Opinião

Cramdown no Brasil: um caso de atecnicidade jurídica

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7 de dezembro de 2021, 20h59

A Lei 11.101/05, consagradora do instituto da recuperação judicial e da falência no Brasil, carrega em sua essência, como se sabe, o princípio da preservação da empresa em crise com o objetivo de promover a manutenção de empregos, o pagamento de impostos e a recuperação de créditos. Um dos instrumentos mais comumente utilizados para se alcançar tal finalidade foi importado da legislação falimentar americana e incorporado (em parte, como explicaremos) no artigo 58, §§1º e 2º, da LRF, recebendo o nome de cramdown, traduzido grosseiramente como "goela abaixo".

Em linhas gerais, o instituto em questão permite que juízes responsáveis por processos de insolvência concedam planos de recuperação mesmo que estes tenham sido rejeitados por uma parcela dos credores votantes. Acontece, todavia, que o cramdown, tal como colocado na legislação recuperacional brasileira, destoa substancialmente do instituto previsto no Bankruptcy Code norte-americano.

Assim, expomos brevemente uma reflexão acerca da falta de técnica observada na utilização do termo cramdown nos processos falimentares nacionais. Primeiramente, faz-se necessário compreender a origem e a aplicação do cramdown nos EUA.

A disciplina norte-americana de recuperação judicial e falências está estruturada sob a lógica do recomeço financeiro, ou, na dicção anglófona, o fresh start [1]. A atual legislação acerca da falência nos EUA é o Bankruptcy Reform Act de 1978 (Bankruptcy Act), codificado no Título 11 do United States Code, que permite às empresas o acesso à falência/recuperação judicial a partir das modalidades previstas no Chapter 7 (liquidação, falência), em que um trustee coleta todos os bens disponíveis e não isentos em uma espécie de massa falida, com posterior venda e distribuição aos credores, até a satisfação destes, e o Chapter 11 (reorganização, recuperação judicial), ideal para companhias que possuem um valor de going concern  valor formado pela manutenção dos ativos da devedora e pela continuidade de suas operações maior do que seu valor de liquidação [2], preservando as atividades da companhia.

Nesse sentido, tem-se como um dos pilares do sistema falimentar americano justamente o chamado cramdown. Trata-se de instituto regulamentado no Chapter 11 do Bankruptcy Code, dentro da Section 1129(b):

"Notwithstanding section 510(a) of this title, if all of the applicable requirements of subsection (a) of this section other than paragraph (8) are met with respect to a plan, the court, on request of the proponent of the plan, shall confirm the plan notwithstanding the requirements of such paragraph if the plan does not discriminate unfairly, and is fair and equitable, with respect to each class of claims or interests that is impaired under, and has not accepted, the plan". 

O instrumento em questão permite que, mesmo diante da reprovação do plano por parte de uma parcela dos credores, o juiz supere esse veto por meio do cramdown, desde que a proposta recusada seja justa e equitativa (fair and equitable), viável (feasible), bem como não implique em injusta discriminação entre os credores (unfair discrimination). Dentro dessa lógica, busca-se impedir rejeições imotivadas ou causadas por mero "capricho" de credores descontentes.

Com relação ao primeiro parâmetro, de fair and equitable treatment, entende-se que o plano deve ser justo e equitativo, agindo, na esfera vertical do plano, fazendo com que certa hierarquização prevaleça no pagamento das classes de credores, com a importância da chamada absolute priority rule, que prevê que uma classe de credores não pode ser obrigada a aceitar menos do que a compensação total quando um credor com posição menos privilegiada na ordem de credores recebe ativos no âmbito do plano.

O segundo requisito, feasible, determina que o plano seja viável do ponto de vista da reorganização da empresa, devendo ser economicamente razoável e não provavelmente acompanhado de uma falência ou reorganização futura subsequente.

O último requisito, vedação à unfair discrimination, de acordo com Tabb e Brubaker [3], importa no impedimento de uma prática de discriminação injusta quando do pagamento dos credores, protegendo uma classe contra o risco de o proponente da recuperação criar, para outras classes de mesmo patamar legal, a promoção de tratamento mais favorável no plano.

Entendido como a aplicação do instituto se dá nos EUA, passemos agora para a análise do mecanismo que também é chamado, comumente, de cramdown no Brasil. Como dito anteriormente, o instrumento de aprovação forçada do plano de recuperação de uma empresa foi transplantado por meio do artigo 58, §§1º e 2º, da LRF.

Pelo §1º do mencionado dispositivo, o magistrado responsável pelo procedimento está autorizado a conceder a recuperação judicial mesmo sem a aprovação da assembleia de credores  artigo 45 da LRF, que preconiza que todas as classes creditícias (titulares de créditos trabalhistas, titulares de crédito com garantia real e titulares de créditos quirografários) devem aprovar a proposta desde que tenham ocorrido, de forma cumulativa: 1) o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos (inciso I); 2) a aprovação de duas das três classes de credores, ou, no caso da existência de apenas duas classes, a concordância de pelo menos uma delas (inciso II); e 3) o voto favorável, na classe que tenha rejeitado o plano, de mais de um terço dos credores, contados individualmente (inciso III).

O §2º, por sua vez, muitas vezes desconsiderado em discussões acerca do tema em pauta, afirma que a concessão do plano aos moldes do §1º somente poderá ocorrer se o plano aprovado não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado.

Isso posto, chegamos ao cerne da reflexão aqui desenvolvida. Ao compararmos o tratamento dado ao instituto do cramdown pelos dois sistemas, observam-se sensíveis diferenças.

Ao contrário do sistema americano, não temos na lei parâmetros concretos para balizar a concessão do plano de recuperação pelo juiz  inexoravelmente, critérios de justiça e equidade (fair and equitable), exequibilidade (feasible) e de não discriminação entre credores da mesma classe (unfair discrimination). De maneira oposta, vê-se que a legislação brasileira tão somente adotou critérios alternativos de aprovação majoritária do plano de recuperação judicial. Em outras palavras, não aprovado o plano proposto aos moldes do artigo 45, o que se enxerga é a abertura subsequente de uma nova análise da votação do plano, segundo regras majoritárias alternativas.

Isso não poderia ser mais diferente do cramdown americano, dentro do qual é feito um verdadeiro exame da rejeição do plano, de suas características, formas de pagamento de credores e o tratamento despendido entre eles, entre outros elementos identificados na lei americana. O objetivo dessa análise realizada pelo magistrado estadunidense é, como dito anteriormente, verificar se a rejeição se deu por razões legítimas — exempli gratia tratamento diferenciado e desleal entre credores ou desrespeito a regras de prioridade  ou por mero "capricho" do credor dissidente. A imposição "goela abaixo", nesse sentido, surge como instrumento de preservação da atividade empresarial e de recuperação eficiente de créditos à medida que solapa credores que não aprovam planos justos, equilibrados e viáveis sem justificativa plausível.

Mesmo o §2º do artigo 58, o qual, a prima facie, parece tentar conceder um parâmetro de análise para a concessão forçada do plano de recuperação, carece de maiores sofisticações no assunto, restando extremamente vago e impreciso  exempli gratia o que significa tratamento diferenciado para fins do referido parágrafo?  e peca ao estar condicionado às regras alternativas de aprovação majoritária do plano.

Portanto, buscamos explorar nesta breve reflexão mais um caso de grosseira importação de institutos no sistema jurídico brasileiro. Nenhum dos requisitos e parâmetros originais da legislação americana, balizadores da aplicação do cramdown na concessão forçada de planos de recuperação rejeitados em votação de credores, foram replicados na LRF, o que fortalece o entendimento de que a utilização do vocábulo cramdown no Brasil resulta em atecnicidade jurídica em matéria de Direito Falimentar comparado, sendo fruto de uma importação incompleta do instituto americano.

 


[1] PORTERT, Katherine; THORNE, Deborah., The Failure of Bankruptcy's Fresh Start, 92, Cornell L. Rev. 67, 68 (2006).

[2] SCARBERRY, Mark S. Business Reorganization in Bankruptcy: Cases and Materials, 3rd ed, 2006.

[3] TABB; C. J.; BRUBAKER, R. Bankruptcy law: principles, policies, and practice. 3. ed. United States: Matthew Bender & Company, Inc., 2011.

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