Direto do Carf

De olhos bem fechados? A ADPF nº 647 e o Carf

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  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

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23 de junho de 2021, 8h01

Como já aqui noticiado, distribuída uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) com o objetivo de ver declarada a inconstitucionalidade da "sucessão de julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e de repetidos entendimentos exarados pelas Delegacias da Receita Federal (DRFs) que reconhecem a competência do auditor fiscal da Receita Federal para declarar ou supor a existência de vínculo de emprego, sem a prévia manifestação da Justiça do Trabalho".[1] Pontuado que "os artigos normativos usualmente citados são genéricos e indiretos, o que denuncia claramente o malabarismo hermenêutico para se criar esse poder exagerado do auditor fiscal" [2].

Spacca
Sem adentrar as questões processuais que obstariam o conhecimento da ADPF trazidos no voto da relatora, a ministra Carmen Lúcia, no julgamento iniciado no último dia 11 [3] — cujas razões foram acompanhadas pelo ministro Marco Aurélio, antes do pedido de vista formulado pelo ministro Gilmar Mendes —, a coluna desta semana pretende abordar o mérito da referida ação, apresentando como tem se dado a atuação das conselheiras e dos conselheiros do Carf quando o tema lhes é devolvido. Traçemos, antes de tudo, algumas premissas.

Recentemente, o Tribunal de Contas da União prolatou o Acórdão nº 336/2021, no qual consta a avaliação da eficiência do contencioso tributário administrativo, donde asseverado que, "no período de 2012 a 2019, em termos quantitativos, 47% das autuações tributárias objeto de litígio foram canceladas total ou parcialmente nas DRJ e 45%, no Carf". O achado é importante para fragilizar as teses — desprovidas fundamentos empíricos essenciais a sua formulação — no sentido de que a primeira e a segunda instâncias do contencioso administrativo federal serviriam apenas para replicar os achados das autoridades fiscalizadoras, falhando ainda em resguardar os princípios da ampla defesa e do contraditório.

Ao contrário do que possam tentar fazer parecer, em momento algum é chancelada pelo Carf a formalização de vínculo empregatício por auditor fiscal — tal reconhecimento implicaria em expedir ordem para anotação na CTPS do(s) empregado(s), pagamento de 13º salário e terço constitucional de férias etc. Para fins de reconhecimento do vínculo como empregado celetista, é imprescindível a observância das exigências lançadas no artigo 3º da CLT. A competência para tanto é da Justiça do Trabalho.

O que está em jogo no âmbito do Carf é a verificação do preenchimento dos requisitos legais para a caracterização do contratado como segurado obrigatório, exclusivamente para fins previdenciários. É no inciso I do artigo 12 da Lei nº 8.212/91 [4] — e não no artigo 3º da CLT — que estão descritas as hipóteses segundo as quais as pessoas físicas serão enquadradas como segurados obrigatórios da Previdência Social, na qualidade de empregados. Embora asseverado na ADPF a "falta de embasamento normativo", da leitura dos acórdãos prolatados pelo Carf repetidamente referenciados os artigos 116, 142 e 149, todos do CTN, bem como o §2º do artigo 229 do RPS [5], que prevê que "(s)e o Auditor Fiscal da Previdência Social constatar que o segurado contratado como contribuinte individual, trabalhador avulso, ou sob qualquer outra denominação, preenche as condições referidas no inciso I do caput do artigo 9º, deverá desconsiderar o vínculo pactuado e efetuar o enquadramento como segurado empregado". Sobre os ombros da fiscalização recai o ônus de comprovar que os instrumentos pactuados tentam encobrir a existência de verdadeiros segurados obrigatórios (empregados).

Deveras, a alínea "a" do inciso I do artigo 12 da Lei nº 8.212/91 carrega redação similar à do artigo 3º da CLT ao determinar ser segurado obrigatório (empregado) "aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado". Entretanto, ser o empregado segurado obrigatório da Previdência Social não o faz celetista — os conselheiros indicados pelas sindicais e patronais para compor o Carf, por exemplo, são segurados obrigatórios do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e não possuem vínculo de natureza empregatícia com o conselho. O mesmo acontece, via de regra, com aqueles que ocupam cargos de natureza comissionada em quaisquer das esferas nos três poderes.

No âmbito do processo administrativo fiscal, tampouco se discute a possibilidade de terceirizar (ou não) serviços [6] — tema esse de competência exclusiva da Justiça do Trabalho —, e, sim, a potencial utilização do instituto para, sob o manto da liberdade de empreender e da livre iniciativa, disfarçar relações que, na realidade, são fatos geradores de obrigações previdenciárias. Sempre pertinente lembrar inexistirem direitos ou garantias absolutas. Justamente por isso, não parece compatibilizar com a ordem constitucional demandar da autoridade fazendária — da DRJ e, por último, do Carf — a caracterização do fato gerador dissociado da realidade fática, privilegiando apenas aquilo que quiseram fazer constar em papéis. Tem a fiscalização não só o poder, mas o dever de requalificar, de forma fundamentada, negócios jurídicos que apenas possuem um verniz de legalidade.

A atenção a todas essas balizas — principalmente àquela que diz respeito à distribuição do ônus probatório — é percebida em uma gama de precedentes do Carf. Tanto é assim que, diferente do que sói ser inadvertidamente narrado, diversas são as decisões que, contrariando os achados da fiscalização, afastam a classificação de pessoas físicas como segurados empregados.

A Câmara Superior, por unanimidade de votos, manteve o afastamento da autuação, sob o fundamento de que a ausência de "demonstração inequívoca de todos os elementos do vínculo, consiste em vício irreparável ao lançamento, eis que materialmente este não se sustenta" [7]. Em outro julgado que afastou a autuação que considerou pessoas físicas e jurídicas como segurados empregados, repisado que "não cabe ao Fisco presumir a ilicitude da conduta do contribuinte, tampouco emitir opinião sobre a legislação vigente. É seu dever, ao reverso, aplicar a lei tributária, agindo no sentido da desconstituição dos negócios jurídicos eivados de vício, como, por exemplo, nos casos de fraude ou simulação" [8].

Em outra recente oportunidade, após afastada a indigitada usurpação de competência da Justiça do Trabalho, assentado que "(n)o que tange às contribuições previdenciárias, como em qualquer outro tributo, a avaliação da ocorrência do fato gerador não depende exclusivamente da forma com que a empresa enxerga a sua relação com os profissionais com quem atua. Tal avaliação demanda análise do caso concreto e identificação da ocorrência dos elementos caracterizadores do vínculo elencados pelo no citado artigo 12 da Lei nº 8.212/91, a saber, pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade" [9].

Noutra decisão, inclusive referenciada na inicial da ADPF nº 647, é dito que "o extenso conjunto probatório trazido aos autos no trabalho fiscal deixam clara a contratação de empregados da Recorrente sob a roupagem de sócios da pessoa jurídica na prática. Tais fatos, como já evidenciado no relatório, permitem concluir pela existência de vínculo de emprego diante da presença dos elementos de onerosidade, subordinação e habitualidade constantes do artigo 12 da Lei nº 8.212/91" [10]. Ou seja, mais uma vez asseverado recair sobre a autoridade fiscalizadora o ônus de detalhadamente comprovar o preenchimento dos requisitos trazidos na Lei nº 8.212/91 para, apenas para fins previdenciários, considerar o segurado como empregado, retirando o trabalhador de uma situação de vulnerabilidade, eis que antes não detinha acesso aos benefícios fornecidos pelo INSS.

Por fim, em mais um acórdão prolatado pelo Carf que afastou a autuação,[11] assentado que "(a) descaracterização do vínculo pactuado é uma medida extrema, que, como tal, deve estar amparada em indubitável conjunto probatório. Assim sendo, e muito embora os contratos demonstrem a existência de (a) pessoalidade; (b) onerosidade; e (c) não eventualidade, entende­se que não houve demonstração satisfatória do requisito da subordinação jurídica. Destarte, a autoridade não conseguiu demonstrar que a recorrente realizou, no mundo fenomênico, o fato gerador das contribuições lançadas, razão pela qual deve ser dado provimento ao recurso, para cancelar o lançamento" [12].

Da análise dos precedentes do conselho, fica evidenciado inexistir uma resposta a priori sobre o acerto da subsunção, ultimada pela auditora fiscal, aos requisitos legais para caracterização do segurado obrigatório. Somente a análise caso a caso a trará. Se doravante tiver o Carf que fechar os seus olhos, passando a ser conivente com o não recolhimento de contribuições previdenciárias daqueles que comprovadamente haveriam de ser considerados segurados obrigatórios, será fragilizado o princípio sobre o qual se escora a seguridade social: o da solidariedade. Que venha a decisão do Supremo!

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] A íntegra de inicial encontra-se disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5846267>. Acesso em: 21 de jun. 21.

[2] Idem.

[3] Com arrimo na literalidade da norma e na remansosa jurisprudência do Guardião da Constituição, a Minª sustenta que “pelo princípio da subsidiariedade, previsto no § 1º do artigo 4º da Lei nº 9.882/1999, a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente pode ser ajuizada se não houver outro instrumento processual previsto no ordenamento jurídico apto a sanar, de modo pronto e eficaz, a situação de ameaça ou lesão a preceito fundamental. (…) Tais decisões da administração tributária – incluídas as indicadas na petição inicial – estão sujeitas, como é de básico conhecimento, ao controle do Poder Judiciário pelos diversos instrumentos processuais dispostos em lei ao cidadão para o alcance, de modo pronto e eficaz, da tutela de direitos subjetivos e fundamentais. A arguição de descumprimento de preceito fundamental não serve de sucedâneo de ações individuais e para o enfrentamento de casos concretos, principalmente quando se faz necessário, conforme aqui se revela, o escrutínio dos fundamentos de cada decisão do Carf sobre o tema.” O voto encontra-se disponível na aba “Sessão Virtual” em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5846267>. Acesso em: 21 de jun. 21.

[4] Replicado no artigo 9º do RPS.

[5] Cf. Acórdão nº 2202­004.960, Cons. Rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 13/02/2019 (unanimidade), Acórdão nº 2401-007.105, Cons. Rel. JOSÉ LUÍS HENTSCH BENJAMIN PINHEIRO, sessão de 05/11/2019 (por maioria de votos por haver divergência apenas quanto à contagem do prazo decadencial); Acórdão nº 2402-006.976, Cons. Rel. DENNY MEDEIROS DA SILVEIRA, sessão de 13/02/2019 (maioria de votos por haver divergência apenas quanto à contagem do prazo decadencial); Acórdão nº 2202-005.260, Cons. Rel. MARTIN DA SILVA GESTO, sessão de 05/06/2019 (unanimidade).

[6] Vale lembrar que, a partir da reforma aprovada pela Lei nº 13.467/17, a terceirização passou a ser admitida até mesmo para as atividades-fim do negócio.

[7] Acórdão nº 9202­007.126, Cons.ª Rel.ª ANA PAULA FERNANDES, sessão de 28 de ago. de 2018 (unanimidade). Em sentido similar, cf.: Acórdão nº 9202-007.418, Cons. Rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, Redatora Designada PATRÍCIA DA SILVA, sessão de 11 de dez. de 2018 (por maioria).

[8] Acórdão nº 2401-009.163, Cons. Rel. MATHEUS SOARES LEITE, sessão de 4 de fev. de 2021 (unanimidade). Em igual sentido, com uma análise de cada um dos diversos contratos objetos da autuação, cf. Acórdão nº 2202-008.361, Cons.ª Rel.ª LUDMILA MARA MONTEIRO DE OLIVEIRA, sessão de 8 de jun. de 2021 (por maioria) –publicação pendente até o fechamento desta coluna, cf. gravação da sessão de julgamento (item 96 da pauta) em: <https://Carf.economia.gov.br/consultas/sessoes-virtuais>.

[9] Acórdão nº 2201-007.388, Cons. Rel. CARLOS ALBERTO DO AMARAL AZEREDO, sessão de 5 de out. de 2020 (unanimidade).

[10] Acórdão nº 2202­003.478, Cons.ª Rel.ª JÚNIA ROBERTA GOUVEIA SAMPAIO, sessão de 12 de jul. de 2016 (por maioria).

[11] Igualmente cancelando o lançamento, vide: Acórdão nº 2201-004.763, Cons. Rel. Daniel Melo Mendes Bezerra, Redator Designado Marcelo Milton da Silva Risso, sessão de 6 de nov. de 2018 (por maioria de votos por haver divergência apenas quanto à contagem do prazo decadencial).

[12] Acórdão nº 2402­005.696, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, sessão de 14 de mar. de 2017 (por maioria).

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University. Foi residente pós-doutoral na UFMG. Conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf; professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

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