O tratamento favorecido para micro e pequenas empresas na Lei 14.133/21
19 de agosto de 2021, 8h00
Há algum tempo, diversos países do mundo têm se valido dos procedimentos licitatórios para materializarem políticas públicas. A proteção do meio ambiente, a valorização do fornecedor local, o incentivo premial a empresas que desenvolvam ações de equidade entre homens e mulheres, a reinserção dos egressos do sistema prisional no mercado de trabalho são exemplos de objetivos perseguidos também via procedimentos licitatórios.
O tema não é novo e costuma ser tratado sob o manto da função social das licitações públicas,[2] função regulatória,[3] função extraeconômica,[4] função horizontal[5] entre outros. Essa articulista já cuidou do tema em várias oportunidades[6]. A doutrina não é sempre simpática à utilização das contratações públicas como mecanismo regulador/indutor, mas ao longo dos anos as regras dotadas deste perfil só cresceram.
No Brasil, o tratamento favorecido às ME e EPPs no curso dos procedimentos licitatórios antecede à LC 123/06. O artigo 23 § 1o da Lei 8.666/93 sinaliza a preocupação com aumento de competitividade via divisão das obras, serviços e compras em quantas parcelas se revelassem técnica e economicamente viáveis, medida que favorece a participação de micro e pequenas empresas.
Mas sem dúvida a LC 123/06 é a consolidação da política pública a este respeito e as alterações nela promovidas apenas densificaram a escolha legal pelo tratamento favorecido.
Quinze anos depois testemunha-se uma importante mudança. O legislador responsável por trazer ao mundo a Lei 14.133/21 estabelece um limite para o tratamento favorecido. Assim, embora não revogue a parte da LC 123/06[7] que aborde o tema, define-se o horizonte dentro do qual haverá espaço para empates fictos, oportunidade de desempates, licitação exclusiva entre outras previsões da lei complementar .
O caput do artigo 4º estabelece que se aplicam às licitações e contratos disciplinados por esta Lei as disposições constantes dos artigos 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
Todavia, o § 1º contém importante ressalva, afastando a incidência da LC 123/06 em dois cenários:
I – no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte;
II – no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.
O legislador separa as situações a partir do objeto da contratação, mas ao fim e ao cabo usa como parâmetro delimitador para o uso das facilidades da LC 123/06 o valor estimado da contratação e seu paralelo com a receita bruta anual máxima para o enquadramento como EPP, qual seja, R$ 4.800.000. Este o teto. Licitações cujos valores estimados o superem não serão impactadas pela LC 123/06.
No caso do inciso I, a envolver bens e serviços, analisa-se se o valor estimado do item está ou não abaixo do patamar máximo adotado. Se na fase preparatória, utilizando-se a metodologia definida no §1º do art. 23 da mesma Lei 14.133/21, o valor estimado da contratação do item não superar R$ 4.800.000, incidirão as regras constantes nos artigos 42 a 49 da LC 123/06. Se superarem, a licitação se afasta da citada lei.
Como o sarrafo é alto e a análise se faz item a item, a mudança pode (vejam que não se afirma nada) não ser tão impactante, em especial considerando contratações realizadas por entes subnacionais. Mas não se pode perder de vista que a agregação de demandas nas centrais de compras, cuja instituição é obrigatória à luz do artigo 181, sem prejuízo do que também prevê o artigo 19, inciso I, possa desmistificar essa crença.
O inciso II é relativo às obras e aos serviços de engenharia e também vem adornado com o mesmo limite. Faz-se a avaliação sobre a imperatividade ou não das regras da LC 123/06 a partir do valor estimado da contratação, que há de ocorrer segundo o padrão definido no § 2º do artigo 23.
O impacto do teto para objetos assim pode ser mais representativo pelo fato de que obras e serviços de engenharia podem (sempre teórica e hipoteticamente) alcançar valores mais expressivos quando comparados aos produtos e serviços de que cuida o inciso I, especialmente porque lá, como se disse, faz-se uma análise individual-item a item.
O legislador não parou aqui. Prevendo de forma oposta ao § 9º do artigo 3º da LC 123/06 e logo a revogando[9] o § 2º do mesmo artigo 4º da Lei 14.133/21 prevê que a obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação.
Ou seja, pelo que se pode inferir — sem prejuízo de uma leitura distinta com o amadurecimento da intepretação — não se aguarda o ano seguinte para exclusão dos benefícios. Trata-se de escolha diversa da promovida pelo legislador da LC. Ali há um percentual de tolerância. Se o excesso não superar 20% do limite (R$ 4.800.000) os efeitos são transportados para o ano calendário seguinte.
Isso posto, vê-se que a Lei 14.133/21 calibrou a influência da LC 123/06.
A decisão pode, à primeira vista, soar contraditória com o princípio do desenvolvimento nacional sustentável de que cuida o artigo 5º ou mesmo revelar um movimento em desacordo com outros ditames da mesma 14.133/21 que, na toada da função regulatória, prevê por exemplo como terceiro critério de desempate entre propostas o desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.
Mas assim não nos parece. Não se nega o princípio. Ele continua valorizado porque as ME e EPPs continuam a receber um olhar de empatia, com ajustes em termos de teto.
Também não se nega a matriz constitucional do tratamento favorecido[9], referenciada por essa própria articulista em outros trabalhos. Ela continua presente. O legislador não revogou a LC 123/06, mas pareceu buscar um equilíbrio para sua incidência.
Não se trata, nos contornos deste artigo, de elogiar ou criticar a escolha do legislador. O intuito é dizer que há uma escolha e que ela não pode ser criticada do ponto de vista jurídico.
Pois bem… e como ficam as empresas estatais?
O § 1º do artigo 1º da Lei 14.133/21 diz não serem por ela abrangidas as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, que continuam regidas pela Lei 13.303/16, salvo o disposto no artigo 178, que cuida dos aspectos penais.
Portanto, em tese, a resposta seria simples. Bastaria avaliar o que diz a Lei 13.303/16. E assim, lendo o artigo 28 § 1º da referida Lei das Estatais, a resposta seria: nada se alterou.
Há que se destacar que, ainda com expressa previsão legal, Marçal Justen Filho defende que as disposições do artigo 28, §1º são inconstitucionais dado que "a imposição do tratamento diferenciado, por gerar contratações com valores superiores aos das grandes empresas fornecedoras, implicaria na transferência dessa majoração para os preços praticados pelas estatais", restando assim comprometida "a eficiência e a economicidade da entidade empresarial"[11].
Noutro giro, a constitucionalidade do tratamento diferenciado é defendida por Dawison Barcelos e Ronny Charles, ao argumento de que "na avaliação dos interesses públicos envolvidos, tanto a eficiência e economicidade das contratações das estatais, como o fomento a determinado segmento do mercado (ME/EPP), parece-nos que o legislador, legitimamente, optou pela adoção do regime diferenciado previsto pelo Estatuto das microempresas e empresas de pequeno porte, mesmo em relação aos certames das estatais.
Constitucional o dispositivo, como nos parece, a celeuma não se encerra diante do passo dado pela Lei 14.133/21.
Como imaginar que empresas estatais, parte delas dedicada à atividade econômica propriamente dita, parte delas a contar com acionistas privados a perseguir legitimamente o lucro, possam ser compelidas a adotar uma política pública que os entes federados não são mais obrigados a adotar — quando ultrapassado o patamar já referenciado neste trabalho?
Se a lógica que impulsionou a mudança constitucional e na sequência o surgimento das Lei das Empresas Estatais decorre (não se ignoram fatores outros como os achados da operação lava jato) do reconhecimento de que as licitações por elas promovidas devem se desenvolver com ritmo e fluxo que confiram maior flexibilidade, como imaginar que elas estariam sob maior pressão quando o assunto são ME e EPPs?
Portanto, ainda que na literalidade a Lei 13.303/16 preserve a menção, sem retoques, a LC 123/16, uma análise mais racional e lógica indicaria outra solução, no sentido de se unificar o tratamento.
Alterações legislativas futuras à parte, alternativa possível seria a de considerar a superveniência da Lei 14.133/21 e de a partir dela se alterarem os Regulamentos das estatais, com regular motivação para a "incorporação da mitigação da política pública” valendo-se do próprio artigo 49, inciso III[12] da Lei Complementar 123.
Caminhos estão abertos.
[1] Ver considerandos 2, 59 e 78.
[2] FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua finalidade legal: a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
[3] FERRAZ, Luciano de Araújo. Função regulatória da licitação. Revista de Direito Administrativo e Constitucional – A&C, ano 23, n. 37, p. 133-142, jul./set. 2009. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/123/75/531. Acesso em: 08 ago. 2020.
[4] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
[5] ARROWSMITH, Sue. Horizontal Policies in Public Procurement: a taxonomy. Disponível em:
https://www.nottingham.ac.uk/pprg/documentsarchive/fulltextarticles/suetaxonomyofhorizontalpolicies.pdf. Acesso em: 08 ago. 2020 e FABRE, Flavia Moraes Barros Michele. Função horizontal da licitação e da contratação administrativa. 2014. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-01122015123928/publico/TESE_COMPLETA_FLAVIA_MORAES_2014.pdf. Acesso em: 01 ago. 2020.
[6] A título de exemplo, sugere-se conferir FORTINI, Cristiana ; RESENDE, Mariana Bueno. A função social das contratações públicas: um olhar para além do Brasil. In: PÉRCIO, Gabriela Verona; FORTINI, Cristiana (Coord.). Inteligência e Inovação em Contratação Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 151-177. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/4127/4310/28811. Acesso em: 18 ago. 2021.
[7] Arts. 42 a 49
[8] Não prosperaria a alegação de “superioridade” da LC 123/06 e a impossibilidade de ser revogada por lei ordinária. A matéria licitação tratada na LC 123/06 por óbvio não demanda Lei Complementar e logo os dispositivos lá presentes que digam respeito à licitação não estão imunes à Lei 14.133/21
[9] Artigos 170, IX e 179 da Constituição da República
[10] JUSTEN FILHO, Marçal. A contratação sem licitação nas empresas estatais. In Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016/Marçal Justen Filho, organizador. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 294/293.
[11] Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar
III – o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado.
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