A superação da Súmula 568 do STJ
26 de outubro de 2021, 7h13
O verbete 568 da súmula da jurisprudência predominante do Superior Tribunal de Justiça assim estabelece:
"O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema".
A Corte Especial do STJ aprovou a Súmula 568 em 16/3/2016, cuja publicação do julgamento ocorreu no dia seguinte.
Ocorre que não existia controvérsia jurisprudencial que justificasse a edição da súmula. O enunciado da súmula 568 praticamente repetia o texto do artigo 557 do Código de Processo Civil (CPC) de 1973 — então em vigor —, que assim estatuía, com a redação conferida pela Lei 9.768/1998:
"O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. §1º–A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso".
Da análise dos oito precedentes que motivaram a criação da Súmula 568, constata-se que em nenhum deles ocorreu discussão acerca do assunto objeto da súmula [1]. Ao revés, causaria surpresa se tal assunto suscitasse divergência no STJ, pois o artigo 557 do CPC/1973 permitia, expressamente, o julgamento monocrático pelo relator na hipótese de jurisprudência — ou entendimento — dominante. Ademais, em nenhum desses precedentes sequer houve julgamento monocrático.
A possibilidade de julgamento monocrático pelo relator nos casos de jurisprudência dominante fomentou intenso debate doutrinário, após a nova redação do artigo 557 do CPC/1973. A vagueza da expressão "jurisprudência dominante" recebeu diversas críticas.
A doutrina, à época, buscou estabelecer balizas mais sólidas de controle das decisões monocráticas. Havia autores que fincaram o conceito de jurisprudência dominante em dados estatísticos. Luiz Rodrigues Wambier defendia que o conceito deveria representar decisões em percentual de, ao menos, 70% da jurisprudência do tribunal ao longo de dois, três ou cinco anos retroativamente [2]. Wanessa Françolin entendia que bastaria a existência de decisões em percentual superior a 50% [3]. Por outro turno, Cândido Rangel Dinamarco esgrimia que o critério estatístico deveria ser abandonado e, assim, prevaleceria o critério discricionário do relator [4]. Ademais, não havia consenso acerca de qual órgão julgador deveria emergir a jurisprudência dominante — se da câmara (turma), do grupo (seção), do órgão especial (corte especial) ou do plenário. Enfim, reinava a mais absoluta discrepância na doutrina acerca do conceito de jurisprudência dominante.
Diante de tal cenário caótico, o CPC/2015, ao entrar em vigor, em 18/3/2016, abandonou a malfadada expressão jurisprudência dominante, nestes termos:
"Artigo 932 — Incumbe ao relator:
(…)
IV – negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
V – depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência".
O CPC/2015 passou a apresentar critérios objetivos que autorizam o relator, monocraticamente, negar ou dar provimento a recurso. Destarte, ao invés de valer-se do conceito impreciso de jurisprudência dominante, optou o legislador por elencar rol exaustivo de padrões decisórios autorizadores da atuação solitária do relator, na esteira do novo modelo decisório, notadamente previsto nos artigos 926 e 927 do CPC/2015 [5]. Nesse sentido, a opinião doutrinária expressa no Enunciado 462 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC):
"É nula, por usurpação de competência funcional do órgão colegiado, a decisão do relator que julgar monocraticamente o mérito do recurso, sem demonstrar o alinhamento de seu pronunciamento judicial com um dos padrões decisórios descritos no artigo 932".
As decisões dos tribunais, em regra, deveriam ser colegiadas. Contudo, verificou-se, ao longo dos anos, tendência acentuada de aumento do número de decisões monocráticas. No STJ, de março de 2020 a agosto de 2021, foram proferidas 766.730 decisões terminativas. Dessas decisões, 612.654 foram monocráticas, e somente 154.116 ocorreram em colegiados [6]. Observa-se, de modo insofismável, a inversão da pirâmide, em que as decisões monocráticas se tornaram a regra.
A redação do artigo 932 do CPC/2015 almejou frear — ou, ao menos, delimitar adequadamente — as hipóteses de decisões monocráticas do relator. De modo inusitado, dois dias antes da entrada em vigor do CPC/2015, aprovou-se a súmula 568, que permitiria a atuação monocrática do relator, no âmbito do STJ, com fulcro em entendimento dominante, até os dias atuais.
Conforme já salientado, a aprovação da súmula 568 deixou de preencher dois requisitos básicos: 1) pacificação de entendimento outrora divergente; 2) pertinência entre o enunciado da súmula e os fatos relevantes contidos nos precedentes que lhe deram suporte [7].
A Súmula 568 parece que surgiu como espécie de "interpretação preventiva" do artigo 932 do CPC/2015, então no período de vacatio legis. Poder-se-ia, quiçá, aliar a tal conjectura que a Súmula 568 desempenharia papel de "salvo-conduto" à Emenda Regimental 22 — aprovada na mesma data da súmula —, que concedeu a seguinte redação ao regimento interno do STJ (RISTJ):
"Artigo 34 — São atribuições do relator:
(…)
XVIII — distribuídos os autos:
b) negar provimento ao recurso ou pedido que for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema;
c) dar provimento ao recurso se o acórdão recorrido for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema" [8];
A nova redação insculpida no artigo 34 do RISTJ alicerça-se em interpretação equivocada [9] do artigo 932, inciso VII, do CPC/2015, que assim estabelece:
"Artigo 932 — Incumbe ao relator:
(…)
VIII — exercer outras atribuições estabelecidas no regimento interno do tribunal".
Ora, a hipótese prevista no inciso VIII do artigo 932 do CPC diz respeito a poderes do relator não elencados expressamente nos incisos anteriores. Se o legislador definiu em quais hipóteses o relator poderá dar ou negar provimento a recurso, depreende-se ser defeso a regimento interno de tribunal dispor de modo diverso. O texto do dispositivo legal é muito claro ao se referir a "outras atribuições". Repita-se: a "atribuição" de negar ou prover recurso já foi estabelecida — em rol taxativo — pelo legislador [10].
A doutrina critica ostensivamente a edição da súmula 568, como se pode extrair das opiniões abaixo:
"Tendo sido aprovada em 16/03/2016, ou seja, ainda na vigência do CPC/1973, deve ser a primeira súmula da história a consagrar entendimento a ser aplicado na interpretação de diploma legal ainda na vacatio legis. E isso porque súmula é a concretização da jurisprudência, com o que resta a incômoda pergunta de como é possível jurisprudência de um diploma legal que ainda não está em vigência" (NEVES, Daniel Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 1422).
"O enunciado 568 da súmula do STJ aparentemente desborda dos limites do art. 932 do CPC, por alargar os poderes conferidos por lei" (DIDIER, Fredie Jr.; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 16. ed. Salvador: JusPodivum, 2019. p. 69).
"Demais disso, na nossa visão, o enunciado de Súmula n. 568 do Superior Tribunal de Justiça, aprovado dias antes da entrada em vigor do Código, deverá ter aplicação residual, para os recursos decididos antes da vigência do CPC/2015 e decididos com base no art. 557. Presente o CPC/2015, o enunciado de súmula ficou sem base normativa, não podendo mais ser aplicado aos casos futuros" (DUARTE, Zulmar. In: DELLORE, Luiz et al. Comentários aos Código de Processo Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. posição 1316).
"Buscou o NCPC restringir a quantidade de decisões monocráticas. Para tanto, o art. 932 do NCPC não seguiu a redação do art. 557 do CPC1973. O Código anterior permitia o julgamento monocrático no caso de jurisprudência dominante (algo bastante subjetivo); o NCPC aponta a necessidade de algum precedente vinculante para que seja proferido o julgamento monocrático: súmula ou julgamento repetitivo.
Ou seja: pelo NCPC, não pode o julgador decidir de acordo com jurisprudência dominante. O que o STJ fez? Editou uma súmula permitindo isso, numa forma de "repristinação" do texto anterior do Código" (DELLORE, Luiz. O Novo CPC ‘não pegou’: casos em que o STJ simplesmente não aplica o Código. GEN Jurídico, São Paulo, 21 jan. de 2019. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/01/21/casos-stj-nao-aplica-cpc/. Acesso em: 22 de outubro de 2021).
Conclui-se que os relatores deveriam deixar de julgar monocraticamente sob o escudo de "entendimento dominante", pois, com a entrada em vigor do CPC/2015, ocorreu superação — overruling — da Súmula 568 do STJ, nos termos do artigo 489, §1º, VII, do CPC [11]. Outrossim, espera-se que o STJ venha a cancelar a Súmula 568 [12].
[1] Estes são os oito precedentes arrolados no sítio eletrônico do STJ apontados como motivadores da súmula 568: REsp 1563610-PI, REsp 1501205-RS, REsp 1290933-SP, REsp 1107977-RS, REsp 1346836, REsp 1084943-MG, REsp 732939-RS, REsp 50370-RS.
[2] Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência dominante. Revista de Processo, São Paulo, v. 100, p. 85-86, out. 2000.
[3] A Ampliação dos Poderes do Relator nos Recursos Cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 94.
[4] A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 187.
[5] "Artigo 926 – Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Artigo 927 – Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados".
[6] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/24082021-STJ-chega-a-marca-de-um-milhao-de-decisoes-na-pandemia–com-foco-em-eficiencia-e-modernizacao.aspx.
[7] "CPC, Artigo 926 – Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§1º. Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§2º. Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação".
[8] Demais hipóteses de julgamento monocrático do relator com base em jurisprudência dominante: Art. 34, XIX, XX, XXII; Art. 67, par. ún., VIII-A; 253, par. ún., II, b e c; 266-C.
[9] O ministro Luiz Fux, em artigo doutrinário, corrobora com o entendimento de que regimento interno de tribunal poderia ressuscitar o conceito de jurisprudência dominante para permitir decisões monocráticas de relator (https://www.conjur.com.br/2016-mar-22/ministro-luiz-fux-cpc-seguranca-juridica-normativa).
[10] Nesse mesmo sentido, a opinião de Pablo Bezerra e Carlos Marden (http://www.justificando.com/2016/10/11/stj-desvirtua-novo-cpc-e-mantem-poderes-arbitrarios-do-relator/)
[11] "Artigo 489 – São elementos essenciais da sentença: (…) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…) VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento".
[12] "CPC, Artigo 927 – Os juízes e os tribunais observarão: (…) § 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese. § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. RISTJ: Art. 125. Os enunciados da súmula prevalecem e serão revistos na forma estabelecida neste Regimento Interno. § 1º Qualquer dos Ministros poderá propor, em novos feitos, a revisão da jurisprudência compendiada na súmula, sobrestando-se o julgamento, se necessário. § 2º Se algum dos Ministros propuser revisão da jurisprudência compendiada na súmula, em julgamento perante a Turma, esta, se acolher a proposta, remeterá o feito ao julgamento da Corte Especial ou da Seção, dispensada a lavratura do acórdão, juntando-se, entretanto, a certidão de julgamento e tomando-se o parecer do Ministério Público Federal. § 3º A alteração ou o cancelamento do enunciado da súmula serão deliberados na Corte Especial ou nas Seções, conforme o caso, por maioria absoluta dos seus membros, com a presença de, no mínimo, dois terços de seus componentes. § 4º Ficarão vagos, com a nota correspondente, para efeito de eventual restabelecimento, os números dos enunciados que o Tribunal cancelar ou alterar, tomando os que forem modificados novos números da série".
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!