com reflexos para toda sociedade (fechamento de empresas, desemprego, etc…), ao passo que o lucro das instituições financeiras vem crescendo cada vez mais, justamente no período da mais grave crise econômica pela qual o país vem atravessando.
[…]
Esse cenário se agrava ainda mais em razão da notória demora da entrega da prestação jurisdicional que, sabidamente, não é imputável aos magistrados e servidores do Judiciário, cujo esforço praticamente hercúleo para julgar mais processos do que recebem, infelizmente não vem sendo suficiente para vencer a pletora de novos processos ajuizados dia após dia" [3].

Dessa forma, na perspectiva do civil law e efetivamente, com a evolução do direito no Estado Constitucional, o princípio da segurança sempre foi o objetivo em todos ordenamentos jurídicas, eis que é a forma de estabilizar as respetivas relações sociais, independentemente do sistema jurídico pátrio em que são inseridas.

A segurança jurídica, busca salvaguardar e deixar presumível a construção do direito, segundo o advogado Anísio Antônio de Matos Coelho Filho, a segurança jurídica busca a aplicação escorreita dos precedentes judiciais, constituindo, atualmente, três pilares basilares:

"Constituem as três facetas atuais da segurança jurídica: a cognoscibilidade; a estabilidade; e a previsibilidade. O primeiro elemento caracteriza-se por ser o aspecto estático, que permite a compreensão anterior das fontes normativas e a determinação do seu preenchimento quanto ao sentido. A segunda faceta refere-se ao aspecto dinâmico, vinculando o passado com a continuidade e o desenvolvimento do direito. Este elemento está relacionado à garantia de certo nível de dificuldade para a modificação do direito, isto é, estabilidade das questões jurídicas tratadas nos Tribunais, combatendo as mudanças desprovidas de critérios. O terceiro elemento, a previsibilidade, está vinculado ao futuro, possibilitando a previsão razoável da aplicação e da interpretação do direito nas decisões judiciais. Melhor comentando, os cidadãos planejam as suas vidas e tomam decisões seguras conforme o entendimento dado a aplicação do direito, não se permitindo mudanças bruscas nas decisões das Cortes sem um amplo debate argumentativo" [4].

O fato de a jurisprudência pátria ter criado a teoria do "duodécuplo", baseando-se em um precedente que veda a sua aplicação, reflete diretamente em insegurança jurídica e vai de encontro com a premissa do atual Código de Processo Civil, que buscou introduzir e potencializar mecanismos para a criação de precedentes qualificados.

De nada adianta a criação de ferramentas e/ou instrumentos se na prática são empregados forma incorreta, cabendo ao profissional do direito, fundamentar a sua aplicação e fazer a devida subsunção do fato à norma jurídica, analisando o precedente de forma concreta e que se enquadre na lide analisada com a finalidade da sua efetiva essência.

Cabe também aos advogados, mediante petições e recursos bem fundamentados, buscarem demonstrar a incongruência do entendimento, que por muito tempo vem sendo entendimento majoritário nos tribunais de alçada e que, por infortúnio, bem como despreparo dos profissionais, não chega para a análise do Excelso Superior Tribunal de Justiça.


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça — REsp 1302738 SC 2011/0257601-3. CIVIL. BANCÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL.CAPITALIZAÇÃO DE JUROS. CONTRATAÇÃO EXPRESSA. NECESSIDADE DEPREVISÃO. DESCARACTERIZAÇÃO DA MORA. RECORRENTE: BANCO FINASA S/A. RECORRIDO: Jose Dohopiati. Relatora: ministra Nancy Andrighi, 10 de mai. 2012. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21592132/recurso-especial-resp-1302738-sc-2011-0257601-3-stj/inteiro-teor-21592133>. Acesso em: 20 ago. 2021.

[2] BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais: AC 0006422-38.2016.8.13.0407. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL  AÇÃO REVISIONAL  CLÁUSULAS CONTRATUAIS  CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR  APLICABILIDADE  CAPITALIZAÇÃO MENSAL — POSSIBILIDADE – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA  AUSÊNCIA DE PACTUAÇÃO  ENCARGOS DE INADIMPLÊNCIA  REGULARIDADE  SENTENÇA MANTIDA  RECURSO NÃO PROVIDO. Relator: Mariangela Meyer, 24 de ago. 2021. Disponível em: <https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1268666104/apelacao-civel-ac-10407160006422001-mateus-leme>. Acesso em: 28 ago. 2021.

[3] KREBS, H.R.D. CAPITALIZAÇÃO MENSAL DE JUROS: a "tese do duodécuplo" — Iasc. Disponível em: https://iasc.org.br/2019/08/capitalizacao-mensal-de-juros-a-tese-do-duodecuplo. Acesso em: 23 set. 2021.

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