Direito Civil Atual

O idoso maior de 80 anos e o direito à prioridade especial

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  • é conselheiro presidente da Comissão de Defesa de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Ceará mestre em Ciência Política pela Universidade de Lisboa.

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26 de julho de 2021, 10h41

Na exegese normativa para o implemento de ações destinadas à atenção prioritária aos diversos grupos que apresentam vulnerabilidades, revela-se imperiosa a necessidade de salvaguardar a prioridade especial dos idosos maiores de 80 anos, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proporcionalidade.

ConJur
Com matriz constitucional e previsto no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o princípio da absoluta prioridade foi alçado ao artigo 3º do Estatuto do Idoso como aplicável aos idosos. Esses diplomas normativos, ao atribuírem a diferentes sujeitos prioridade de direitos sobre o mesmo bem jurídico, podem vir a gerar aparentes conflitos no exercício dos direitos tutelados.

Eventuais conflitos entre os sujeitos de direito à prioridade podem surgir, de sorte que cabe ao Estado solucioná-los. O poder público tem o dever de promover a proteção integral diferenciada aos idosos maiores de 80 anos. É de responsabilidade estatal fomentar o equilíbrio para a efetivação do direito à vida em sua compreensão máxima, assim como à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária dessa população.

É sabido que a Lei 10.048/2000, que trata das prioridades, estabelece o atendimento prioritário às pessoas com deficiência, aos idosos com idade igual ou superior a 60 anos, às gestantes, às lactantes, às pessoas com crianças de colo e aos obesos. O princípio da absoluta prioridade rege os estatutos do idoso e da criança e do adolescente, entretanto, encontra-se detalhado de maneira distinta ao longo dos textos legais, com atenção diferenciada às crianças e aos adolescentes em situação de risco e, no caso dos idosos, aos mais vulneráveis. Destarte, diante de eventual conflito de interesses entre idosos e outros grupos vulneráveis, poder-se-ia indagar a qual dos sujeitos de direito é devido o tratamento preferencial?

Observa-se que mesmo diante da previsão de grupos variados para o atendimento preferencial e para o desenvolvimento de políticas públicas prioritárias, não há, no ordenamento jurídico brasileiro, um dispositivo que trate expressamente da primazia de algum dos grupos em caso de conflito de interesses entre os sujeitos. Conquanto não tenhamos previsão expressa de hierarquia entre o rol de sujeitos preferenciais, a análise sistemática (e teleológica) do nosso ordenamento descortina a prioridade peculiar dos idosos, especialmente dos maiores de 80 anos. A preocupação com o idoso maior de 80 anos, especificamente no que tange à prioridade de atendimento, é elevada a nível especial no Estatuto do Idoso e consta no rol das preocupações para a garantia dos meios necessários ao exercício da cidadania, dignidade e prioridade nas políticas públicas.

O Estatuto do Idoso representa inegavelmente uma grande conquista social e um marco na garantia de direitos desta população. Além disso, afirma a obrigação da família, da sociedade e também do poder público em oferecer uma especial proteção ao idoso. O Estado deve fomentar atividades e ações para garantir um envelhecimento ativo e saudável, de sorte a também garantir os direitos essenciais dos idosos.

A fraternidade entre os seres humanos propicia o tratamento prioritário e protetivo dos mais vulneráveis como forma de atingir um grau ótimo de dignidade. Acerca da dignidade da pessoa humana em sintonia com a fraternidade ensina Ingo Wofgang Sarlet: "ao pensamento cristão coube, fundados na fraternidade, provocar a mudança de mentalidade em direção à igualdade dos seres humanos" [1]. Nesta mesma linha leciona Bobbio, "a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor, não são um ser, mas um dever-se" [2].

O princípio da igualdade apresenta-se como um importante instrumento jurídico de busca do valor do equilíbrio das relações humanas com ênfase para a igualdade material. Com efeito, pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual, de modo que dar tratamento isonômico significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata proporção de suas desigualdades.

O tratamento digno e igualitário da pessoa humana deve levar em consideração as características especiais que a diferencia das demais. A população idosa, especialmente a maior de 80 anos, revela uma desigualdade de condições físicas e de saúde que deve ser observada para dirimir conflitos de interesses existentes na aplicação do princípio da prioridade absoluta. A desigualdade natural do envelhecimento decorre de um processo gradual que se desenvolve durante o curso de vida e que implica alterações biológicas, fisiológicas, psicossociais e funcionais com várias consequências, as quais se associam com interações dinâmicas e permanentes entre o sujeito e o seu meio [3]. Desse modo, a desigualdade física natural decorrente do envelhecimento exige que o direito exclua situações degradantes e desumanas para o idoso maior de 80 anos. Nesse contexto, ressalta-se a existência do direito a prioridade especial absoluta dos idosos, maiores de 80 anos, de forma sistemática no ordenamento jurídico brasileiro.

A Constituição da República, disciplina a proteção dos idosos, ao determinar em seu artigo 229 o seguinte "(…) os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade" [4]. Esse dispositivo norteia o grau da preocupação constitucional com a vulnerabilidade da pessoa idosa carente ou enferma, e a necessidade de integrar e fortalecer o papel da família na proteção desses indivíduos. Na mesma linha, o artigo 230 da Constituição proclama que, "a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida" [5].

A partir de uma análise sistêmica da Constituição, visualiza-se a intrínseca ligação do princípio da dignidade da pessoa humana com o exercício da plena cidadania dos idosos. Neste sentido, tem-se o artigo 230, §2º, a gratuidade do transporte público urbano é garantida aos maiores de 65 anos; há também a previsão da faculdade do voto a partir de 70 (setenta) anos de idade (artigo 14, §1º, inciso II, alínea "b"); além da garantia do salário mínimo ao idoso que não possuir meios de manutenção própria (artigo 203, V) [6].

Em nível internacional, diversos instrumentos estabelecem a especial proteção do idoso, entre eles os Princípios das Nações Unidas em Favor das Pessoas Idosas (1991), a Proclamação sobre o Envelhecimento (1992), a Declaração Política e o Plano de Ação Internacional de Madri sobre o Envelhecimento (2002), bem como os instrumentos regionais, tais como a Estratégia Regional de Implementação para a América Latina e o Caribe do Plano de Ação Internacional de Madri sobre o Envelhecimento (2003), a Declaração de Brasília (2007), o Plano de Ação da Organização Pan-Americana da Saúde sobre a Saúde dos Idosos, Incluindo o Envelhecimento Ativo e Saudável (2009), a Declaração de Compromisso de Port of Spain (2009) e a Carta de San José sobre os direitos do idoso da América Latina e do Caribe (2012).

O Estatuto do Idoso, por sua vez, determina que pessoas com idade igual ou superior a 60 anos sejam destinatárias de prioridade no exercício dos direitos humanos. No Estatuto é assegurado ao idoso, em um nível elevado de proteção, o direito a saúde física e mental e o pleno exercício da vida moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade [7]. Além disso, atualmente, vivemos a realidade do aumento da expectativa de vida da pessoa idosa no Brasil e dentro dessa nova perspectiva o direito brasileiro instituiu um grau de proteção e prioridade especial para os idosos maiores de oitenta anos, conforme se extrai da Lei 13.466/2017 que acrescentou o §2º ao artigo 3º do Estatuto do Idoso.

O envelhecimento ativo e saudável, com respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e igualdade material, é claramente um objetivo Constitucional. Conforme demonstrado também em nível infraconstitucional, mais especificamente no Estatuto do Idoso e nas leis que protegem as condições peculiares dessa faixa etária, o direto deve propiciar o exercício de uma vida digna ao idoso, livre de tratamentos degradantes e desumanos, de modo a alcançar o envelhecimento ativo.

Otimizar as oportunidades de bem-estar físico, mental e social e de participação dos idosos em atividades sociais, econômicas, culturais, espirituais e cívicas; promover a proteção, segurança e atenção, com o objetivo de ampliar a esperança de vida saudável e a qualidade de vida de todos os indivíduos na velhice e permitir, assim, seguir contribuindo ativamente para suas famílias, amigos, comunidades e nações é necessariamente uma das finalidades do estado social de direito [8].

O envelhecimento ativo e saudável é decorrência das oportunidades desenvolvidas pelo princípio da prioridade absoluta e especial do idoso. Inspirada nesse princípio, a legislação pátria, de forma direta e indireta, oferece subsídio para que o idoso maior de 80 anos atinja um grau elevado de proteção em atenção às suas características especiais e, por conseguinte, concretize a igualdade de condições na vida em sociedade, viabilizando-se o reconhecimento e o pleno gozo e exercício, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

[1]SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 24.

[2]Bobbio, Norberto, A Era dos Direitos, Editoração Eletrônica, DTPhoenix Editorial , 2004, ISBN 13: 978-85-352-1561-8, ISBN 10: 85-352-1561-1, Edição original: ISBN 88-06-12174-X, p. 18, [Consult. 22 julho 2021]. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/297730/mod_resource/content/0/norberto-bobbio-a-era-dos-direitos.pdf

[3]Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos https://idoso.mppr.mp.br/arquivos/File/convencoea.pdf

[4]Constituição da Republica Federativa do Brasil http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[5] ibdem

[6] ibidem

[8] Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos https://idoso.mppr.mp.br/arquivos/File/convencoea.pdf

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  • é conselheiro presidente da Comissão de Defesa de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Ceará, mestre em Ciência Política pela Universidade de Lisboa.

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