Anonimato, denunciação caluniosa e devido processo legal
10 de novembro de 2021, 7h12
O anonimato não é — nem pode ser — manto para a impunidade do denuncismo irresponsável. Aqueles que querem e defendem a justa aplicação da lei não podem ter medo ou vergonha de mostrar sua face. A luta pela legalidade e pelo aprimoramento moral das instituições traduz circunstância natural do republicanismo sério. Todavia, o uso abusivo ou desleal da prerrogativa cidadã de denunciar malfeitos ou ilícitos pode — e deve — gerar consequências contra o autor da denúncia desmedida. Aliás, se a má-fé foi refinada no anonimato, poderá caracterizar, inclusive, qualificadora do tipo: o artigo 339 do Código Penal define o crime de "denunciação caluniosa", fixando aumento de um sexto na pena "se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto" (§1°). Dessa forma, oportuno e cabível a análise do limite constitucional da denúncia anônima.
Pois bem. Na República, a atuação do Estado — quando atingir interesses e direitos individuais ou coletivos — deve ocorrer sob a luz do sol, com transparência e frontalidade, despida de máscaras, fugas ou artifícios ocasionais. Objetivamente, a democracia institucionalizada se faz com rostos livres e vozes públicas, pois só nas ditaduras sem lei o cidadão pode ser vítima ou refém de ataques despidos de digitais autorais e elementos factíveis mínimos. Em bom tempo, a CF/88 disse, sem meias palavras, que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (artigo 5°, IV).
Como se vê, o regime das liberdades constitucionais garante a todo e qualquer cidadão o direito de criticar, de cobrar providências, de requerer informações e denunciar quem quer que seja, mas fixa a ética da responsabilidade como elemento intrínseco ao sistema de poder, coibindo devassas, perseguições e a própria usurpação das instituições da Justiça em denúncias odiosas contra inocentes.
É cediço, todavia, que o Supremo Tribunal admite, excepcionalmente, "com prudência e discrição" (RHC nº 116000 AgR/GO, relator ministro Celso de Mello, j. 25/3/2014), a chamada "denúncia anônima", em especial nos casos em que constatado risco à vida ou integridade física do denunciante. Fora tais situações excepcionais — a serem cabalmente motivadas —, o devido processo legal deve se pautar pela absoluta publicidade de autoria, possibilitando que aqueles que sejam injustamente alvo de expedientes abusivos possam buscar os reparos e sanções cabíveis.
Em outras palavras, a invocação do anonimato, quando inexistente qualquer risco efetivo ou potencial à vida ou integridade física do denunciante, bem como para o resultado útil e motivado do devido processo legal, configura flagrante manobra inconstitucional, a tisnar a regularidade jurídica do procedimento desde a sua nascente. No julgamento do HC n° 84.827/TO (j. 7/8/2007), a Suprema Corte debateu os limites constitucionais da "denúncia anônima", vindo a proferir decisão paradigmática:
"ANONIMATO — NOTÍCIA DE PRÁTICA CRIMINOSA — PERSECUÇÃO CRIMINAL — IMPROPRIEDADE.
Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente".
Por sua vez, afirmou o ministro Cezar Peluso:
"(…) Estou absoluto convencido de que a proibição constitucional do anonimato significa que, como meio de expressão do pensamento no mundo jurídico, ela é inválida e ineficaz, qualquer que seja a modalidade usada e qualquer que seja o tipo de pensamento manifestado ou declarado. Portanto, isso abrange não apenas as manifestações de opinião, mas também as declarações de sentimentos, de ciência e de vontade. A razão, ao que me parece, não está apenas no aspecto censurável, do ponto de vista ético, de que se reveste o anonimato, mas é a circunstância de que o anonimato torna irresponsável, do ponto de vista penal e do ponto de vista civil, aquele que formulou eventualmente acusação".
Avocando a palavra, o ministro Eros Grau foi categórico ao afirmar que "a denúncia anônima é uma indignidade. Evidentemente que a repudiamos". Ainda, em outra oportunidade judicante, foi a vez do ministro Marco Aurélio pontificar (AP 530/MS, 1ª Turma, STF, j. 09.09.2014):
"Julgando Habeas Corpus, e, pelo que me lembro, a ordem foi concedida, disse, certa feita, na Turma, que notícia anônima merece a lata do lixo.
O que houve? Uma notícia anônima, muito embora acompanhada de certos documentos, imputando-se prática criminosa a cidadãos, apresentada ao Ministério Público Federal e, a partir dela, chegou-se à persecução criminal, ao oferecimento da denúncia e, portanto, à ação penal que estamos agora a julgar.
A notícia anônima de prática criminosa encerra via de mão única e coloca aquele a quem é imputado o ato numa situação em que, mesmo diante da improcedência flagrante, não terá o instrumental próprio para cobrar a responsabilidade de quem assim procedeu, de quem veiculou a notícia. Refiro-me à denunciação caluniosa, crime previsto no Código Penal.
Não posso concluir ser válida a notícia anônima quando a pessoa autora se acoberta, justamente, da possibilidade de vir a ser responsabilizada por ato que, posteriormente, se mostre inconsequente".
Por assim ser, a invocação indevida ou imotivada do anonimato, para fins de impulso de investigação administrativa ou judicial, fere frontalmente a garantia do devido processo legal (artigo 5°, LIV, CF). Sem cortinas, a processualidade estatal não pode servir para fins antiéticos nem ser conduzido por meios inidôneos. Sobre o ponto, é assente na jurisprudência do Supremo que "o processo como instrumento técnico e ético é informado pelo princípio da boa-fé, que impõe às partes atuarem com lealdade processual em relação ao ex adversus e ao juízo" (ACO 312 ED/BA, Pleno do STF, j. 7.10.2015).
Especificamente, ao analisar o tema da restrição de direitos fundamentais à luz da garantia do due process of law, a Corte Constitucional fincou as seguintes balizas hermenêuticas:
"O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal – que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos — exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, artigo 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos".
Resta claro, portanto, que a clausura do anonimato somente será constitucional em circunstâncias excepcionalíssimas, escoradas em firme e necessária motivação jurídica a, fundamentadamente, relativizar a regra da publicidade processual. Todavia, o quarto escuro do anonimato deve possibilitar a "identificação de autoria", viabilizando, se for o caso, a busca de reparação — cível ou criminal — pelo eventual manejo processual de má-fé. Caso as ferramentas estatais registrem o anonimato sem possibilidade de identificação de autoria, tal ferramental público haverá de ser cogentemente aperfeiçoado por tecnologias competentes a resguardar o cerne normativo das garantias constitucionais fundamentais.
Numa sentença, inexiste devido processo legal divorciado da ética da responsabilidade. Não raro, quem recorre ao anonimato dispensa a Justiça. E, quando a Justiça cede, as balizas morais da Constituição vergam.
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