Os recursos especiais repetitivos se inserem no microssistema de resolução de casos repetitivos constante do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), cujo objetivo é "uniformizar e dinamizar processamento de matérias consideradas semelhantes" [1], questões de fato e/ou de direito em comum [2].
O advento de técnicas de padronização decisória e mecanismos processuais e gerenciais de julgamento de demandas repetitivas decorreu do fato de que "o processo civil tradicional, de bases individualistas, cujo núcleo central é a lide, não se demonstrou adequado para tutelar tais situações" [3]. Antes do CPC/2015, não se tinha uma visão global do sistema: havia, apenas, algumas reformas no Código de Processo Civil de 1973 e a edição de leis esparsas para lidar com o fenômeno.
Entre as mencionadas reformas, podemos identificar a operada pela Lei nº 11.672, de 8 de maio de 2008, instituidora do sistema de julgamento de recursos especiais repetitivos [4], que se deu na tendência, à época, de legiferar com o fito de "acelerar ou aglutinar processos individuais repetitivos, com especial ênfase naqueles já pendentes em grau de recurso" [5], assim como valorizar sobremaneira a jurisprudência da corte superior, enfatizando sua função constitucional de ser o órgão a dar a palavra final a respeito de matéria infraconstitucional [6].
A técnica então instituída ficou conhecida como "julgamento por amostragem", em que se selecionava uma ou mais "causas-piloto" ou "processos teste" para o desenvolvimento da tese, o que era visto com determinado criticismo da doutrina [7]: a ampliação dos poderes do tribunal de origem para escolher o que seria apreciado pelo tribunal superior poderia se qualificar como uma restrição ao acesso à Justiça, bem como representar a controvérsia de forma deficitária.
Prevalece no CPC/2015 a competência do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar os recursos especiais repetitivos e as reformas atinentes aos processos repetitivos e à busca de eficiência na jurisdição [8], confirmando as tendências sobreditas de aglutinação, em especial com a atribuição de eficácia normativa para precedentes judiciais e a orientação aos tribunais para uniformizar sua jurisprudência, além de mantê-la íntegra e estável [9]. Tendo isso em vista, os mecanismos de julgamento de recursos (especiais e extraordinários) foram aperfeiçoados.
Ainda na matéria, algumas sofisticações procedimentais foram implementadas, como: 1) a atribuição de maior influência e autonomia ao tribunal superior para escolher os recursos que vá julgar; 2) a seleção de recursos com argumentação mais estruturada e fundamentada; 3) o estabelecimento de ao menos dois recursos como representativos da controvérsia; 4) a ampliação dos efeitos da decisão de afetação; 5) uma maior valorização da fundamentação da decisão; e um 6) exercício mais amplo do contraditório.
É certo que o Código de 2015 realizou o intento de lapidar o que se tinha quanto à repetitividade. No entanto, voltando os olhos à realidade, observamos que, por vezes, o silêncio da lei federal — e inclusive do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça — em determinadas situações — pode tornar alguns momentos procedimentais lacunosos ou anuviados, fazendo com que haja inseguranças e uma liberdade de atuação da corte que deve ser observada com cautela.
No presente artigo, serão expostos quatro (entre diversos a serem considerados) aspectos a respeito dos recursos especiais repetitivos que não foram tratados pelo legislador, ou então que o foram, ora de forma aberta, ora indefinida, de modo a gerar consequências dignas de nota.
Primeiramente, trataremos do prequestionamento. Em matéria de recurso especial (sem ser repetitivo), o STJ vem admitindo recursos com prequestionamento implícito, sem necessidade de menção expressa dos dispositivos levados à discussão [10].
Note-se que essa ideia não sinonimiza com o que se entendia por "efeito devolutivo amplo", surgido sob a égide do Código de 1973, em que "a devolutividade do recurso especial, em seu nível vertical, engloba o efeito translativo, consistente na possibilidade, atribuída ao órgão julgador, de conhecer de ofício as questões de ordem pública" [11], porquanto o Superior Tribunal de Justiça deve "julgar a causa, aplicando o direito à espécie".
Mais preocupante ainda é a concepção, externada pela ministra Nancy Andrighi, de que se pode "mitigar o requisito do prequestionamento", uma vez que o Superior Tribunal de Justiça — cuja função não pode ser limitada por não se enquadrar em um modelo restritivo de prestação jurisdicional — poderia se valer de questões não apreciadas diretamente no feito ou sequer mencionadas no recurso especial [12].
Quando nos atemos ao teor do artigo 1.034 do CPC/2015, temos que o STJ, conhecendo do recurso interposto, deverá, no juízo de mérito, julgar a causa, aplicando o direito à espécie. Essa aplicação, contudo, não pode ficar ao alvedrio da corte, de forma ilimitada.
Em segundo lugar, quanto à escolha dos recursos representativos da controvérsia (RRCs), que conduzirão o processamento e julgamento das demandas repetitivas, há diversas questões não dirimidas. Não há, propriamente, uma transparência quanto à escolha destes recursos. Nesse processo, corre-se o risco da seleção de um recurso mal arrazoado, afetando todos aqueles envolvidos de forma menos imediata, que, por inúmeras razões de ordem jurídica, organizacional e econômica, não podem participar de forma ativa no julgamento do recurso.
Também não podemos nos olvidar que há, decerto, obstrução do acesso à justiça para alguns litigantes envolvidos no tema levado ao Superior Tribunal de Justiça — em especial os eventuais em detrimento dos habituais. Disso, é potencializado o risco de se ter a aplicação de entendimentos da corte superior sem a devida apreciação dos elementos fáticos da demanda e, portanto, sem dar uma resposta apropriadamente individualizada e, ao fim e ao cabo, avantajar aqueles que têm recursos suficientes para defender seus próprios interesses.
O terceiro ponto que é importante de se trazer à baila é a participação dos amici curiae, que, embora seja de inconteste relevância, tem de ser avaliada com maior profundidade. Isso porque a manifestação de tais figuras no processo não tem, como decorrência, a efetiva apreciação da argumentação trazida em sua manifestação.
Dado que a presença dos amici curiae no processo está atrelada ao princípio da cooperação, realizando uma dialética processual lastreada em constante diálogo e em abertura do processo decisório à sociedade [13], percebemos que a presença desse indivíduo não é uma mera intervenção de terceiro, que se dá por meio de interesse subjetivado, mas, sim, de objetivos institucionais e metaindividuais: "É um instituto de matiz democrático, uma vez que permite […] que terceiros penetrem no mundo fechado e subjetivo do processo para discutir objetivamente teses jurídicas que vão afetar toda a sociedade" [14].
O maior ou menor nível de enfrentamento dos argumentos trazidos pelos amici no provimento final revela o nível de diálogo ocorrido durante o procedimento e tangencia, ainda, a temática da adequada representatividade de interesses e da legitimidade da tese emanada do julgamento realizado pelo STJ. Ademais, ainda nos resta o seguinte questionamento: pode o amicus curiae recorrer da decisão que não enfrenta os argumentos que ele trouxera nos autos?
Da redação do artigo 138, §3º, do CPC, tem-se que o amicus "pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas". No entanto, esse terceiro fica de mãos atadas caso seja completamente ignorado pelo tribunal. Em recente julgado, no REsp 1.813.684, o STJ apresentou opiniões díspares acerca da possibilidade de o amicus curiae poder opor ou não embargos de declaração. Em voto divergente, o ministro Luis Felipe Salomão consignou que "[a]o deixar de conhecer os embargos, este colegiado estaria criando hipótese de não cabimento não prevista em lei" [15].
Por fim, o quarto ponto diz respeito à tese formulada. Não há qualquer garantia que a matéria veiculada em sede de recurso especial será o que adstringirá os limites da tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça. Ainda, é imprescindível ter em mente que, entre a chegada do recurso e a decisão final, há uma proposta de afetação, que deve (ou deveria) apresentar qual é a questão de direito levada à corte.
Exemplo disso é a tese da "taxatividade mitigada" (Tema 988), em que se observa uma nítida ampliação da "aplicação do direto" a ser feita pelo STJ, sem uma explicação para o gargalo entre as discussões trazidas pelos RRCs e a decisão de afetação, bem como entre esta e o voto no julgamento dos recursos selecionados como representativos da controvérsia. Primeiramente, nos recursos, cogitava-se da possibilidade de aplicação de interpretação extensiva aos incisos II e III do artigo 1.015 do CPC/2015 para que se pudesse reconhecer o cabimento de agravo de instrumento em face de decisões que versassem sobre competência. Na sede da proposta de afetação, o STJ entendeu que a tese deveria dizer acerca da possibilidade de aplicação de interpretação extensiva a quaisquer incisos do indigitado artigo. A tese obtida, porém, não levou em conta nem um ponto nem outro, trazendo um novo critério para a interposição de recursos contra interlocutórias [16].
O fio condutor dessa exposição leva em conta o procedimento estabelecido pela lei processual e pelo Regimento Interno do STJ (RISTJ). Há alguns flancos abertos pela ausência de regramento e que podem levar a atuação do STJ a ser demasiadamente desuniforme e, por conseguinte, tornar insegura a esfera do ambiente em que se litiga — especialmente em matéria de repetitivos, cujo procedimento deveria ser, ao menos, mais rígido e positivado do que se tem hoje.
Há questões concernentes aos recursos especiais repetitivos que não foram completamente dirimidas pelo novo diploma processual, sobre as quais devemo-nos atentar para estudar eventuais consequências nocivas da atuação do Superior Tribunal de Justiça, bem como para contribuir em propostas de lege ferenda nessa matéria que recentemente emergida e que vem se dinamizando de uma forma significativa.
[1] ASPERTI, Maria Cecília de Araujo. Litigiosidade repetitiva e a padronização decisória: entre o acesso à justiça e a eficiência do judiciário. Revista de Processo, São Paulo, v. 263, jan. 2017, pp. 233-255.
[2] ASPERTI, Maria Cecília de Araujo. Meios consensuais de resolução de disputas repetitivas: a conciliação, a mediação e os grandes litigantes do judiciário. São Paulo: Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, p. 45.
[3] TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivum, 2016, p. 27.
[4] As reformas alteraram o CPC/1973, incluindo os artigos 543-B e 543-C e determinando, através de suas redações, o regime processual nas instâncias superiores quando houvesse "multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito".
[5] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Brevíssimas reflexões sobre a evolução do tratamento da litigiosidade repetitiva no ordenamento brasileiro, do CPC/1973 ao CPC 2015. Revista de Processo, São Paulo, v. 41, n. 257, jul. 2016, pp. 269-281.
[6] MONTEIRO, Vitor José de Mello. Julgamento por amostragem do recurso especial (Lei n. 11.672/08). In: GIANNICO, Maurício; MONTEIRO, Vitor José de Mello Monteiro (coord.). As novas reformas do CPC e de outras normas processuais. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 403.
[7] BAHIA, Alexandre Melo Franco; HENRIQUES, Paula Valério. Recursos extraordinário e especial repetitivos no CPC/2015: uso e interpretação de acordo com o modelo constitucional de processo. Revista de Processo, São Paulo, v. 258, ago. 2016, pp. 205-223.
[8] Isto também se depreende da carta de apresentação constante do anteprojeto do CPC/2015: "Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere. Como vencer o volume de ações e recursos gerado por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país cujo ideário da nação abre as portas do judiciário para a cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito? Como desincumbir-se da prestação da justiça em um prazo razoável diante de um processo prenhe de solenidades e recursos?" (COMISSÃO DE JURISTAS RESPONSÁVEL PELA ELABORAÇÃO DO ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010, p. 8).
[9] TARTUCE, Fernanda; ASPERTI, Maria Cecília de Araujo. As técnicas de julgamento de casos repetitivos e a triagem de processos e recursos sob a perspectiva do acesso à justiça individual. Revista de Processo, São Paulo, v. 288, fev. 2019, pp. 275-299.
[10] "Há prequestionamento implícito quando a Corte de origem, mesmo sem a menção expressa ao dispositivo de lei federal tido por violado, manifesta-se, no acórdão impugnado, acerca da tese jurídica apontada pelo recorrente, situação verificada na hipótese." (AgInt no REsp nº 1.767.869/ES. Relator: Min. Gurgel De Faria, Primeira Turma, j. 18.05.2020, DJe 04.06.2020). No mesmo sentido: "O STJ possui compreensão de que se configura o prequestionamento implícito quando, a despeito da menção expressa aos dispositivos legais invocados, o Tribunal a quo emite juízo de valor acerca de questão jurídica deduzida no Recurso Especial." (REsp nº 1.839.672/SP. Relator: Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 12.11.2019, DJe 19.12.2019).
[11] REsp nº 869.534/SP. Relator: Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, j.: 27.11.2007, DJ 10/12/2007, p. 306.
[12] Comentários ao artigo 104. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. em e-book. São Paulo: Saraiva, 2018, s.p.
[13] DAMASCENO, Kleber Ricardo; CAMBI, Eduardo. Amicus curiae e o processo coletivo: uma proposta democrática. Revista de processo, São Paulo, v. 192, fev. 2011, pp. 13-45.
[14] MACIEL, Adhemar Ferreira. Amicus curiae: um instituto democrático. Revista de Processo, v. 106, abr./jun. 2002, pp. 281-284.
[15] REsp nº 1.813.684/SP, Relator: ministro Raul Araújo, Relator p/ Acórdão: ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. 02/10/2019, DJe 18/11/2019.
[16] "[…] Urgência que decorre da inutilidade futura do julgamento do recurso diferido da apelação" (Tema 988 do STJ).