Opinião

A 'guerra fria da vacina' chega à cultura

Autores

  • Cecilia Rabêlo

    é advogada mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

  • Carol Bassin

    é advogada especializada em propriedade intelectual legislação de incentivo e proteção autoral com experiência de atuação no suporte jurídico e estratégico ao mercado de produção cultural mídias digitais e negociações envolvendo licenciamento de direitos consultora jurídica e business affair da agência Condé+ e membro efetivo da Comissão de Direitos Autorais Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB-RJ.

25 de novembro de 2021, 21h07

Uma certeza neste pesadelo protagonizado pela pandemia da Covid-19 é a de que vacinas salvam vidas. Não à toa, assistimos, na torcida e com grande expectativa, à maior força-tarefa científica dos últimos anos: o mundo todo reunindo os seus melhores esforços para descobrir e produzir, em tempo recorde, uma vacina que fosse capaz de conter o caos. Um passaporte de "retorno à normalidade". Ou, pelo menos, uma tentativa consciente.

No último sábado, a população carioca acordou com a seguinte notícia: pela primeira vez desde o início da pandemia, a cidade do Rio de Janeiro não havia registrado nenhum óbito por Covid-19. Um sopro de esperança que, felizmente, vem sendo experimentado em muitas cidades brasileiras desde que o nosso Zé Gotinha, mesmo com todos os contratempos e desafios, pôde mostrar mais uma vez a potência do Sistema Único de Saúde deste país.

Se, por um lado, o mundo inteiro busca aumentar cada vez mais o número de vacinados e incentivar aqueles que ainda não o fizeram, aqui, no Brasil, ainda enfrentamos uma mazela resistente, destruidora e, infelizmente, comum em nossa história: a ignorância e a "queda de braço" por poder às custas dos direitos mínimos das brasileiras e brasileiros.

A última "novidade" da Secretaria Especial da Cultura, pasta subordinada ao Ministério do Turismo  ao menos até o fechamento deste artigo —, foi a publicação da Portaria nº 44/2021, que veta a exigência de comprovação de vacinação contra a Covid-19 para participação em projetos/eventos culturais fomentados via Lei Rouanet.

A norma, que possui apenas quatro artigos, parece ser mais um fruto da "guerra fria" entre o governo federal e determinados governos municipais e estaduais, que estabeleceram normas locais de restrição de acesso a eventos e lugares em geral para aqueles que não tenham tomado a vacina contra a Covid-19.

O estado do Ceará, por exemplo, determinou por meio do Decreto nº 34.399/2021 a obrigatoriedade de apresentação do denominado passaporte sanitário, comprovando a realização do esquema vacinal completo, para entrada em bares, restaurantes e eventos em geral. A norma prevê, inclusive, multa e interdição do estabelecimento em caso de descumprimento da exigência.

Assim como no Ceará, diversas outras localidades estão exigindo a comprovação da vacinação como meio de viabilizar o retorno das atividades culturais de forma presencial, permitindo não só o retorno do acesso aos bens culturais com responsabilidade e segurança, como também a possibilidade de a roda da economia criativa voltar a girar.

Em tempos de crise econômica, toda uma cadeia produtiva, com esse retorno, poderá garantir a sua subsistência. Em tempos sombrios de incerteza, a população poderá voltar a se encontrar presencialmente com a cultura e com a arte; um alento para a saúde mental sem comprometimento da saúde física. Bom para todos, não?

Bem, a Portaria nº 44 entende que não, baseada em argumentos de uma suposta liberdade de se vacinar ou não, e vedação a um suposto "tratamento discriminatório".

É até difícil numerar as ilegalidades e/ou inconstitucionalidade presentes na referida portaria: 1) falta de competência para legislar sobre medidas sanitárias; 2) tratamento discriminatório entre brasileiros a depender dos estados e municípios de residência; 3) restrição do acesso ao fomento e, por conseguinte, comprometimento da subsistência da cadeia produtiva cultural e, o que é ainda mais grave, restrição de acesso aos direitos culturais, todos estes considerados fundamentais pela Constituição Federal.

Dentro da extensa lista de irregularidades, talvez, um dos principais questionamentos que, como sociedade representada, estamos nos fazendo (ou deveríamos estar) diante dessa inusitada, mas, infelizmente, nada surpreendente "novidade" é: afinal, qual é a verdadeira motivação dessa medida?

Liberdade, em um conceito raso, é poder ir até onde vai o direito do outro (e é certo que não estar vacinado afeta diretamente o direito do outro de se ver livre dessa doença terrível). Já a igualdade, usando um conceito aristotélico, consistiria em tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais, na medida de sua desigualdade. Como esses dois princípios básicos de direitos humanos podem fundamentar uma norma que vai contramão da luta mundial contra a pandemia que  ainda  assola a humanidade?

A opção dada pelo governo federal para os projetos culturais situados em estados e municípios que exijam a comprovação da vacinação é risível: transformá-lo em virtual. Ora, quem vive a produção cultural sabe muito bem o quanto já é difícil conseguir incentivadores via Lei Rouanet, imagine a dificuldade que é conseguir esse apoio para projetos virtuais. Sem mencionar o fato inegável de que o acesso virtual em nosso país ainda não é nada democrático, e o clamor generalizado de voltarmos ao contato físico uns com os outros e com a arte em todas as suas manifestações.

Nessa batalha política minimamente antiética, quem sofre, ao final das contas — e como sempre —, são as pessoas que se veem, mais uma vez, prejudicadas no acesso ao mais importante instrumento público de fomento à cultura do país e aos direitos culturais de forma geral.      

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