Opinião

Do prejuízo ao erário da atuação voluntária de juízo manifestamente incompetente

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11 de abril de 2022, 20h02

Recentemente, ao estudar sobre a persecução penal de crimes relacionados ao desvio de verbas do Sistema Única de Saúde  SUS, foi possível vislumbrar que, embora a jurisprudência dominante e pacífica confira à justiça federal a competência para processar e julgar tais ações penais, ainda subsiste certo voluntarismo de juízes estaduais que persistem em não declinar da sua competência.

O entendimento prevalecente nas Cortes Superiores é de que o fato dos Estados e municípios possuírem autonomia para gerenciar as verbas recebidas da União destinadas ao SUS não os exime da sujeição aos órgãos de controle federais, havendo interesse da União na regularidade do repasse e na correta aplicação desses recursos.

Ou seja, irrelevante se a verba foi incorporada ao patrimônio de determinado Município ou Estado, o que importa é que a União permanece sendo o ente federativo fiscalizador dos recursos que são repassados, independentemente da modalidade da transferência. Em resumo, o entendimento dominante é de que "compete à Justiça Federal processar e julgar as ações penais relacionadas com o desvio de verbas originárias do SUS (Sistema Único de Saúde), independentemente de se tratar de valores repassados aos Estados ou Municípios por meio da modalidade de transferência 'fundo a fundo' ou mediante realização de convênio" [1].

Destarte, extremamente contraproducente quando um juízo insiste em manter sob a sua tutela uma ação penal na qual sabidamente é incompetente, como por exemplo situações de desvio de recursos do SUS, porquanto essa conduta tem o condão de causar prejuízo ao erário, pois movimenta todo o aparato estatal para praticar atos que provavelmente serão anulados pelos Tribunais, todavia, sem se submeter ao regime de responsabilização dos agentes públicos.

Nesse contexto, os Tribunais Superiores têm afastado a aplicação da teoria do juízo aparente, que a priori permitiria a preservação dos atos praticados por juízo aparamente competente, considerando que existem casos em que o juízo é sabidamente incompetente desde o princípio do processo, acarretando a nulidade de todos os atos praticados, o que ocorreria, por exemplo, caso um juiz não decline de sua competência em casos de desvio de verbas do SUS. Corrobora o exposto precedente do STJ proferido no Recurso em Habeas Corpus nº 130.197  DF, in verbis:

"PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. 'OPERAÇÃO GRABATO'. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA FEDERAL. NULIDADE DOS ATOS PRATICADOS. NÃO RECONHECIMENTO. 2. TEORIA DO JUÍZO APARENTE. NÃO APLICAÇÃO. 3. VERBAS DA UNIÃO. COMBATE À PANDEMIA DE COVID-19. HOSPITAL DE CAMPANHA. SUPERVISÃO DIRETA E EXPLÍCITA DA CGU. COMPETÊNCIA FEDERAL MANIFESTA. 4. PREJUÍZO DEMONSTRADO. PRIVACIDADE DEVASSADA. JUÍZO SABIDAMENTE INCOMPETENTE DESDE O INÍCIO. PROVA ILÍCITA. ART. 157 DO CPP. PRECEDENTES. 5. RECURSO EM HABEAS CORPUS A QUE SE DÁ PROVIMENTO".

Desta sorte, imprescindível que a atuação do juízo se dê em respeito aos precedentes instituídos pelas Cortes Superiores, evitando-se posturas por demais personalistas e que ocasionam insegurança jurídica em processos que tenham o condão de limitar direitos fundamentais.

Assim, em casos envolvendo desvio de verbas do Sistema Único de Saúde (SUS), patente é a competência da justiça federal para processamento e julgamento do processo, porquanto a Constituição Federal estabelece percentuais mínimos de recursos a serem repassados pela União para os demais entes federativos, enquanto a legislação infraconstitucional também disciplina outras fontes de custeio do Fundo Nacional de Saúde (FNS), como por exemplo 45% dos recursos do Dpvat [2], assim como outras formas de financiamento, via contrato de repasse, convênio, emendas parlamentares.

Vale ressaltar que desde o dia 1º de janeiro de 2021, a Caixa Econômica Federal (CEF) passou a gerir a administração do seguro obrigatório Dpvat [3], fato que atraiu a competência da justiça federal para processar e julgar demandas cíveis e criminais do DPVAT distribuídas a partir de 2021, o que nos permite concluir que o fato de 45% dos recursos do Dpvat comporem a receita do FNS, milita a favor da jurisprudência já consolidada que atribui a justiça federal à competência para processar e julgas as ações criminais decorrentes do desvio de verbas do SUS.

Do exposto, irrazoável e inconsequente que um juízo sabidamente incompetente se utilize de todo o aparato estatal para a prática de medidas cautelares e outros atos processuais que notadamente poderão ser anulados em instância superior, e o pior, sem que haja um regime de responsabilização, considerando que essa conduta traz insegurança jurídica, custos demasiados ao judiciário e às partes, além de violar inúmeros princípios da administração pública, como legalidade, impessoalidade e eficiência.


[1] STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 129386/RJ, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 11/12/2013. STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 122555-RJ, relator ministro Og Fernandes, julgado em 14/8/2013 (Info 527).

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