Opinião

O sistema acusatório e o inquérito judicial das fake news

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

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31 de agosto de 2021, 15h05

Está marcado para o dia 25 de novembro deste ano o julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, de relatoria do ministro Luiz Fux, em que se questionam dispositivos do pacote "anticrime" (Lei 13.964/2019), que criaram a figura do juiz das garantias.

Um dos dispositivos suspensos liminarmente pelo relator institui no Direito Processual Penal objetivo o sistema acusatório de processo. E no que ele consiste?

Por esse sistema existe nítida divisão entre o órgão acusador e o julgador. Enquanto a acusação é, em regra, formulada por um órgão estatal (Ministério Público), o Poder Judiciário é o responsável pela aplicação da lei e a solução dos conflitos entre o Estado e o particular. As partes estão em igualdade de condições, sobrepondo-se a elas, como órgão imparcial de aplicação da lei, o juiz. Como corolário lógico desse sistema, vigoram os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV e LV), além das garantias da tutela jurisdicional (artigo 5º, XXXV), do acesso à Justiça (artigo 5º, LXXIV), do juiz natural (artigo 5º, XXXVII e LIII) e do tratamento paritário das partes (artigo 5º, caput, e I), estando vedado ao juízo instaurar ação penal de ofício ("ne procedat judex ex officio") e investigar na fase pré-processual, usurpando a função da Polícia Judiciária (artigo 144 da CF) e do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (artigo 129, I, da CF), que também possui o poder investigatório criminal, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (RE 593727/MG — relator ministro Cezar Peluso — Tribunal Pleno — julgado em 14/5/2015).

Há questão que até agora não foi levantada e poderá se transformar em sério problema hermenêutico em breve, com sensíveis consequências no processo penal. Explico.

A Lei nº 13.964/2019 introduziu no Código de Processo Penal, no capítulo que trata do juiz de garantias, dispositivo específico que consagra no direito objetivo o sistema acusatório de processo, o que já era reconhecido pela doutrina e jurisprudência pacíficas, por interpretação decorrente do nosso sistema constitucional e processual. Diz a norma: "Artigo 3º-A  O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

Por força de liminar em ação direta de inconstitucionalidade que questiona o juiz de garantias no sistema processual, foram sustados os efeitos desse dispositivo e de vários outros no capítulo (STF: ADI 6.299 MC/DF, relator ministro Luiz Fux, j. em 22/1/2020).

Referida decisão liminar foi proferida por conta de questionamento da constitucionalidade do juiz de garantias e não desse dispositivo específico, cujo fundamento já é reconhecido de forma praticamente unânime em todos os tribunais.

Isso quer dizer que, ao julgar o mérito do pedido nesta ADI, muito provavelmente referida norma voltará a ter eficácia.

Tal conclusão é reforçada por decisão do ministro Dias Toffoli, na qualidade de presidente da corte, sobre o juiz de garantias, na qual concedeu parcialmente a liminar apenas para suspender a eficácia de alguns dispositivos por tempo determinado, sem qualquer menção ao artigo 3º-A, do Código de Processo Penal. Fundamentou o ministro: "Nossa ordem constitucional consagra, a partir do artigo 129, inciso I, da CF/88 — que atribui ao Ministério Público a titularidade da ação penal —, o sistema acusatório, o qual se caracteriza pela nítida divisão entre as funções de investigar e acusar e a função de julgar, sendo o réu sujeito de direitos" (STF: ADI 6.298 MC/DF, relator ministro Dias Toffoli, j. em 15/1/2020).

Quando se trata de revogação ou cassação de liminar, os efeitos da decisão são ex tunc, ou seja, vigoram para o passado, devendo a situação retornar ao status quo anterior. Aplica-se, à hipótese, por analogia, o disposto na Súmula 405 do STF: "Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária".

O artigo 3º-A do Código de Processo Penal é norma eminentemente processual, que apresenta reflexos no Direito Penal. Isso porque as provas produzidas por magistrado na fase pré-processual, em manifesta violação ao sistema acusatório de processo, podem resultar na condenação do acusado com aplicação de uma sanção penal.

Não se trata de norma mista (processual e penal), que ensejaria sua retroatividade para fatos anteriores à vigência da novel legislação. Toda norma processual penal terá algum reflexo no direito penal, vez que a grande finalidade desse ramo do Direito é justamente a aplicação de uma sanção penal. E nem por isso pode ser considerada mista, já que, se assim não for, qualquer norma processual penal também vigorará para o passado e não apenas para o futuro em homenagem à regra do tempus regit actum, prevista no artigo 2º do Código de Processo Penal.

Com isso, não obstante a decisão da Suprema Corte que reconheceu a constitucionalidade do aludido inquérito judicial (ADPF 572, relator ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 18/6/2020), diversas provas produzidas serão consideradas ilícitas ou processualmente ilegítimas, a depender da hipótese, e não poderão ser empregadas no processo, se tiverem sido determinadas por iniciativa exclusiva do relator, isto é, sem requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial, a contar da data da vigência da Lei nº 13.964/2019 (23/1/2020).

Isso porque muitas provas foram produzidas de ofício no referido inquérito judicial, sem a participação do Ministério Público, tanto que foi promovido seu arquivamento pela então procuradora-geral da República por entender pela ilicitude deste proceder.

E, reconhecida a ilicitude das provas, todas as decorrentes são contaminadas por vício insanável, ocorrendo o que a doutrina denomina de prova ilícita por derivação, segundo a qual o defeito da árvore transmite-se a seus frutos (teoria dos frutos da árvore envenenada), o que vem regulado no artigo 157, §1º, do Código de Processo Penal.

Podem os ministros modular os efeitos da decisão, é claro. Mas como fazer se toda jurisprudência dos tribunais, inclusive superiores, consagra o sistema acusatório de processo?

E, também, não vejo como excepcionar apenas o inquérito judicial, dizendo que o dispositivo em comento não o atinge. O sistema acusatório decorre da Carta Magna. O aludido dispositivo processual veio apenas inserir no direito objetivo algo que já era aceito de forma praticamente unânime por toda a doutrina e jurisprudência. Seria negar o óbvio. Não me parece razoável vigorar o sistema acusatório para todas as demais hipóteses e menos para o inquérito judicial instaurado com fundamento no regimento interno da corte, que tem a finalidade de regular sua organização administrativa, procedimentos e serviços internos, que claramente, no que tange ao dispositivo autorizativo (artigo 43), não foi recepcionado pela Constituição Federal, não obstante, com o devido respeito, o decidido pelo Pretório Excelso.  

A cassação da liminar proferida pelo ministro Luiz Fux trará sérias consequências processuais para diversos feitos em andamento instaurados com fulcro em provas produzidas no inquérito judicial originário. Essas provas, no meu entender, determinadas de ofício pelo relator e sem a participação do Ministério Público, a contar da vigência da novel legislação (23/1/2020), deverão ser declaradas ilícitas, contaminando todas as demais produzidas, o que ensejará a improcedência de ações em curso e o arquivamento de investigações em andamento.

A declaração da ilicitude probatória só não advirá se estiverem presentes as hipóteses processuais que autorizam a admissão da prova derivada da ilícita, quais sejam: 1) quando não evidenciado o nexo de causalidade entre a prova ilícita e a sua derivação; e 2) quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras, nos termos do artigo 157, §§1º e 2º, do Código de Processo Penal, o que deverá ser analisado caso a caso.

Desde a instauração do referido inquérito judicial defendi sua manifesta inconstitucionalidade por diversos fundamentos, entre eles, a violação ao sistema acusatório de processo.

Com a cassação da liminar deferida pelo ministro Luiz Fux, mesmo que parcialmente, o que é quase certo que ocorra, entrando em vigor o artigo 3º-A do Código de Processo Penal, fato novo advirá, o que obrigará o Supremo Tribunal Federal a reavaliar a licitude do inquérito judicial, notadamente quanto às provas produzidas de ofício pelo relator.

Enfim, referido julgamento é um dos mais aguardados pela comunidade jurídica, que, além de outras diversas questões, poderá trazer vícios insanáveis para o denominado "inquérito judicial das fake news", tão criticado por parcela considerável dos estudiosos e operadores do Direito, e para os dele decorrentes por empregarem provas ilícitas por derivação.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-SP, professor, palestrante, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela ESMP-SP e autor de diversas obras jurídicas, entre elas "Comentários à Lei de Execução Penal", "Manual de Direito Penal", "Lei de Drogas Comentada", "Estatuto do Desarmamento", "Provas Ilícitas" e "Tutela Penal da Intimidade".

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