Stalking: o crime de perseguição ameaçadora
6 de abril de 2021, 21h19
O fenômeno da perseguição incessante, estudado pela Criminologia[1] há algum tempo, agora merece uma figura típica específica.
A palavra em inglês é utilizada na prática de caça, deriva do verbo stalk, que corresponde a perseguir incessantemente. No contexto de caça, inclusive, ocorre quando o predador persegue a presa de forma contínua.
Consiste em forma de violência na qual o sujeito invade repetidamente a esfera da vida privada da vítima, por meio da reiteração de atos de modo a restringir a sua liberdade ou atacar a sua privacidade ou reputação.
O resultado é um dano temporário ou permanente à integridade psicológica e emocional.
Os motivos dessa prática são os mais variados: violência doméstica, inveja, vingança, ódio ou a pretexto de brincadeira.
Há o emprego de táticas de perseguição diversas, a exemplo de ligações telefônicas, envio de mensagens por SMS, aplicativo ou email, publicação de fatos ou boatos, remessa de presentes, espera da passagem da vítima pelos lugares que frequenta, dentre outras.
Com o avanço da sociedade, cada vez mais hiperconectada, essa violência passou a ser concretizada também por meio virtual, pela internet. Daí chamar-se de cyberstalking a perseguição realizada por intermédio da internet, seja por redes sociais, emails, blogs etc.
Objeto jurídico
O crime está inserido no capítulo que protege a liberdade individual da vítima (liberdade da pessoa humana), bem jurídico de estatura constitucional (art. 5º) e convencional (art. 7º, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Objeto material
A conduta criminosa recai sobre a pessoa que sofre a perseguição.
Sujeitos do crime
O crime é bicomum, pois o legislador não exigiu nenhuma qualidade especial do criminoso ou da vítima. Porém, a pena será majorada da metade se a vítima for criança, adolescente, idoso ou mulher perseguida por razões da condição do sexo feminino (§ 1º).
Tipo Objetivo — perseguição ameaçadora
Pune-se a conduta de perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
Uma primeira interpretação, literal, permite concluir que a ameaça à integridade física ou psicológica seria apenas uma das formas de perseguição, juntamente com a restrição da capacidade de locomoção ou a invasão ou perturbação da liberdade ou privacidade. Todavia, essa leitura, além de desconsiderar a própria conceituação doutrinária de stalking (que pressupõe medo, não bastando simples inquietação por limitação de locomoção ou da liberdade ou privacidade), atacaria princípios basilares do Direito Penal, notadamente da lesividade, subsidiariedade, fragmentariedade e proporcionalidade, ampliando demasiadamente o espectro da norma, alcançando indevidamente a figura do detetive profissional, oficial de justiça, operador de telemarketing,[2] paparazzi ou até mesmo o galanteador em insistência amorosa.
A exegese que parece mais adequada é sistemática e teleológica. Haverá o crime apenas diante da perseguição reiterada que ameace a integridade física ou psicológica da vitima, quando (a) restrinja sua capacidade de locomoção ou (b) por qualquer outra forma, invada ou perturbe sua liberdade ou privacidade (cláusula de interpretação analógica).
O verbo principal é perseguir, no sentido de atormentar, importunar, ir atrás de maneira insistente. O agente pode ir ao encalço não apenas fisicamente, como virtualmente (rastreando por GPS, por ex.). E pode inclusive usar terceira pessoa para fazê-lo indiretamente. Mas não se trata de qualquer incômodo: integra o cerne da incriminação a ameaça à integridade física ou psicológica da vítima. Pela própria posição topográfica da norma (lado a lado com o delito de ameaça), essa perseguição deve conter, ainda que implicitamente, atos concretos ameaçadores. Evidentemente, não se cuida da intimidação exigida no art. 147 do CP, pois naquele caso a lei expressamente impõe que o mal seja injusto e grave.
Com efeito, a ameaça é o resultado esperado da conduta do perseguidor. Ainda que a vítima não tenha se sentido em risco, o crime se consuma se os meios utilizados pelo criminoso forem hábeis a atingir tal desiderato. Trata-se, portanto, de crime formal (ou de resultado cortado).
O legislador acabou demonstrando essa linha de raciocínio ao afirmar, nas discussões sobre o Proejto de Lei que culminou na comentada norma, o seguinte:
O novo tipo penal proposto supre uma lacuna em nossa legislação penal, que, embora criminalize o constrangimento ilegal e preveja como contravenção penal as condutas de perturbação do sossego alheio e perturbação da tranquilidade, não trata da perseguição reiterada que ameaça a integridade física ou psicológica da vítima, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.[3]
Em linha semelhante está a legislação e a doutrina internacional. A Convenção do Conselho da Europa Sobre a Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres e Violência Doméstica exigiu aos Estados signatários a criminalização do stalking, da seguinte forma:
Artigo 34: As Partes devem tomar as medidas legislativas ou outras necessárias para garantir que a conduta intencional de repetidamente se envolver em conduta ameaçadora dirigida a outra pessoa, fazendo-a temer por sua segurança, seja criminalizada.
Em sentido parecido, o The Violence Against Women Act, dos EUA:
O termo stalking significa se envolver em um curso de conduta dirigido a uma pessoa específica que causaria a uma pessoa razoável (A) medo por sua segurança ou pela segurança de outras pessoas; ou (B) sofrimento emocional substancial.
Existem estudiosos assim se manifestando:
Sem medo, o comportamento pode ser qualificado como assédio, mas não como crime de perseguição. Permitir definições neutras ao medo resultaria na (sobre) criminalização de comportamentos irritantes, violando assim o princípio ultimo ratio (criminalização como medida de último recurso). (…) Na Polônia a perseguição deveria ter gerado na vítima “medo razoável” ou “violou significativamente a sua paz”. Na Itália, a perseguição (…) deve ter resultado em medo razoável pela segurança da vítima ou pela segurança de seus parentes (…) Nos Estados Unidos, mais e mais estados objetivaram esse elemento ao introduzir o padrão de pessoa razoável. Não é mais relevante se a vítima realmente sofreu um certo nível de medo – isso não precisa ser estabelecido em tribunal – mas se uma pessoa razoável teria sofrido estresse emocional por causa da conduta repetitiva.[4]
Stalking é o comportamento de quem (stalker ou “caçador à espreita”) molesta um sujeito (vítima) por meio de atos persecutórios e/ou intimidadores, de forma obsessivamente repetitiva, deixando a vítima em estado de alerta e relevante preocupação, quando não em profunda angústia.[5]
Sabendo que há prevalência do stalking em vítimas do sexo feminino,[6] importante usar como vetor interpretativo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará):
Artigo 7. Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: (…)
d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade;
O que o agente faz, portanto, não é apenas incomodar a vítima, mas deixá-la sob seu controle, subjugá-la, para que sinta constante ansiedade e medo (angústia e temor), como expressamente consignado nas legislações australiana, norte-americana, portuguesa, irlandesa, holandesa, dentre outras. O stalking afeta a formação de vontade da vítima e atinge suas decisões e comportamentos, a levando a mudar seus hábitos, horários, trajetos, número de telefone, email e até mesmo local de residência e trabalho; degrada suas condições de vida. Daí legislações estrangeiras usarem nos tipos penais termos como alterar seus hábitos de vida (Itália) ou prejudicar sua liberdade de determinação (Portugal).
Vale destacar que, para praticar o delito por meio da restrição da capacidade de locomoção da vítima, não se exige a efetiva privação de seu direito de ir e vir (ex: trancar dentro do carro) – como expressamente demandado no art. 148 do CP –, bastando a limitação desse direito (ex: seguir ostensivamente, fazendo com que a vítima circule menos na via pública). Também pode cometer o crime por intermédio da invasão ou perturbação de outras liberdades (distintas da livre locomoção – a exemplo daquelas amparadas no art. 5º da CF), como a religiosa (atrapalhando seu culto) ou profissional (importunando seu local de trabalho). Ou ainda invadindo ou perturbando sua privacidade, gênero do qual são espécies a vida privada, intimidade, honra e imagem (art. 5º, X da CF). Em todos os casos, a restrição à locomoção, liberdade ou privacidade deve se dar de forma efetiva ou potencialmente perigosa à integridade da vítima.
Tipo Objetivo — habitualidade, binômio quantidade-intensidade, e ação livre
Ao fazer uso do termo reiteradamente, o legislador não deixa dúvidas de que o crime demanda habitualidade, por mais que isso não indique um verdadeiro estilo de vida do autor do fato. Mesmo que se trate de um crime habitual sui generis, o resultado prático é que um único ato de importunação não tem o condão de configurar o delito em estudo, embora, em tese, possa subsistir o crime de ameaça (art. 147, caput do CP), que funcionará como um soldado de reserva (princípio da subsidiariedade) caso se comprove que a conduta visava causar um mal injusto e grave. A repetição não precisa necessariamente se dar pelo mesmo meio executório.
A lei penal não estabeleceu uma quantidade mínima de atos, bastando que não seja único. Nesse sentido, mais do que o número mínimo de ações persecutórias (se 2 ou 3), o importante é sua intensidade. Ilustrativamente, pratica o delito com 2 atos aquele que, depois de perseguir a vítima por 8 horas com olhares ameaçadores, volta a cercá-la, criando odioso e intolerável cenário de ansiedade e medo; e não comete o crime aquele que envia 3 mensagens repetindo texto dúbio como “vai ser melhor para você se aceitar me encontrar”. Para a configuração do crime de stalking é preciso, portanto, a presença do binômio (a) quantidade e (b) intensidade.
O tipo penal contém a expressão por qualquer meio, indicando que o crime é de ação livre, admitindo sua prática pelas mais variadas formas: ligações telefônicas, envio de mensagens, espera de passagem da vítima pelos lugares que frequenta, perseguição à pé ou motorizada pelo trajeto da vítima, dentre outras. Contudo, como se trata de crime de dano, é indispensável a demonstração desses atos concretos de ameaça por parte do stalkeador, aptos a violarem a liberdade individual da vítima, o que não se presume pela mera presença do agente, tampouco por frequentarem um mesmo local.
Elemento subjetivo
O crime é punido a título de dolo. O legislador não exigiu nenhuma finalidade específica animando a conduta do agente, tampouco previu a modalidade culposa.
Consumação e tentativa
O crime é habitual, aperfeiçoando-se com a reiteração dos atos de perseguição. A tentativa não é admitida em virtude da natureza do delito (habitual).
Sanção penal
A pena cominada ao delito é de reclusão, de seis meses a dois anos e multa. Aplicam-se institutos e o procedimento da Lei 9.099/95: trata-se de infração de menor potencial ofensivo (artigo 61), que admite a transação penal (artigo 76) e permite a suspensão condicional do processo (artigo 89), e que adota o procedimento sumaríssimo (artigo 77 e seguintes). Se praticado na modalidade majorada por violência doméstica contra a mulher, não se aplicam tais institutos despenalizadores, por força do artigo 41 da Lei 11.340/06. Não cabe acordo de não persecução penal, pois o delito admite transação penal, podendo ainda incidir as proibições de crime habitual ou praticado com violência doméstica (artigo 28-A, §2º, do CPP).
Incidindo uma das causas de aumento da pena (§ 1º), a pena máxima faz com que o crime saia do patamar de infração de menor potencial ofensivo.
Se o crime for praticado com o emprego de violência, o agente responderá pelo crime de perseguição (art. 147-A) em concurso formal impróprio com o crime violento (lesão corporal, homicídio, etc.), somando-se as penas de ambos os delitos, pois o legislador acolheu expressamente o sistema do cúmulo material obrigatório (§2º).
Causas de aumento de pena
A pena aumenta-se da metade quando a infração for praticada (§ 1º):
a) contra criança, adolescente ou idoso: nestes casos, sequer há necessidade de o crime estar inserido em contexto de violência doméstica ou familiar ou de violência de gênero. Poderia o legislador ter avançado mais e previsto tal majorante na proteção de pessoa com deficiência, se a intenção é proteger aqueles em situação de maior vulnerabilidade (o que foi feito nas majorantes e qualificadoras dos arts. 121, 122, 129, 140, 141, 149-A, 171, 203, 207, 217-A, 218-B e 234-A).
b) contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código: só há incidência do aumento quando exista violência doméstica e familiar, ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher, na esteira da fórmula do feminicídio.
c) mediante concurso de 2 ou mais pessoas ou com o emprego de arma: no caso do concurso de 2 ou mais pessoas, importante destacar que o crime só se aperfeiçoará se os agentes praticarem atos de perseguição de forma ameaçadora, sendo que a ameaça não decorre simplesmente da superioridade numérica. Em outras palavras, ausente qualquer evidência concreta de ameaça, o mero número de agentes envolvidos no evento sequer tem o condão de representar ameaça à integridade física ou psicológica da vítima. Esse mesmo raciocínio impede que o furto praticado em concurso de agentes se transforme em roubo, sob o falso argumento de que a quantidade de agentes induz maior temor à vítima[7]. Por fim, quanto ao emprego de arma, note-se que o legislador não fez qualquer restrição (diferentemente do art. 157, §2º-A, I do CP), abrangendo tanto a arma branca quanto a arma de fogo (seja de uso permitido, restrito ou proibido).
Revogação da contravenção penal de perturbação da tranquilidade, abolitio criminis e princípio da continuidade normativo-típica
Criticamos a opção legislativa (art. 3º da Lei 14.132/21) de revogar expressamente a contravenção penal de perturbação da tranquilidade (art. 65 da Lei de Contravenções Penais), que punia a conduta de molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável. Melhor teria sido manter o dispositivo intacto para abranger condutas menos lesivas mas ainda assim extremamente prejudiciais às vítimas, evitando que um único ato de perseguição seja considerado atípico. Afinal, a conduta do art. 65 da LCP não demandava habitualidade, tampouco ameaça concreta à integridade física ou psicológica da vítima, e serviria como degrau de tipicidade penal para evitar a completa ausência de proteção da vítima pelo Direito Penal.[8]
Considerando que o tipo penal do art. 65 da LCP era muito mais abrangente que o novo art. 147-A do CP, é possível cogitar 2 hipóteses com consequências distintas no caso de agente condenado pela contravenção penal de perturbação da tranquilidade:
a) se a conduta do agente se ajustar ao novo crime de perseguição, por ter praticado condutas reiteradas e ameaçadoras em desfavor da vítima, não há que se falar em abolitio criminis, mas em aplicação do princípio da continuidade normativo-típica, de sorte que os efeitos da sentença condenatória pela prática da contravenção penal permanecem.
b) se a conduta do agente não se amoldar ao novo tipo penal de stalking, pois a perseguição se deu uma única vez, é inegável a ocorrência da abolitio criminis, acarretando a extinção da punibilidade do agente, cessando a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.
Concurso de crimes e conflito de leis penais
Falsa identidade
No caso de utilização de perfis falsos para a prática delituosa, o agente responderá pelo crime do art. 147-A em concurso com o art. 307 do CP, pois não é necessário que todo stalkeador encubra sua identidade, ou seja, a falsa identidade não deve ser considerada ante factum impunível do referido delito, já que não é meio de execução ordinário do crime de perseguição.
Invasão de dispositivo informático
Se houver cyberstalking com o perseguidor agindo pela internet, e não se limitar a mandar mensagens, mas hackear o celular ou computador da vítima, violando indevidamente mecanismo de segurança para obter, adulterar ou destruir dados sem autorização, ou instalando vulnerabilidades para obter vantagem ilícita, incide nas penas do art. 154-A em concurso formal ou material, a depender do caso concreto, com o art. 147-A do CP, não se falando em absorção dada a proteção de bens jurídicos distintos e o fato da invasão do dispositivo não ser meio necessário para concretizar uma perseguição.
Revenge porn
Se o intimidador enviar mensagens ou perseguir pessoalmente informando que registrou fotos ou vídeos de nudez da vítima, ou as divulgou, aplica-se também o delito do art. 216-B ou art. 218-C do CP, respectivamente, em concurso formal ou material, a depender do caso concreto, não havendo consunção em razão da tutela de interesses distintos e de a vingança pornográfica não ser meio necessário para concretizar uma perseguição.
Arma de fogo
Se o crime de perseguição for praticado com o emprego de arma de fogo, algumas situações podem ser vislumbradas:
a) se o agente possuir porte de arma, responderá apenas pelo crime de perseguição, incidindo a causa de aumento de pena (art. 147-A, § 1º, III do CP);
b) se o agente não possuir porte de arma de fogo, mas a utilizar única e exclusivamente para perseguir a vítima, responderá apenas pelo crime de perseguição majorado (art. 147-A, § 1º, III do CP). O crime de porte ilegal de arma de fogo fica absorvido (princípio da consunção), sendo considerado meio para a prática do crime fim.
c) se o agente portar ilegalmente a arma de fogo em contexto fático distinto, seja antes de iniciar as investidas em desfavor da vítima ou depois da perseguição, responderá pelo crime do art. 147-A, caput, em concurso material com o crime do Estatuto do Desarmamento (art. 14 ou 16, conforme o caso). Não se cogita da majorante do crime de perseguição nessa hipótese para evitar o bis in idem.
Descumprimento à medida protetiva de urgência
Quando a perseguição caracterizar ato de não obedecer à medida protetiva de urgência, haverá concurso material entre a perseguição majorada – contra mulher por razões da condição de sexo feminino (art. 147-A, § 1º, II do CP) e o descumprimento de medida protetiva de urgência (art. 24-A da Lei Maria da Penha). Por mais que o stalking tenha pena maior, o que pode justificar a opção de alguns pela absorção, há outro fator que permite a cumulação: os bens jurídicos tutelados não são afins. No artigo 24-A da Lei 11.340/06 protege-se a administração da Justiça, ao passo que no novo art. 147-A, tutela-se a liberdade pessoal da vítima. O cúmulo material parece a melhor interpretação.
Se a perseguição se der por descumprimento de medidas de proteção ao idoso (art. 45 da Lei 10.741/03) ou criança ou adolescente (art. 101 do ECA), a perseguição majorada (art. 147-A, § 1º, II do CP) não será cumulada com outro delito, seja porque inexiste previsão típica de crime específico, seja porque não se aplica o crime de desobediência (art. 330 do CP) quando o agente desatende a ordem e existe lei prevendo sanção não penal para esse descumprimento sem ressalvar a sanção criminal,[9] cabendo a decretação da prisão preventiva (art. 313, III do CPP).
Ação penal
O crime é de ação penal pública condicionada à representação (§ 3º), ainda que seja praticado no contexto de violência doméstica contra a mulher, pois o legislador não fez qualquer ressalva. Nessa hipótese, contudo, não se aplicam os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, por força do art. 41 da Lei 11.340/06.
Suplantado o prazo decadencial de 6 meses sem manifestação da vítima ou de seu representante legal, opera-se a extinção da punibilidade do agente (art. 107, IV do CP). Por óbvio, a utilização de perfil falso por parte do sujeito ativo impede o transcurso do prazo decadencial, que só começa a correr quando descoberta a identidade do stalkeador (art. 38 do CPP).
Competência e atribuição
Em regra, o crime será processado e julgado pela Justiça Estadual, e investigado pela Polícia Civil. No entanto, poderá atrair a competência da Justiça Federal e a atribuição da Polícia Federal, por exemplo quando praticado pela internet e estando configurada a transnacionalidade (arts. 109, V e 144, §1º, I da CF)[10], ou quando a vítima for servidor público federal no exercício de suas funções (art. 109, IV e 144, §1º, I da CF)[11].
O delito será investigado pela Polícia Federal (embora sem atrair necessariamente a competência para a Justiça Federal) quando gerar repercussão interestadual ou internacional e exigir repressão uniforme, e for praticado contra mulher, especialmente se com misoginia pela internet (art. 1º, III e VII da Lei 10.446/02 e art. 144, §1º, I da CF).
Aspectos processuais
Como a pena máxima do crime não ultrapassa o patamar de 4 anos demandado pelo art. 313, I do CPP, numa primeira análise não cabe a prisão preventiva. Todavia, como se sabe que a perseguição tem como vítima preferencial a mulher, nesse caso (e também quando praticada contra criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência) a custódia cautelar pode ser imposta com fundamento no art. 313, III do CPP.
Se o caso concreto não recomendar o encarceramento provisório, é possível a imposição de medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP) ou medidas de proteção à mulher (arts. 22 a 24 da Lei Maria da Penha), ao idoso (art. 45 do Estatuto do Idoso) ou criança ou adolescente (art. 101 do ECA).
Quanto aos meios de obtenção de prova, cabe interceptação telefônica (que exige pena de reclusão – art. 2º, III da Lei 9.296/96), mas não captação ambiental (que demanda pena máxima superior a 4 anos – art. 8-A, II da Lei 9.296/96).
É possível a quebra de sigilo de dados de localização para identificar o perseguidor ou comprovar sua importunação, seja por dados de operadoras de telefonia[12] ou de provedores de internet.[13]
[1] FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Criminologia. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 343.
[2] Valendo grifar que a pessoa jurídica não responde penalmente, pois os arts. 173, §5º e 225, §3º da CF admitem apenas essa responsabilidade penal em crimes financeiros e ambientais, estando só a 2ª hipótese regulada pela Lei 9.605/98.
[3] Parecer no Senado Federal ao Projeto de Lei 1.369/19, Rel. Senador Rodrigo Cunha.
[4] VAN DER AA, Suzan. New Trends in the Criminalization of Stalking in the EU Member States. In: Eur J Crim Policy Res 24, 315–333 (2018).
[5] MAZZOLA, Marcello Adriano. I nuovi danni. Dott. Antonio Miliani, 2008, p. 1047.
[6] SPITZBERG, Brian; CUPACH, William. The State of the Art of Stalking: Taking Stock of the Emerging Literature. Aggression and Violent Behavior, v. 12, n. 1, p. 64-86, 2007; FLATLEY, John; et al. Crime in England and Wales: findings from the British Crime Survey and police recorded crime. London: Home Office, 2010; MATOS, Marlene; et al. Inquérito de Vitimação por Stalking: Relatório de Investigação. Braga: Grupo de Investigação sobre Stalking em Portugal, 2011; BAUM, Katrina; et al. Stalking Victimization in the United States. National Crime Victimization Survey. Washington, DC: U.S. Department of Justice, 2009. p. 1-16; LAGARDE, Marcela. El género, fragmento literal: La perspectiva de género. In: LAGARDE, Marcela. Género y feminism. Desarollo humano y democracia. Espanha: Ed. Horas y HORAS, 1996. p. 13-38.
[7] STJ, HC 147.622, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 09/03/2010.
[8] Escala de proteção penal que existe, por exemplo, nos crimes sexuais, que punem a conduta mais grave de estupro (art. 213 do CP) e a menos grave de importunação sexual (art. 215-A do CP, que substituiu a revogada contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor – art. 61 da LCP).
[9] STJ, REsp 1.374.653, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 11/03/2014.
[10] STJ, CC 150.712, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJ 10/10/2018.
[11] Súmula 147 do STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função.
[12] STJ, HC 247.331, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 03/09/2014.
[13] STJ, RMS 60.698, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJ 26/08/2020.
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