Direitos Fundamentais

O direito humano e fundamental de acesso à internet

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12 de novembro de 2021, 8h00

Ainda que os debates sobre o reconhecimento do direito de acesso à internet não sejam mais novidade, há de se notar que os reveses enfrentados ao longo da pandemia da Covid-19 lançaram novos holofotes sobre a questão e evidenciaram novos desafios e mesmo caminhos a serem trilhados. As dificuldades enfrentadas no mundo todo, em maior ou menor medida, especialmente (mas não só) no campo do acesso ao ensino, da proteção e promoção da saúde, no mundo do trabalho, colocaram o tema do acesso a uma internet de qualidade, segura e estável, num novo patamar em termos de relevância e urgência.

No concernente à regulação da matéria na esfera internacional, já são cinco os documentos elaborados no âmbito do sistema ONU sobre o direito de acesso à internet [1], nos quais é apontada a relevância da conectividade à internet para a promoção de direitos humanos e fundamentais já reconhecidos, como é o caso das liberdades de expressão e de informação, bem como do direito de acesso à informação.

Entre tais documentos, destaca-se a versão final da General Conference 38 C/53, realizada pela Unesco, em 2015, no bojo da qual se apoiou, em termos gerais, a universalização da internet. Da mesma forma, devem ser referidos os relatórios das relatorias especiais para a Liberdade de Expressão da Assembleia Geral da ONU, de 2011, em nível global, e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, de 2013, em nível regional, nos quais se defendeu a necessidade de manter-se a internet aberta, sem obstáculos tecnológicos, a fim de proteger e promover a liberdade de expressão e o livre acesso à informação dos usuários da rede.

Mais recentemente, agora lançando o olhar sobre o que se passa em outras ordens jurídicas nacionais, chamou a atenção em todo mundo importante decisão da Suprema Corte da Índia, que, em janeiro de 2020, no julgamento do caso Anuradha Bhasin v. Índia, conferiu proteção constitucional ao uso da internet no país, a fim de viabilizar a efetividade de direitos fundamentais online, especialmente a liberdade de expressão. No caso da Índia — o que foi também objeto de referência na decisão — os problemas relacionados às dificuldades com o acesso à internet tem sido frequentes e agudos, tendo em vista os frequentes "apagões" na internet, por sua vez decorrentes do vasto número de usuários da rede no país, que atinge 624 milhões de pessoas, equivalendo a 45% da população, estimada em 1,39 bilhões, tudo de acordo com pesquisa publicada em janeiro deste ano pela HootSuite, em parceria com o We Are Social [2].

A decisão da Suprema Corte indiana definiu que, em caso de suspensão do serviço de internet, tendo em vista que tal medida implica a restrição de direitos fundamentais, deve ser seguido um procedimento específico: além de a suspensão ser temporária e aplicada tão-somente em circunstâncias excepcionais, ela deve ser notificada com razoável antecedência, de modo a permitir a sua discussão perante os tribunais. Todavia, apesar do avanços protagonizados pela decisão da Suprema Corte, as suspensões do acesso à internet na Índia seguem ocorrendo com frequência, evidenciando as dificuldades enfrentadas para o cumprimento e implementação das decisões da Suprema Corte no contexto indiano, conforme Tanmay Singh, Anandita Mishra e Krishnesh Bapat sublinham em coluna publicada no Verfassungsblog no último dia 26 [3]. Levando em conta os entraves para implementação da decisão, em dezembro de 2020 foi submetido um novo pedido para o seu cumprimento perante a Suprema Corte indiana, que, por ora, ainda não foi analisado [4]. Vale referir que as suspensões afetam os usuários de internet móvel, que correspondem principalmente aos usuários de baixa renda, os quais, por sua vez, não possuem condições financeiras para arcar com os serviços de internet banda larga.

No caso do Brasil, sabe-se que os problemas e desafios relacionados ao acesso à internet não têm sido de baixa monta, tendo sido agudizados nos últimos anos, em especial, assim como em outros lugares, no contexto da pandemia da Covid-19.

Apenas para ilustrar com alguns dados o que se passa no Brasil, estima-se existirem 160 milhões de usuários da internet, que correspondem a 75% da população, estimada em 213,3 milhões, percentual superior ao da Índia, igualmente de acordo com pesquisa publicada em janeiro pela HootSuite em parceria com o We Are Social.

Na perspectiva do Direito, chama a atenção que no Brasil já foram propostas quatro emendas à Constituição, com o intuito de incluir um direito de acesso à internet no rol de direitos fundamentais previsto na Constituição Federal de 1988 (CF). A primeira, PEC nº 6/2011, já foi arquivada e pretendia inserir o direito de acesso à internet entre os direitos sociais previstos no artigo 6º, CF. A segunda, de iniciativa da Câmara dos Deputados, desarquivada em 2019 e em tramitação no Congresso Nacional, a PEC nº 185/2015, busca "acrescentar o inciso LXXIX ao artigo 5º da Constituição Federal, para assegurar a todos o acesso universal a Internet entre os direitos fundamentais do cidadão". A terceira, PEC nº 8/2020, de iniciativa do Senado Federal, foi proposta em março de 2020, também tem o condão de inserir o direito de acesso à internet no rol previsto no artigo 5º. A quarta, PEC nº 35/2020, também originada no Senado Federal, por sua vez, visa a alterar os artigos 5º, 6º e 215 da CF88, a fim de inserir o direito de acesso à internet no rol de direitos sociais, assim como o dever de assegurar acesso à internet a todos os residentes no país, tendo sido encaminhada ao plenário do Senado ainda em 2020.

Na esfera infraconstitucional, registram-se os avanços já protagonizados pelo Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) que reconhece, de modo expresso, o direito de acesso à internet a todos dentre os objetivos do uso da internet no Brasil (artigo 4º, inciso I, do Marco Civil da Internet).

No que diz com a atuação do Poder Judiciário nessa matéria, até o presente momento não houve decisão Supremo Tribunal Federal quanto ao reconhecimento de um direito fundamental de acesso à internet no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, podendo ser extraídos apenas posicionamentos esparsos de ministros em julgamentos já realizados sobre a relevância democrática dos direitos comunicativos, sobretudo a liberdade de expressão e de informação.

Ainda nesse contexto, vale mencionar também apesar de mais diretamente associada à repartição constitucional de competências dos entes federativos , decisão proferida pelo plenário da Suprema Corte brasileira, que, por maioria, julgou pela inconstitucionalidade formal de lei cearense que determinava a vedação de bloqueio de acesso à internet, quando esgotada a franquia de dados, por invadir a competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações (ADI 6089, relator ministro Marco Aurélio, relator para o acórdão ministro Dias Toffoli, j. 8/2/2021).

Embora não se trate de casos em que esteja em causa um direito geral de acesso à internet, não se poderia deixar de referir aqui, no que diz com a esfera jurisdicional, a ADPF 403, decisão da presidência ministro Ricardo Lewandowski, j. 19/7/2016, em sede de decisão monocrática, foi concedida liminar reestabelecendo o serviço do WhatsApp que havia sido suspenso no Brasil pela decisão do juiz da Vara Criminal de Lagarto (SE), que, apesar de não mencionar a relevância do acesso à internet em si, sustentou os indícios de violação ao direito fundamental da liberdade de expressão. Quanto à análise de mérito, em sessões plenárias realizadas em 27 e 28/05/2020, o relator ministro Edson Fachin votou no sentido de declarar a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto dos incisos II e III do artigo 7º, do Marco Civil da Internet, que foram utilizados como fundamento para a suspensão do aplicativo, a fim de que não sejam admitas quaisquer ordens judiciais no sentido de exigir acesso excepcional a mensagens que estejam protegidas mediante criptografia em contexto que justifique a suspensão dos serviços no país. Na mesma ocasião, a ministra Rosa Weber acompanhou o ministro relator, conferindo, a seu turno, interpretação conforme à Constituição a esses dispositivos, e o ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos. Da mesma forma, relembra-se aqui da existência da ADI 5527, relatora ministra Rosa Weber, que igualmente trata da legitimidade constitucional do bloqueio do WhatsApp, em que não houve decisão liminar, mas que já teve seu julgamento de mérito iniciado juntamente com a ADPF 403.

De todo modo, mirando-se aqui os fatores que a pandemia agregou à questão, a conectividade e o acesso a uma internet estável, segura e de qualidade, tornou-se uma necessidade cada vez mais premente, impactando um conjunto significativo de outros direitos humanos e fundamentais, bastando aqui, em caráter ilustrativo, referir o direito à proteção da saúde (e o acesso aos bens e serviços nessa seara), incluindo o incremento da telemedicina, assim como o direito à educação, especialmente no respeitante à continuidade do ensino nas escolas de ensino fundamental e médio, e no ensino superior, o que se revelou de forma particularmente aguda na esfera do ensino público.

Tanto a exclusão total do acesso à internet por ainda cerca de 25% da população brasileira quanto os inúmeros problemas registrados em termos de qualidade do acesso, dificultando e mesmo impedindo a fruição de uma grande gama de direitos, demonstram o quanto também nessa esfera o Brasil apenas tem experimentado aumentar os catastróficos níveis de desigualdade social e econômica, com tudo o que implica em termos de impactos sobre o desenvolvimento humano e econômico.

Isso tudo se dá em um cenário marcado pela falta de isonomia no que diz respeito a oferta dos serviços de acesso à internet, correndo-se concreto risco de agravamento do problema com o início da oferta e implantação da rede 5G nas capitais brasileiras até julho de 2022. Se, por um lado, abrem-se inúmeras possibilidades, por outro, saltam aos olhos casos como o do município gaúcho de Herveiras, que tem a pior cobertura de rede de telefonia móvel em zonas urbanas do Brasil, cujos habitantes encontram obstáculos até para acessar serviços públicos básicos, como ambulância hospitalar e serviço policial. Tais situações, dada a falta de universalização e condições de acesso igualitário também quanto aos serviços da rede 5G no Brasil, pelo menos em se mantendo o prognóstico de sua instalação e oferta apenas nos grandes centros urbanos, apenas tendem a se agravar.

À vista das sumárias considerações acima tecidas, bem como tendo em conta a ausência, por ora, de uma política pública (de Estado, não somente de governo) ampla e efetiva no sentido de assegurar um acesso universal e igualitário a uma internet segura e de qualidade, a necessidade de se retomar e alavancar o debate sobre o reconhecimento de um correspondente direito fundamental torna-se cada vez mais premente [5].

O reconhecimento de um direito fundamental de acesso à internet, por sua vez, embora idealmente devesse ocorrer mediante sua inclusão no texto da CF, por força de emenda constitucional, também poderá dar-se na condição de direito implicitamente positivado, tal como (por algum tempo) ocorreu com o direito fundamental à proteção de dados pessoais (ADI 6387 MC-Ref, relatora ministra Rosa Weber, j. 7/5/2020), bastando aqui um pronunciamento do STF nesse sentido

Aliás, nada impede que, como se deu no caso da Alemanha [6], o direito de acesso à internet seja reconduzido ao direito a um mínimo existencial [7], ou seja, de um direito a um conjunto de prestações materiais que assegurem a cada pessoa a possibilidade real de uma vida condigna. Oxalá possamos, em breve, ver atendida essa reivindicação justa e indispensável para uma, pelo menos, plenamente satisfatória efetivação dos direitos humanos e fundamentais e das exigências de um Estado democrático, social e ecológico de Direito.

 


[1] O primeiro documento, de 2011, consiste no relatório do relator especial sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Frank La Rue, no âmbito da Assembleia Geral da ONU (Resolução A/HRC/17/27). Em 2012 e 2016, respectivamente, foram aprovadas duas resoluções pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, Resolução A/HRC/20/L.1331 e Resolução A/HRC/32/L.20. Em 2013, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução A/RES/68/167, abordou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade na era digital. Em 2015, a Unesco, por meio da General Conference 38 C/53, apoiou a universalização da internet.

[2] DATAREPORTAL. Digital 2021. Global Overview Report — India. WeAreSocial; Hootsuite, janeiro de 2021. Disponível em: https://datareportal.com/reports/digital-2021-india. Acesso em: 06 nov. 2021.

[3] SINGH, Tanmay; MISHRA, Anandita; BAPAT, Krishnesh. Why don’t they just stop stopping the internet? Verfassungsblog — On Matters Constitutional, 26 out. 2021. Disponível em: https://dx.doi.org/10.17176/20211026-183052-0. Acesso em 30 out. 2021.

[4] Idem.

[5] Em artigo publicado pela Revista Eletrônica de Direito Público portuguesa, a segunda autora se posicionou, pelo reconhecimento da fundamentalidade subordinada do direito de acesso à internet, no sentido de que a fundamentalidade material do referido direito decorre da sua conexão com direitos fundamentais já reconhecidos, sobretudo os direitos comunicativos (SIQUEIRA, Andressa de Bittencourt. A fundamentalidade subordinada do direito de acesso à internet no cenário jurídico-constitucional brasileiro. Revista Eletrónica de Direito Público, v. 7, nº 2, p. 240-263, 2020).

[6] BVerfG. 1 BvL 1/09, Rn. 1-220, Erster Senat, 09.02.2010. Disponível em: http://www.bverfg.de/e/ls20100209_1bvl000109.html. Acesso em: 07 nov. 2021.

[7] Para uma análise mais detida nessa perspectiva, sobretudo quanto aos direitos sociais, referimos HARTMANN, Ivar. A right to free internet? On internet access and social rights. Journal of High Technology Law, v. 13, nº 2, 2013.

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