Senso incomum

Como detectar mentiras e como comprar livros sem a parte ruim

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8 de abril de 2021, 8h00

Spacca
Hoje a coluna volta aos velhos tempos. Uma pausa. Pequena. Sim, porque depois de procuradores da república acostaram memoriais em processo de habeas corpus como se fossem "parte legitima" (aqui), parece que o Direito faz (fez) o seu canto de cisne.

Outro dia vi a propaganda de um curso sobre como detectar mentiras em processos. Como só vi o cartaz, penso que deve ser sobre a mentira de testemunha ou réu ou vítima.

Será que mentira do advogado, juiz e promotor está no pacote? Isso o ministrante não informa. Porém, como vou acreditar na promessa do ministrante? Ele está falando a verdade acerca das mentiras? Sugestão: um curso sobre como detectar mentiras em sentenças judiciais ou em livros jurídicos. Kelsen disse mesmo tal coisa? O garantismo é isso que dizem por aí? Positivismo é aplicar a letra da lei? Pois é. O problema é que não há cursinho: para detectar essas velhas mentiras, só recorrendo a algo já fora de moda chamado "livro".

Também outro dia vi propaganda de um livro (da área jurídica) no qual o autor quer separar o joio do trigo, deixando apenas o joio (o trigo ele acha ruim), algo como Direito sem as partes horríveis (ou algo desse nível). Ele quer vender Direito sem o Direito. De todo modo, reconheço que pode ser uma boa para o Brasil…

Chegou nas bancas outra novidade: a teoria hexadimensional do Direito. Ou hepta? Ou octadimensional? Vai saber. Algo como direito é norma, valor, pamprincípio, intenção, uma dose de facticidade, um pouco de cloroquina, uma boa dose de solipsismo, uma forte porção de realismo retrô, uma porçãozinha de bayesianismo…. Bom, quem sabe uma teoria decadimensional? Ou… Deixemos para lá.

E tudo vende. Tudo que for um modo de atravessamento e atalho… vende. É como remédio para emagrecer. Nada como continuar comendo tudo o que se gosta e, ao mesmo tempo, emagrecer… tomando o remédio milagroso. Coma tudo que quiser, fique parado em casa, mas tome essa pílula. É "batata", como dizem os antigos. O que atrapalha o Direito são as partes difíceis, chatas, complexas. Tiremos o trigo e fiquemos com o joio. É isso?

Nada como não precisar ler coisas complicadas. Fórmulas mágicas, esse é o caminho. Como detectar mentiras? Simples. Compre a fórmula da verdade. Multidimensional.

Outro dia vi também que robôs podem ajudar na formulação e separação das provas (ou algo assim). Claro, deixa para o robô. No EUA tem o projeto COMPAS, pelo qual, dia desses, um réu afrodescendente pegou uma pena bem mais alta que o normal. Escrevi um texto para um livro que sai em breve: "Algoritmos e Cálculo de Periculosidade — O Curioso Sistema de Pontos de Wisconsin".

O COMPAS, dizem, sofre de racismo. Ou é o robô. Já a Amazon descobriu que uma ferramenta de recrutamento de IA se "mostrou" preconceituosa contra as mulheres. Mas robôs são o futuro, insistem. Viva o admirável mundo dos algoritmos. Qual será o Grundrobô a programar os algoritmos? Mas claro, é o velho e ultrapassado Lenio Streck que não entende de inteligência artificial.

A inteligência é bem artificial mesmo. Porque, até agora, não me explicaram como um algoritmo vai ser capaz de dar conta daqueles que são os verdadeiros problemas: o vírus do livre convencimento, uma doutrina complacente que não doutrina, o velho realismo, conceitos jurídicos sem contexto sendo usados ad hoc pra servir de fundamento pra uma decisão já escolhida de antemão. Atiram a flecha e depois pintam o alvo. Assim, não erram. E põe o nome que quiser.

Tenho referido que o sucesso desses empreendimentos algoritmos é paradoxal. Se vence, perde. Mata(re)mos mais de dois mil anos de filosofia? Algoritmos rimam com epistemologia? Como a IA lida com aquilo que é condição para explicarmos o que compreendemos? Ou também já matamos a epistemologia?

Tenho conversado com meu amigo Arthur Ferreira Neto, maior especialista em metaética do Brasil. O não-cognitivismo ético (moral) avança. Perigosamente. Bom, todas as teorias positivistas são não-cognitivistas. Assim como o realismo jurídico ou o novo realismo 4.0 algorítmico é igualmente não-cognitivista. Por quê? Porque não considera haver critérios para aferir o certo ou o errado (para dizer o menos e não ingressar na discussão da verdade). O não-cognitivista é o sujeito que não se importa em separar joio e trigo. Na verdade, ele nem considera relevante que se separe joio e trigo. Não se trata sequer de dizer que não há fatos ou objetividade; é renunciar à própria discussão sobre se há ou não objetividade. É a postura do "pouco me importa". Recomendo o livro do Arthur. E o verbete no meu Dicionário.

Quando olhamos ao redor e nos deparamos com determinadas decisões e opiniões, chegamos à conclusão de que, na verdade, as duas coisas se confundem. Em Santa Catarina, um desembargador, contra a lei, concede pensão a ex-esposa porque ela cuidou do marido doente. Como ele finaliza o voto? Assim: "É como penso. É como voto." Isso é o que se chama de não-cognitivismo. Trata-se do não-cognitivismo jurídico — minha adaptação da discussão metaética para o campo do direito. Aliás, quem fala em viés cognitivo deveria examinar essa questão da metaética. Ou será que, entre joio e trigo, pouco importa separar joio e trigo?

A ver. Até lá, fico esperando o algoritmo para nos salvar em um sistema jurídico que sobrepõe à ordem legal subjetivismos emotivistas (lembremos da distopia de MacIntyre) de toda sorte a todo tempo.

O algoritmo até poderia funcionar para facilitar alguns procedimentos. O problema é que, no Brasil, não resolvemos até hoje a própria questão do procedimento! O algoritmo que reúne demandas repetitivas vai mesmo resolver o problema no país do livre convencimento? O algoritmo que faz distinguishing (faz?) vai resolver num país cujos "precedentes" (sic) nem caso concreto têm para fazer distinguishing? O cursinho facilitado vai ajudar num país que sacraliza o direito fundamental à livre contaminação na Páscoa?

A ver. Até lá, sigo nos meus velhos livros de papel. No meu "reacionarismo soft".

Uma palavrinha: No velho testamento tem a palavra "navah", que, segundo o professor Marco Antônio Gonçalves, pode ser traduzida como "dar existência a coisas que não existem".

Pois o Direito, cada vez mais, faz "navah". Logo vai aparecer o "princípio navah".

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