Dois fatos para reflexão sobre estereótipos na justiça criminal
3 de setembro de 2021, 18h57
Nesta Limite Penal, gostaríamos de propor reflexão a respeito de dois fatos sobre os quais muito se falou nesta semana. O primeiro envolvendo os desembargadores Simone Schreiber e André Fontes; o segundo relativo à absolvição de Ângelo Gustavo Pereira Nobre, injustamente condenado por reconhecimento por foto de facebook. Embora a uma primeira vista possa parecer difícil ver qualquer conexão entre eles, são fatos que, sim, merecem ser conjuntamente considerados, uma vez que ambos refletem os nefastos efeitos decorrentes da presença de estereótipos negativos no ambiente jurídico. Para tanto, ofereceremos uma breve descrição de cada um:
Chamou a atenção da comunidade jurídica a calma e a elegância com a qual os ataques dele foram recebidos por ela. Foi nítido o contraste entre a falta de domínio das emoções de um lado, e a preservação de postura institucional ‒ mesmo diante das violentas palavras que acabava de receber ‒ de outro. Não por outra razão, um site de notícias que inicialmente tinha apresentado o fato como mero “bate-boca” entre desembargadores, diante das inúmeras reclamações recebidas, teve de voltar atrás e reconhecer a “evidente grosseria”. Sem dúvidas, este foi um dos eventos mais comentados pelos operadores jurídicos no decorrer da semana e merecem destaque as notas de apoio direcionadas à magistrada[1].
Vamos ao segundo fato.
2) Na terça-feira, dia 31 de agosto, a revisão criminal proposta por Ângelo Gustavo Pereira Nobre, junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foi julgada procedente. Gugu, como é chamado pelos mais próximos, havia sido injustamente condenado pela prática de roubo à mão armada ocorrido em 2014. A condenação transitou em julgado em agosto de 2020, ao que se seguiu a fase do cumprimento da pena de mais de seis anos de prisão, a partir de 02 de setembro de 2020. Ângelo Gustavo estava, portanto, há poucos dias de completar um ano em regime fechado.
Ângelo Gustavo é um jovem negro de origem humilde que, com seus 28 anos, foi condenado em razão de falso reconhecimento. Três meses depois da data do fato, ele foi apontado pela vítima como um de seus assaltantes a partir de foto de facebook que ela mesma selecionou em “investigação” que fez de sua casa.
“[…] A identificação do ora requerente pelo lesado ocorreu três meses após os fatos, e se deu através de pesquisa por ele próprio realizada nas redes sociais do roubador identificado, oportunidade em que teria visualizado uma foto na qual o outro acusado estaria supostamente com o ora requerente. Assim, ante a ”descoberta” feita pela vítima, o ora requerente foi indiciado como sendo o outro roubador, SEM QUE QUALQUER OUTRA DILIGÊNCIA TIVESSE FEITA PELA AUTORIDADE POLICIAL”. (grifos da própria magistrada redatora designada, Des. Maria Angélica G. Guerra Guedes, Revisão Criminal n. 0069552-52.2020.8.19.0000)
Enquanto a hipótese fática trazida pela acusação fundamentou-se unicamente em prática que sequer de longe merece ser chamada de reconhecimento, a hipótese defensiva teve o apoio de abundantes elementos probatórios os quais compreendiam tanto os registros médicos das cirurgias por que Ângelo Gustavo passou (para reverter a condição de pneumotórax), incluindo fotos, como uma pluralidade de testemunhas que declararam, de modo consonante, haverem o encontrado em estado frágil, participando de uma missa na data do fato e que, inclusive, necessitou de ajuda para locomoção.
Ademais, não cabem dúvidas de que a condenação poderia ter sido evitada se os responsáveis pelo inquérito policial tivessem tomado a simples providência de o intimar a depor. Tivessem oportunizado sua participação na fase de inquérito, o radical descompasso entre os fatos narrados pela vítima, como tendo sido cometidos por Ângelo Gustavo, e sua patente fragilidade física teria sido fácil e diretamente constatada.
A indiferença investigativa transformou-se rapidamente em condenação transitada em julgado, e é forçoso reconhecer que a revisão criminal parecia ir pelo mesmo caminho, não fosse a reviravolta causada pelo voto acima mencionado. Foi a explicitação do raciocínio probatório da Des. Maria Angélica que mudou o curso dos votos que faltavam: depois de um apertado placar de quatro votos a três, sobreveio a tão esperada absolvição.
Ângelo Gustavo é um homem negro, de origens humildes e que trabalha com produção cultural. Simone Schreiber é uma mulher branca, classe média alta e que chegou ao cargo de desembargadora federal, uma das mais altas posições da magistratura. Se os imaginamos em um espectro que espacialmente representa os lugares que ocuparam/ocupam no sistema de justiça criminal brasileiro, seremos capazes de perceber o quão distantes estão um do outro: ele, na ponta em que encontramos a “clientela preferencial” de um sistema de justiça seletivo; ela, na ponta dos que desempenham com relevo a tarefa de dizer o direito, tendo a responsabilidade de interpretar, redefinir conceitos e ponderar sobre questões desafiadoras desde o ponto de vista jurídico.
Em resumidas linhas, pode-se dizer que Ângelo Gustavo e Simone Schreiber localizam-se em extremidades opostas desta linha contínua, respectivamente, daqueles sobre os quais se exerce a repressão e daqueles que desempenham posições de poder. Entretanto, ainda assim, é possível afirmar que suas existências foram marcadas por estereótipos cujos efeitos impediram que fossem adequadamente tratados. O tratamento inadequado, por sua vez, é dado por aquele que carece de abertura a experiências que podem desestabilizar as suas próprias experiências[2]. É importante esclarecer que, o propósito aqui não é equivaler as experiências de injustiça de um e de outro, mas de salientar que a redução da credibilidade dos dois, enquanto sujeitos, ocorre gradativamente a medida em que se distanciam da normatividade representada pelo homem branco.
É que o direito produzido como um artefato que deveria servir a todos igualmente, em realidade, reserva um lugar privilegiado ao homem branco. Nem mesmo desempenhando um cargo de poder e prestígio no arranjo de nossas instituições, a magistrada esteve a salvo de ostensiva interferência em sua atuação, pelo simples fato de ser mulher. O próprio pertencimento de Simone Schreiber ao contexto do tribunal foi questionado por seu colega, ao afirmar que ela carecia de “autoridade constitucional para lhe corrigir”, que ela não tinha “competência para votar”. Deixar de oferecer às colegas mulheres o mesmo tratamento de urbanidade e respeito concedido aos demais colegas homens parece mascarar estereótipos (de tipo descritivo) segundo os quais as mulheres seriam menos capazes e menos inteligentes que os homens. Esses estereótipos, por sua vez, são aptos a reforçar estereótipos (de tipo prescritivo) a partir dos quais então, se alguém é mulher, deveria ocupar outros espaços e desempenhar outras tarefas (decerto menos importantes).
Logo, por esta via, é possível constatar como os estereótipos de gênero (descritivos e prescritivos) prejudicam a atuação das mulheres nos mesmos espaços em que homens se sentem absolutamente confortáveis. Justamente por esta razão, José Medina lista o homem sexista como um dos óbvios exemplos de “mente epistemicamente fechada”:
“(…) Que sistematicamente debilita a autoridade epistêmica das mulheres, não lhes dá credibilidade e patologiza as suas percepções, raciocínio, versões (desqualificando-as como irracionais ou histéricas, por exemplo)”. (José Medina, “The epistemology of resistance: gender and racial oppression, epistemic injustice, and resistant imaginations: studies in feminist philosophy”, 2013, p. 35, T.L. )
Do ponto de vista conceitual, não é difícil perceber a proximidade entre a mente epistemicamente fechada e os estereótipos: estes são as ferramentas daquelas. No que refere especificamente aos estereótipos que se fizeram presentes no caso de Ângelo Gustavo, não há como se ignorar as implícitas correlações entre ser negro e ser culpado, ou, ao menos, entre ser negro e ser descartável que, consciente ou inconscientemente, trouxeram nefastos efeitos ao desdobrar de seu processo. Como já mencionado neste artigo, é sintomático que Ângelo Gustavo sequer tenha sido chamado a depor em seu próprio inquérito policial, como se em nada pudesse contribuir com a sua versão dos fatos. Em carta escrita já desde a prisão, registrou:
“A Justiça no Brasil não tem como entender. É tanto preconceito, já não tem pra onde correr. Será que é o tom da minha pele? Ou o jeito que me visto? Se eu fosse loiro dos olhos azuis não passaria por isso! Fico muito indignado, minha raça tem um álbum (…)”.
As palavras de Ângelo Gustavo atualizam o dito por Franz Fanon, em 1952:
“Nenhuma chance me é concedida. Sou sobredeterminado a partir do exterior.
(…)
Chego lentamente ao mundo, já acostumado a não me arrogar aparições repentinas. Eu me movo rastejando. E já me dissecam os olhares brancos, os únicos verdadeiros. Sou fixado. Uma vez ajustado ao seu micrótomo, eles objetivamente realizam cortes na minha realidade. Sou traído. Sinto, vejo nesses olhares brancos que não é um homem novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um novo gênero. Um negro, ora essa”. (Fanon, F. “Pele negra, máscaras brancas”, São Paulo: Ubu, 2020, p.131).
Gostaríamos, por fim, de trazer algo positivo. A atenção que ambos os casos ganharam da comunidade jurídica, e mesmo da opinião pública de forma mais geral, significa que a calmaria que já albergou confortavelmente o privilégio do homem branco receberá ventos cada vez mais democráticos. Temos a tarefa de desacomodar estereótipos, apontando-los, constrangendo-los, pois são incompatíveis com o processo penal prometido pela Constituição de 88. A comoção em torno do caso de Ângelo Gustavo e a rápida reação da comunidade jurídica aos ataques sofridos pela Des. Simone Schreiber são boas razões para acreditarmos que seremos capazes disso.
[1]. Nota do Grupo Prerrogativas, da AJD e da UMA.
[2]. Medina, J. “The epistemology of resistance: gender and racial oppression, epistemic injustice, and resistant imaginations: studies in feminist philosophy”, New York: Oxford University Press, 2013.
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