Opinião

Aspectos práticos do acordo de não persecução penal

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11 de abril de 2022, 17h05

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), criado pela Lei nº 13.964/2019, completou mais de dois anos de vigência.

Esta forma de justiça negocial mostrou desde logo seu valor concentrando os esforços dos agentes de persecução penal em crimes mais complexos e graves.

Por outro lado, na prática, encontrou os já esperados desafios.

Este artigo tem por objetivo tratar da aplicação prática do instituto.

Os requisitos para a celebração do ANPP são conhecidos e facilmente extraídos do artigo 28-A do CPP.

Todavia, na prática, alguns pontos se mostraram controversos.

O primeiro desafio encontrado pelo ANPP foi a definição de quando é cabível a propositura do benefício. Afinal, "não persecução" é diferente de "não prosseguimento" da ação penal.

Diversos são os entendimentos. Alguns sustentam o cabimento amplo do ANPP, aduzindo a incidência até mesmo após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Outros limitam o alcance do instituto.

O Ministério Público Federal formulou o Enunciado nº 98 sobre o tema:

"É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão."

(Alterado na 187ª Sessão de Coordenação, de 31/8/2020. Precedentes 2ª CCR: Processo: JF-RJ-2015.51.01.509192-3-AP, Sessão de Revisão nº 770, de 25/05/2020, unânime. Processo: 1.29.000.001782/2020-82, Sessão de Revisão nº 770, de 25/5/2020, unânime. Processo: JF/PR/CUR-IANPP-5011021-84.2020.4.04.7000, Sessão de Revisão nº 770, de 25/5/2020, unânime. Processo: JF/PR/LON-5007299-39.2020.4.04.7001, Sessão de Revisão nº 770, de 25/5/2020, unânime. Processo: JFRS/POA-5069978-06.2019.4.04.7100-APN, Sessão de Revisão nº 769, de 11/5/2020, unânime.)

Por sua vez, na linha do e. Supremo Tribunal Federal (ARE 1.293.627-AgR, rel. min. Dias Toffoli), a jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça caminha no sentido de que o ANPP é cabível apenas até o recebimento da denúncia:

"O acordo de não persecução penal – ANPP, previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei n. 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia."

(HC 615113/SP, rel. ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), 6ª TURMA, julgado em 16/11/2021, DJe 19/11/2021. AgRg no REsp 1936305/SP, rel. ministro JOEL ILAN PACIORNIK, 5ª TURMA, julgado em 16/11/2021, DJe 19/11/2021. AgRg no HC 699955/SC, rel. ministro RIBEIRO DANTAS, 5ª TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 4/11/2021. AgRg no REsp 1905924/SP, rel. ministra LAURITA VAZ, 6ª TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 4/11/2021. AgRg no HC 680533/SC, rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 5/10/2021, DJe 13/10/2021 AgRg nos EDcl no AREsp 1648025/SP, rel. ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 6ª TURMA, julgado em 5/10/2021, DJe 13/10/2021).

Nesse contexto, em muitos casos foi exigida a demonstração pelo órgão de acusação de prévia tentativa de celebração de ANPP quando evidentemente cabível.

Porém, a jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça caminha em sentido oposto a tal entendimento, deixando claro que o prévio contato com o investigado não é condição de procedibilidade, não tendo, portanto, o Ministério Público obrigação de procurar ou notificar o investigado. Nesse sentido:

"O Ministério Público não é obrigado a notificar o investigado no caso de recusa de oferecimento de acordo de não persecução penal – ANPP."

(AgRg no REsp 1948350/RS, rel. ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), 5ª TURMA, julgado em 9/11/2021, DJe 17/11/2021. REsp 1968114/SP, rel. ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), 5ª TURMA, julgado em 15/12/2021, publicado em 17/12/2021)

Entendeu-se que "na legislação vigente atualmente que permanece em vigor não existe a obrigatoriedade do Ministério Público notificar o investigado em caso de recusa em se propor o acordo de não persecução penal", sendo que ao juízo caberia apenas "decidir acerca do recebimento denúncia, sem que exija do Ministério Público a comprovação de que intimou o acusado (…), até porque não existe condição de procedibilidade não prevista em lei" (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.948.350/RS, STJ, 5ª Turma, unânime, rel. min. Jesuíno Rissato, julgado em 9/11/2021, publicado no Dj em 17/11/2021).

Ainda, observou-se que o ANPP não consubstancia direito público subjetivo do investigado:

"O acordo de não persecução penal – ANPP não constitui direito subjetivo do investigado, assim pode ser proposto pelo Ministério Público conforme as peculiaridades do caso concreto, quando considerado necessário e suficiente para reprovar e prevenir infrações penais."

(AgRg no REsp 1948350/RS, rel. ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), 5ª TURMA, julgado em 9/11/2021, DJe 17/11/2021. AgRg no RHC 152756/SP, rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 14/9/2021, DJe 20/9/2021. AgRg no RE nos EDcl nos EDcl no AgRg no REsp 1816322/MG, rel. ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 13/4/2021, DJe 22/4/2021. AgRg no RHC 130587/SP, rel. ministro FELIX FISCHER, 5ª TURMA, julgado em 17/11/2020, DJe 23/11/2020. RHC 154937/SP, rel. ministro RIBEIRO DANTAS, 5ª TURMA, julgado em 16/11/2021, publicado em 19/11/2021 HC 701443/MS, rel. ministra LAURITA VAZ, 6ª TURMA, julgado em 3/11/2021, publicado em 5/11/2021).

Porém, a recusa na oferta do benefício pelo Ministério Público deve ser fundamentada.

Nesse contexto, a jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça tem se firmado no sentido de que cabe ao Juiz receber ou rejeitar a inicial acusatória. Uma vez recebida a exordial, o réu será citado e no prazo para resposta à acusação poderá requerer a remessa dos autos para revisão. Observa-se que o prazo é preclusivo.

Neste ponto, na esfera federal, verifica-se que Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal em alguns casos não tem conhecido recursos de ofício entendendo ser necessário requerimento expresso da parte interessada. Por isso, a importância do interessado se manifestar em tempo e conforme, apresentando desde logo as razões de irresignação.

Porém, ainda que requerida a remessa, deve-se observar que o magistrado não é obrigado a remeter os autos para revisão em caso de manifesta inadmissibilidade do benefício:

"o juízo poderá, fundamentadamente, negar o envio dos autos à instância revisora, caso entenda que foi apresentada motivação idônea pelo órgão acusatório, pois o simples requerimento do acusado não impõe a remessa automática do processo, em consonância com a interpretação extraída do art. 28 caput, do CPP, e a ratio decidendi da decisão cautelar proferida na ADI n. 6.298/DF" (STJ. HC n. 677218/SP, rel. min. Laurita Vaz, DJe 2/8/2021).

Havendo, por outro lado, discussão de mérito, não seria possível o controle judicial, devendo a matéria ser submetida à revisão interna:

"O controle do Poder Judiciário quanto ao pedido de revisão do não oferecimento do acordo de não persecução penal – ANPP deve se limitar a questões relacionadas aos requisitos objetivos, não é, portanto, legítimo o exame do mérito a fim de impedir a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público".

(AgRg no REsp 1948350/RS, rel. ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), 5ª TURMA, julgado em 9/11/2021, DJe 17/11/2021. AgRg no RHC 152756/SP, rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 14/9/2021, DJe 20/9/2021. REsp 1968114/SP, rel. ministro JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT), 5ª TURMA, julgado em 15/12/2021, publicado em 17/12/2021. HC 677218/SP, rel. ministra LAURITA VAZ, 6ª TURMA, julgado em 30/6/2021, publicado em 2/8/2021. HC nº 194.677/SP, julgado em 11 de maio de 2021. Informativo nº 1017; e HC 668.520/SP, 5ª Turma, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 16/8/2021).

Caso comum verificado na Justiça Federal trata dos crimes tributários. Isso porque há quem sustente a impossibilidade de ANPP nos crimes tributários, tendo em vista que a legislação prevê de forma específica a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento.

Porém, não se verifica tal vedação. Isso porque a própria lei prevê que as condições elencadas para o ANPP podem ser dispostas de forma alternativa e a reparação do dano pode ser dispensada em caso de impossibilidade. Verifica-se, pois, que muitos investigados não têm condições financeiras para pagar a dívida. Logo, afastar o benefício para aqueles que não têm condições financeiras ocasionaria privilégio e distinção que a lei não prevê.

A 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal já se debruçou sobre o tema e entendeu pela possibilidade de ANPP nos crimes tributários:

"[…] o pagamento do tributo ser causa extintiva da punibilidade de forma nenhuma pode representar óbice à propositura do acordo, pois a lei não estabelece essa vedação. As possibilidades de benefício para o investigado, seja por meio do cumprimento de acordo de não persecução penal, seja mediante o pagamento do tributo, a priori, não se excluem. […]"

(VOTO Nº 1988/2020, AUTOS Nº 5000506-49.2020.4.03.6181, ORIGEM: 9ª VARA FEDERAL CRIMINAL DE SÃO PAULO/SP, RELATOR: JULIANO BAIOCCHI VILLA-VERDE DE CARVALHO.).

Prosseguindo na hipótese de remessa, observa-se que eventual provimento do pedido de revisão não ensejará qualquer efeito no recebimento da denúncia, pois trata-se de ato judicial que só pode ser revisto dentro da estrutura do próprio Poder Judiciário. Nesta linha, o processo seria sobrestado com a homologação de eventual ANPP; sendo certo que ao final, cumprida as condições, a punibilidade do agente será extinta. Porém, descumpridas, o marco prescricional já terá se firmado e o processo deverá prosseguir nos termos em que se encontra, não havendo que se falar em novo recebimento.

Outro ponto de intensa controvérsia é a confissão. A polêmica se instala desde o início sobre o acerto ou não legislativo da exigência da confissão para celebração do ANPP. Em que pese os valorosos argumentos de ambos os lados, o legislador exigiu a confissão. Logo, não é possível a homologação do ANPP sem que o investigado tenha confessado formal e circunstancialmente o fato criminoso. A confissão se dá, preferencialmente, por termo escrito em apartado.

Verifica-se ser plenamente possível o ANPP caso o investigado negue a prática delitiva no inquérito policial, mas, após as negociações, opte por confessar. Da mesma forma em que é possível se reconhecer a atenuante da confissão em sentença.

A gravação é recomendável, na medida em que a confissão pode desaguar no esclarecimento de coautoria com o prosseguimento das investigações em face de terceiro. Assim, a gravação é apta a captar de forma mais genuína o quanto alegado e fornece maior segurança. Portanto, entende-se importante a gravação, na mesma linha do entendimento firmado pelo E. Supremo Tribunal Federal em casos envolvendo colaboração premiada:

"Possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada por terceiros delatados. Além de caracterizar negócio jurídico entre as partes, o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de provas, de investigação, visando à melhor persecução penal de coimputados e de organizações criminosas. (…) Necessidade de controle e limitação a eventuais cláusulas ilegais e benefícios abusivos. (…) Necessidade de respeito à legalidade. Controle judicial sobre os mecanismos negociais no processo penal. (…) 5. Como orientação prospectiva ou até um apelo ao legislador, deve-se assentar a obrigatoriedade de registro audiovisual de todos os atos de colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação. Interpretação do art. 4º, § 13, Lei 12.850/13. (…)"

(STF. HC 142205 / PR – PARANÁ. Relator(a): min. GILMAR MENDES. Julgamento: 25/8/2020. Publicação: 1/10/2020)

Como previsto e almejado, o ANPP abrange grande quantidade de crimes. Nesse contexto, verifica-se movimento de padronização dos acordos celebrados observada a pertinência das condições para cada caso concreto. Tanto o ANPP como o termo de confissão devem ser assinados pelo investigado, não sendo suficiente a assinatura por advogado, ainda que com poderes especiais. Isso porque o ato é personalíssimo.

Outro ponto que se coloca é o standard probatório exigido para a homologação do ANPP. Isso porque a massificação do instituto não pode implicar em procedimentos deficitários.

Entende-se, pois, que o modelo de constatação para homologação do ANPP é igual ao exigido para o recebimento da exordial acusatória. Isso porque a lei determina para a homologação a presença de justa causa. Logo, eventuais perícias pertinentes devem constar nos autos para homologação, não sendo suficiente apenas a confissão. Como exemplo, cita-se o laudo pericial que atesta a falsidade de notas. A ausência de tais elementos enseja o retorno dos autos ao órgão de acusação para continuidade das investigações.

Outro ponto de relevância é a necessária observância do determinado pelo e. Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF 569/DF para destinação de eventual prestação pecuniária fixada.

Do exposto, se observam apenas alguns pontos que suscitaram debates na aplicação prática do ANPP. Tais questões serão pacificadas com o avanço da doutrina e jurisprudência. Certo é protagonismo cada vez maior da justiça negocial em matéria penal, assim como previsto no projeto do Novo Código de Processo Penal.

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