Menor potencial ofensivo

Lei da Califórnia sobre shoplifting cria polêmica nos EUA

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29 de dezembro de 2021, 8h44

A Califórnia, nos EUA, teve boa intenção, quando aprovou, recentemente, uma lei que rebaixou o shoplifting (furto de mercadorias em lojas) da classificação de crime para a de contravenção penal. Shoplifting passou a ser um delito de pequena monta. Um problema é o de que a "monta" não é pequena. Seu limite máximo é de US$ 950 (R$ 5.357) — um valor que permite a um ladrão furtar não uma ou duas galinhas para comer, mas cerca de 250. E vendê-las pela Internet.

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A boa intenção era remediar crises como as da sobrecarga da Justiça, a excessiva população prisional e as pressões sobre o orçamento do estado. Mas o efeito colateral do remédio foi considerável: ele criou um incentivo para o shoplifting, que, na verdade, se traduziu em saques de lojas por gangues, que alarmaram São Francisco e outras cidades do estado.

Tais saques foram definidos como ações do crime organizado pela National Retail Federation (NRF). Não podem ser classificados como shoplifting, que é a ação normalmente isolada de um indivíduo, que tenta subtrair furtivamente mercadoria de uma loja. As gangues têm agido abertamente, sem tentar ao menos disfarçar suas ações.

A lei recebeu muitos elogios e muitas críticas, na comunidade jurídica e nas entidades representativas dos varejistas e dos próprios comerciantes. Mais críticas, por sinal. Há quem peça uma nova reversão da medida legislativa, para endurecer a lei e conter o incentivo ao crime.

Mas há quem ache que é preciso, para desestimular a prática, regulamentar a atuação das provedoras de Internet, porque o maior incentivo seria a facilidade para se vender os produtos furtados online. A lei deveria exigir que as provedoras colhessem alguns dados dos vendedores que movimentam um volume maior de mercadorias em sites tais como o Craigslist, para facilitar a identificação.

Outro problema é o de que a lei criou desincentivos para a polícia investigar e prender os infratores e para os promotores processá-los. A lei define shoplifting como o ato de entrar em um estabelecimento comercial, em horário comercial, com a intenção de cometer um delito. É certamente difícil para o promotor provar a intenção prévia do infrator.

Da mesma forma, há pouca vontade dos promotores de processar alguém por tal contravenção penal. Se o fizer — e tiver sucesso apesar de tudo — estará buscando uma pena de seis meses de cadeia e/ou multa máxima de US$ 1 mil. E a polícia não pode ajudar muito nas investigações e na obtenção de provas, a não ser que a pessoa confesse. Então prefere "deixar isso pra lá".

Teoricamente, esse foi mais um incentivo às gangues para saquear lojas em São Francisco e outras cidades da Califórnia. E as gangues encontraram mais uma facilidade: os empregados das lojas foram instruídos a não resistir à ação das gangues por uma questão de segurança pessoal, depois que um empregado da Rite Aid foi morto, ao tentar impedir a ação de dois ladrões. E as lojas não se dispõem a gastar mais do que já gastam com segurança. Preferem fechar as portas. E a comunidade perde serviços e empregos.

Buraco mais embaixo
A nova lei da Califórnia pode ter incentivado o shoplifting, como ocorreu em outros estados que relaxaram, de alguma forma, a classificação penal do delito. Mas não é, de forma alguma, responsável pela praga de furtos de mercadorias de lojas que infesta os Estados Unidos há anos.

A National Association for Shoplifting Prevention calcula que o furto de mercadorias em lojas tem um custo para os varejistas, nos EUA, de cerca de US$ 45 bilhões por ano — dos quais US$ 33,21 bilhões são repassados aos contribuintes.

O Relatório da National Retail Federation (NFR) de 2020, que se concentra no custo do crime organizado, indica que os varejistas arcaram, no ano, com uma perda média de US$ 719.548 por US$ 1 bilhão em vendas, em comparação com US$ 703.320 em 2019 e com US$ 453.900 em 2015 – isto é, vem crescendo consistentemente nos últimos anos.

O crime está em alta na Califórnia (e nos EUA, em geral), de qualquer forma. O número de homicídios aumentou 31% no ano passado, tornando 2020 o ano "mais letal" desde 2007, segundo a Hoover Institution. Em 2020, ocorreram 2.202 homicídios, 523 a mais do que em 2019. Homicídios em Los Angeles subiram 40% e em São Francisco 35%.

A situação pode piorar, porque o governo da Califórnia planeja libertar 63 mil prisioneiros, da população carcerária de 115 mil — para aliviar o orçamento. O custo de cada prisioneiro para o estado é de US$ 81 mil ano — multiplicado por 115 mil prisioneiros é igual a US$ 9,315 bilhões por ano.

Os defensores do "downgrade" do shoplifting para contravenção penal acham que a polícia e os promotores irão aproveitar melhor seus recursos se concentrarem seus esforços no combate a "crimes de maior impacto", como homicídio, assalto, abuso infantil, fraudes tributárias, distribuidores do mercado negro, etc. E apenas criar desincentivos apropriados ao cometimento de delitos de menor potencial ofensivo.

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