Anuário do MP

Violência contra a mulher foi tema de maior demanda em inquéritos no MP-RS

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10 de abril de 2022, 8h52

*Reportagem publicada no Anuário do Ministério Público Brasil 2022. A publicação está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul é conhecido e admirado no país pela qualidade técnica de seus promotores e procuradores de Justiça, já que alguns granjearam alta reputação na imprensa especializada – como o procurador aposentado Lenio Streck, colunista da ConJur, referência em Direito Constitucional. Afora os casos midiáticos, o grande trabalho do MP-RS de 2020 para cá foi testar os limites do papel de paladino da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis da população, como autoriza o artigo 127 da Constituição. É que os reflexos políticos-jurídicos advindos dos decretos de fechamento do comércio e das restrições de circulação de pessoas colocaram em confronto direitos privados e coletivos, exigindo ação rápida de todos os MPs.

Desde os primeiros dias de epidemia, o MP-RS, cujo órgão administrativo é a Procuradoria-Geral de Justiça, promoveu adaptações em sua estrutura interna para garantir a continuidade dos serviços à população gaúcha. O primeiro passo foi ampliar a rede de acesso à internet – 70% no link e em dez vezes a capacidade de acessos remotos simultâneos. Afinal, em lugar da realidade presencial, assumiu a realidade virtual.

Isso gerou um incremento superior a 900% no número de videoconferências: a média mensal antes da epidemia era de 60 audiências/ mês; no acumulado de 2020, foram 572 audiências/mês. O Programa de Padronização e Organização Administrativa, essencial para a gestão estratégica da instituição, certificou, ao longo do ano, 188 Promotorias de Justiça – 117 com o nível de “excelência”.

Com maior robustez tecnológica, a migração do atendimento presencial para o virtual, que já vinha ocorrendo, foi impulsionada em 2020. O Serviço de Informações e Atendimento ao Cidadão registrou crescimento de 185% em relação a 2019, com 14.786 atendimentos realizados no período. Já no formato presencial, que teve redução de 44%, foram atendidas 23.992 pessoas nas unidades e Promotorias de Justiça de todo o estado, seguindo tendência de queda registrada nos anos anteriores, agravada pelas medidas de distanciamento social.

Em junho de 2020, o MP-RS implementou um projeto-piloto de atendimento ao cidadão pelo aplicativo WhatsApp em cinco Promotorias de Justiça. O objetivo é utilizar mais esse canal para prestar informações, receber denúncias e, quando necessário, agendar audiências com os promotores. Dos 786 atendimentos realizados desde a implantação, em 98% dos casos as demandas foram resolvidas pelo próprio servidor que efetuou o primeiro contato. O atendimento pelo WhatsApp já havia sido implementado com bons resultados na área de proteção à mulher vítima de violência doméstica, por meio do projeto Fale com Elas.

Para entender a atividade-fim do MP-RS, é preciso conhecer um pouco o seu organograma. Os promotores de Justiça atuam no primeiro grau da Justiça Estadual oferecendo denúncias; os procuradores só na fase de recursos aos tribunais, especialmente em apelações. A atuação está dividida em três grandes áreas: criminal, cível e especializadas.

A primeira área envolve atuação no crime em geral, nos Juizados Especiais Criminais (Jecrim), nos tribunais do júri, na execução penal e na investigação criminal. A segunda abrange temas referentes à fazenda pública (fisco), família e sucessões e registros públicos. Já as especializadas reúnem
demandas de grande impacto social e de cidadania e, às vezes, midiático, como direitos humanos, infância e juventude, meio ambiente, ordem urbanística, Direito do Consumidor e patrimônio público. Hoje, há grande foco na tutela coletiva desses direitos.

Estas três grandes áreas operam nas esferas judicial e extrajudicial. Na judicial, a atuação se dá por meio do ajuizamento de ações civis públicas e denúncias, além de participação em processos judiciais já em tramitação – como fiscal da lei. Extrajudicialmente, através de investigações (inquéritos civis – ICs e procedimentos investigatórios criminais – PICs), procedimentos administrativos (acompanhamento das instituições e políticas públicas) e acordos (compromissos de ajustamento de conduta).

Dados do relatório MP Um Retrato, do CNMP, mostram que em 2020 o MP gaúcho atuou em mais de 1 milhão de processos judiciais, considerando a atuação cível e criminal em primeira e segunda instâncias. Na área criminal, recebeu 196 mil inquéritos policiais e mais de 195 mil termos circunstanciados e apresentou mais 40 mil denúncias. Também firmou 1,9 mil acordos extrajudiciais e expediu 4,2 mil recomendações.

Entre os inquéritos policiais, a violência contra a mulher foi o tema de maior demanda no primeiro ano da epidemia de covid-19. Crimes contra o patrimônio, tráfico e homicídios aparecem em seguida entre os principais temas de inquéritos policiais.

Na área cível, em fins de dezembro de 2020 haviam sido instaurados 5 mil inquéritos civis, abertos 18.396 procedimentos administrativos, firmados 821 compromissos de ajustamento de conduta, expedidas 490 recomendações e propostas à Justiça 5 mil novas ações – entre elas, 1.403 ações civis públicas. Direito da criança e do adolescente, meio ambiente, saúde, direitos do idoso e improbidade administrativa foram os temas que mais demandaram atenção de promotores e procuradores.
O MP-RS criou a Força-Tarefa Covid-19 para apurar, prevenir e reprimir a prática de preços abusivos e outras infrações à ordem econômica, em todo o estado, nas compras públicas de insumos laboratoriais e produtos médico-hospitalares. A iniciativa atendeu pedido da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul.

O foco, que ainda perdura, é a apuração de práticas abusivas criminosas, entre outros ilícitos, especialmente as relacionadas a equipamentos de proteção individual, testes e insumos laboratoriais e hospitalares necessários à proteção dos profissionais de saúde e atendimento aos pacientes com suspeita e confirmação de covid-19.

A iniciativa dos promotores de Justiça de negociar com prefeitos antes de lançar mão de qualquer medida judicial foi exitosa na grande maioria das comarcas, destaca o Relatório Anual do MP-RS. Em alguns municípios, entretanto, foi necessário o ajuizamento de ações. Nas comarcas de Portão, Sapiranga, Cacique Doble e São José do Ouro, esgotadas as tentativas de acordo, os promotores ingressaram com ACPs exigindo o cumprimento do decreto estadual e da orientação de não flexibilização nas normas federal e estadual.

Num caso até curioso, a Promotoria da Comarca de São Borja teve de ajuizar uma ACP para exigir o cumprimento do decreto municipal (mais restritivo que o estadual), no sentido de impedir uma excursão que estava sendo planejada, partindo do referido município, com destino à Serra Gaúcha – no que foi atendida pela Justiça. Até dezembro de 2020, a Procuradoria dos Prefeitos havia ajuizado 18 denúncias, obtendo o afastamento de quatro prefeitos.

Ao longo de 2020, a Procuradoria–Geral de Justiça propôs 28 ações diretas de inconstitucionalidade. Das 16 julgadas, 15 foram consideradas totalmente procedentes no mérito e uma, parcialmente procedente. Das demais, quatro foram extintas sem julgamento de mérito e oito ainda pendem de julgamento. Os procuradores ainda atuaram em cinco incidentes de inconstitucionalidade, além de outras 82 ADIs como custos legis – nas quais o MP exerce atividade fiscalizadora da correta aplicação do direito.

Exemplo da atuação focada no efetivo cumprimento do regramento legal, em tema vinculado à epidemia, foi a ADI ajuizada contra dispositivos de um decreto municipal que restringiam a circulação no município de Pelotas, em agosto de 2020. Na ação, o MP-RS sustentou que ações que atingem o direito do cidadão de ir e vir são inconstitucionais e que, neste ponto, o decreto desbordou dos limites jurídicos autorizados, malferindo princípios constitucionais sensíveis.

Ressaltou, ainda que, “dada a gravidade da crise sanitária, não resta dúvida de que os direitos individuais podem e até devem sofrer limitações bem mais severas do que ordinariamente se verificaria, contudo, mesmo assim, existem lindes insuperáveis”. Fatos semelhantes ocorreram em outros municípios. Nos demais casos, as prefeituras atenderam às recomendações do MP, evitando o ajuizamento de ADIs.

Outra questão grave foi a ocorrência de surtos por covid-19 em frigoríficos do estado. A administração do MP-RS, com suporte do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, orientou os promotores de Justiça quanto à fiscalização da atuação da autoridade sanitária local no cumprimento de questões relativas ao isolamento do trabalhador com suspeita ou diagnosticado, com o intuito de proteger a saúde coletiva.

Esgotadas as possibilidades de mediação com as empresas, ocorrida no âmbito do Mediar-MP, a atuação do MP-RS teve como resultado: assinatura de termos de ajustamento de conduta com empresas como a Minuano Alimentos, visando a preservar a saúde e a segurança dos trabalhadores do frigorífico, considerando os níveis alarmantes de contaminação e a gravidade do vírus; interdição de frigoríficos, como a planta da JBS em Passo Fundo, pelo Ministério Público do Trabalho; interdição do frigorífico de Lajeado, após propositura de ação civil pública; determinação para que as empresas elaborassem plano de retomada gradativa das atividades para implementação, após o período de suspensão das atividades, observando as orientações dos órgãos municipais, estaduais e federais de vigilância sanitária; retomada das atividades dos frigoríficos interditados após análise e aprovação do Ministério Público e homologação judicial, sob pena de se prorrogar a suspensão das atividades até sua adequação.

Afora a questão sanitária, o órgão não descuidou do combate à sonegação de ICMS – a principal fonte de receita do estado. No acumulado de 2020, o MP–RS ajuizou 72 denúncias, envolvendo 600 pessoas e um volume de sonegação estimado em R$ 420 milhões. No mês de junho, em ação conjunta da Receita Estadual e da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS), a Justiça concedeu liminar, em ação cautelar fiscal, para indisponibilizar mais de R$ 56 milhões em bens ou qualquer outro tipo de patrimônio de empresas do ramo de móveis e decoração envolvidas em fraude fiscal. As autuações fiscais também são objeto de representação ao MP-RS, para fins de avaliação dos crimes tributários, lavagem de dinheiro e demais delitos.

Entre os casos de grande repercussão na imprensa se destaca o da Boate Kiss, sob responsabilidade dos promotores de Justiça Davi Medina da Silva e Lúcia Helena de Lima Callegari. Em dezembro de 2021, oito anos depois do incêndio que matou 242 e feriu 600 jovens em Santa Maria, o Tribunal do Júri de Porto Alegre condenou por homicídio com dolo eventual os dois sócios da boate, além do vocalista e um auxiliar da banda que se apresentava na casa quando aconteceu a tragédia. As penas variam de 18 a 22 anos de prisão.

Em março de 2019, o MP-RS conseguiu a condenação dos assassinos do menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, cujo corpo foi encontrado dez dias mais tarde dentro de um saco enterrado às margens de um rio numa cidade vizinha. No julgamento, resultaram condenados os quatro denunciados – o pai do garoto foi sentenciado a 33 anos de prisão. Por fim, estão para ir a julgamento na 2ª Vara do Júri de Porto Alegre os seis réus denunciados pela morte de João Alberto Freitas no estacionamento de uma loja do Carrefour na Capital, em 19 de novembro de 2020 – o homicídio ganhou repercussão internacional, sobretudo por ter sido cometido contra um homem negro na véspera do Dia da Consciência Negra.

Esses três casos deram visibilidade à atuação do MP-RS. Menos repercussão teve a condenação em segundo grau de um professor que abusou de 23 alunas menores de 14 anos de escolas da Região Metropolitana de Porto Alegre. A confirmação da sentença, que o condenou pelo delito de estupro de vulnerável a 28 anos e nove meses de reclusão, veio em março de 2020, quando a 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça negou as apelações do réu – o processo transitou em julgado em setembro de 2020.

Anuário do Ministério Público Brasil 2022
ISSN: 2675-7346
Edição: 2021 | 2022
Número de páginas: 204
Editora ConJur
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