Opinião

A 'execução invertida' no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública

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25 de maio de 2021, 13h35

O Supremo Tribunal Federal, em sessão da ultima quinta-feira (20/5), ao julgar improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 219, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, entendeu, à unanimidade, que a denominada "execução invertida" atende aos princípios regentes do procedimento especial dos juizados especiais no âmbito das causas que envolvam a Fazenda Pública (Leis nº 10.259/2001 e 12.153/2009).

A ADPF nº 219, proposta pela União, questionou a juridicidade de decisões provenientes dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Rio de Janeiro que impunham à Fazenda Pública o dever de indicação prévia do crédito exequendo, ou seja, independentemente da apresentação de memória contábil inicial pelo jurisdicionado credor. O STF fundamentou o entendimento, entre outros argumentos, à luz dos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência administrativa e da inafastabilidade da tutela jurisdicional, em especial sob a óptica do acesso à Justiça. Portanto, o Supremo Tribunal Federal considerou que a denominada "execução invertida" é compatível com o procedimento especial dos Juizados Especiais de Fazenda Pública.

Interessante observar que há aproximadamente cinco anos, ao examinar o Tema de Repercussão Geral nº 597, o próprio Supremo Tribunal Federal considerou ser de índole infraconstitucional, consequentemente rejeitando a respectiva afetação, questão jurídica análoga (possibilidade de autarquia previdenciária ser obrigada à apresentação compulsória dos cálculos creditícios) [1].

O termo "execução invertida", não obstante a pertinente e acertada crítica terminológica na doutrina processual brasileira [2], refere-se a espécie de comparecimento espontâneo do devedor (executado) com o propósito de adimplemento. Trata-se de expressão genérica ainda utilizada pela jurisprudência para designar a hipótese de comparecimento espontâneo, em especial da Fazenda Pública, após o trânsito em julgado do título executivo judicial, mas antes da instauração da fase processual satisfativa pelo próprio credor.

Apesar de o julgamento do STF reportar-se às particularidades do procedimento especial dos juizados especiais, não há incompatibilidade jurídica para a aplicação da técnica no âmbito do procedimento comum, disciplinado pelo Código de Processo Civil (CPC), o que prestigiaria, em muitos casos concretos, a efetividade da tutela jurisdicional.

Os órgãos internos contábeis integrantes das estruturas que compõem a advocacia pública dos entes federativos geralmente detêm expertise viabilizadora dessa prática, em situação técnica mais favorável àquela experimentada por uma grande massa de jurisdicionados credores, sendo de grande utilidade, portanto, para a efetividade do processo [3].

Inexiste vedação legal para que, também no procedimento comum, a Fazenda Pública devedora, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, possa comparecer espontaneamente em juízo para apresentar a memória contábil discriminada dos valores que entender devidos, iniciando-se, no módulo executivo, os atos destinados à realização material do Direito, com o subsequente precatório ou requisição de pequeno valor (RPV), a depender do montante.

Trata-se de constatação que pode ser haurida, inclusive, à luz do artigo 526 do CPC, que dispõe sobre a possibilidade de o devedor, "antes de ser intimado para o cumprimento da sentença, comparecer em juízo e oferecer em pagamento o valor que entender devido, apresentando memória discriminada do cálculo". Nesse caso, o credor deve ser ouvido no prazo de cinco dias, hipótese em que poderá impugnar o valor depositado e proceder ao levantamento da parcela incontroversa da obrigação (§1º); ausente oposição expressa do credor, "o juiz declarará satisfeita a obrigação e extinguirá o processo" (§3º). Se o juiz decidir pela insuficiência do depósito efetuado pelo devedor, "incidirão multa de dez por cento e honorários advocatícios, também fixados em dez por cento", com o prosseguimento dos atos executivos (§2º).

A decisão que conclua pela insuficiência do depósito deve constituir também, sob expresso esclarecimento judicial prévio, o termo inicial para que o devedor ofereça, em 15 dias, impugnação ao cumprimento de sentença relativa ao crédito controvertido nos autos (artigos 525 e 535, caput, do CPC), a fim de possibilitar superveniente decisão, por exemplo, acerca de eventual excesso de execução. Do mesmo modo, o juiz apenas poderá declarar a suficiência do depósito se o credor concordar expressa ou tacitamente com o valor depositado pelo devedor (artigo 526, §3º), pois, do contrário, cercearia o direito das partes de controverter sobre o montante executivo na via processual adequada.

Em síntese, o artigo 526 do CPC disciplina hipótese de adimplemento espontâneo do crédito, por intermédio de depósito judicial de quantia incontroversa, que não impede o prosseguimento do processo, em fase de cumprimento de sentença, em relação aos valores controvertidos nos autos, o que corrobora a impropriedade da consagrada expressão "execução invertida".

No caso da Fazenda Pública devedora, apesar das especificidades relativas aos regimes de pagamento de seus passivos judiciais (precatório ou requisição de pequeno valor, a depender do valor), inexiste óbice jurídico para que a devedora fazendária, ciente do trânsito em julgado da sentença condenatória pecuniária, apresente em juízo "a memória discriminada do cálculo" do valor que entende devido. Aliás, essa prática de comparecimento espontâneo é comumente verificada no âmbito de demandas previdenciárias, especialmente aquelas veiculadas contra o INSS por segurados do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) [4].

Apesar de casuisticamente relacionada à inexigibilidade de precatório para a satisfação dos créditos de pequeno valor (incidência prática dos princípios da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, inerentes aos juizados especiais), a possibilidade de comparecimento espontâneo da Fazenda Pública devedora não deve depender ou associar-se à respectiva modalidade de pagamento do débito fazendário (precatório ou RPV).

O procedimento estabelecido no artigo 526 do CPC e o cumprimento de sentença que reconheça obrigação pecuniária em desfavor da Fazenda Pública (artigos 534 e 535) são perfeitamente compatíveis. A medida está afinada, inclusive, com os princípios constitucionais da eficiência e da moralidade, além de prestigiar a garantia constitucional da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII). 

Para essa aplicação subsidiária e analógica, basta compreender a previsão normativa (artigo 526 do CPC) do seguinte modo: a Fazenda Pública, condenada por força de sentença transitada em julgado, pode, antes de intimada para o cumprimento da sentença, comparecer em juízo e apresentar memória discriminada de cálculo. Em seguida, deve ser ouvido o credor em cinco dias, momento em que poderá anuir ou não com o valor indicado. Se houver anuência tácita ou expressa, o juiz determinará a expedição do precatório ou da RPV para a satisfação definitiva do crédito e, após o pagamento e o levantamento pelo credor do valor requisitado, extinguirá o processo. Se o credor se opuser ao valor indicado espontaneamente pela Fazenda Pública, o que deverá fazer na forma do artigo 534 do CPC (mediante petição acompanhada de memória contábil discriminada e atualizada), o juiz expedirá o ofício requisitório de pagamento para a parcela incontroversa (artigo 535, §4º) e intimará a devedora para oferecer impugnação ao cumprimento de sentença, no prazo de 30 dias, relativa ao montante remanescente controvertido nos autos [5].

O emprego dessa técnica, à luz da referida interpretação analógica do artigo 526 do CPC, é de grande utilidade para a efetividade do processo em seu módulo executivo; e, na maioria dos casos, quando a discriminação contábil fazendária não estiver expressivamente aquém da pretensão do credor (possibilitando sua anuência), importa em medida de manifesta economia processual e de prestígio à efetividade da tutela jurisdicional.

 


[1] Tema de Repercussão Geral nº 597: "imposição ao INSS, nos processos em que figure como parte ré, do ônus de apresentar cálculos de liquidação do seu próprio débito". Resultado do julgamento: "não há repercussão geral (questão infraconstitucional)" — Supremo Tribunal Federal, Pleno, Recurso Extraordinário nº 729.884/DF, Rel. Minº Dias Toffoli. Data de julgamento: 23/6/2016. Data de publicação: 1/2/2017.

[2] A impropriedade da expressão "execução invertida" dá-se porque "não é uma tutela executiva a que o artigo 570 do Código de Processo Civil [de 1973] oferece ao obrigado ao legitimá-lo a tomar a iniciativa de um processo em que o credor é chamado a receber o que lhe é devido, assumindo ele, devedor, ‘posição idêntica à do exequente’. […] nem seria inteligente sustentar que a lei possibilitasse ao devedor a obtenção de uma tutela executiva, recebendo bens por conta de seu débito" — DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. IV. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 54-5.

[3] A propósito, "são frequentes os casos em que o credor não detém os conhecimentos necessários para a realização da conta. Autoriza-se, sob o manto da hipossuficiência, frequente em ações previdenciárias, que o serviço oficial realize o cálculo, sem nenhuma ofensa legal. Não se deve exigir do desassistido materialmente a dispendiosa contratação de especialista. A previsão constitucional da assistência judiciária permite a exegese" — PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da Fazenda Pública em juízo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 447. 

[4] Trata-se de postura já descrita como "boa prática", no âmbito da Advocacia Pública federal, tendente à efetividade e à celeridade processuais. Nesse sentido, cf. FRACALOSSI, William; ALMEIDA, Francisco Anderson Ribeiro de; BERNARDO, Leandro Ferreira; LOPES, Edilson [Orgs.]. Guia de boas práticas: eficiência e celeridade processual na competência delegada previdenciária e nas ações acidentárias. Maringá: Procuradoria Seccional Federal de Maringá, 2013.

[5] Assim também nos manifestamos, cf. MONTEIRO NETO, João Pereira. Execução contra a Fazenda Pública e sua efetividade no Código de Processo Civil. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 169-73.

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