Opinião

A revogação do artigo 65 da LCP pela Lei 14.132 criou uma abolitio criminis?

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  • é advogada vice-presidente da ABMCJ/Nacional conselheira de notório saber do CNDM doutora em Direito pela PUC-SP e autora do livro Lei Maria da Penha 2021 ed. Tirant do Brasil.

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  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) pós-doutor em Criminologia pela Monash University e professor associado do PPGD UniCEUB.

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5 de abril de 2021, 17h04

A conduta de "perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade" passou a ser crime com o advento da Lei 14.132, do último dia 31, que inseriu no Código Penal o artigo 147-A. A pena é de reclusão de seis meses a dois anos e multa.

Além de criar um novo tipo penal, a lei anteriormente citada revogou expressamente o artigo 65 da Lei das Contravenções Penais (LCP), cuja redação era a seguinte:

"Artigo 65 — Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena
 prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa".

A revogação do artigo 65 da LCP não significa, no entanto, que tenha havido abolitio criminis para todas as situações que estavam previstas na contravenção penal. A abolitio criminis não está atrelada ao simples fato de ter havido a revogação de um dispositivo penal. Faz-se necessário analisar se há ausência de continuidade do tipo de ilícito em confronto com o ordenamento jurídico-penal. Ou seja, se uma conduta estava prevista no tipo A e este é revogado, mas no mesmo momento (sem solução de continuidade) ela segue tipificada no novo tipo B, não houve abolitio criminis, mas continuidade normativo-típica. A abolitio criminis não se confunde com a continuidade normativo-típica. "Enquanto aquela exprime o desejo do legislador de não mais criminalizar determinada conduta (como aconteceu com o adultério), nessa o caráter criminoso do fato é mantido, mas apenas em outro dispositivo penal (foi o que se deu com o atentado violento ao pudor, que estava previsto no artigo 214 do Código Penal, e que foi deslocado para o artigo anterior, o qual prevê o estupro). Ocorre aqui uma simples alteração topográfica do delito" [1].

Portanto, o que deve ser analisado é se determinada conduta que era alcançada pela previsão do artigo 65 da LCP continua sendo ou não tipificada no novo artigo 147-A do CP. A resposta a tal questão depende de alguns fatores. A principal distinção entre os dois dispositivos penais é a inclusão, na nova lei, da exigência de que a conduta se dê de forma reiterada. Na contravenção penal do artigo 65 um único ato de perturbação por acinte ou motivo reprovável já poderia, em tese, configurar a contravenção. Por exemplo, ficar esperando a vítima na porta de seu trabalho, uma única vez, num contexto claro de perseguição. Casos como esse estão alcançados pela abolitio criminis. Contudo, não se pode desconsiderar que segmento da doutrina e jurisprudência exigiam a reiteração para a configuração da infração penal da LCP, artigo 65, apesar desta não trazer expressamente tal elemento na sua descrição típica.

O novo tipo penal é de conduta variada, prevendo em seu enquadramento típico três modalidades alternativas, além da perseguição reiterada por qualquer meio: 1) ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica; 2) restringindo-lhe a capacidade de locomoção; ou 3) de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. O uso da conjunção alternativa "ou" é essencial para a interpretação dessa tríplice possibilidade de incriminação.

Esta última figura típica ("de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade") guarda semelhança com a revogada contravenção penal do artigo 65 ("molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável"). Ou seja: "perturbar sua esfera de liberdade" e "perturbar-lhe a tranquilidade" são expressões que alcançam a mesma dimensão fática do injusto, pois a tranquilidade é um dos aspectos da liberdade e perseguir pode ser uma das diversas formas de se perturbar a tranquilidade. O bem jurídico tutelado, antes e agora, é o mesmo e não houve redução do juízo de desvalor abstrato sobre este tipo de conduta (ao contrário, agravou-se). Note-se que a nova lei utiliza a expressão "de qualquer forma", o que significa que o programa normativo engloba diversas formas de conduta, como contatos telefônicos, por internet, por pessoa interposta, ou presenciais. Ou seja, a perseguição não é apenas física, abrange também condutas de importunação e incômodo constantes.

Vê-se, assim, que a nova lei, ao tempo em que alargou o âmbito qualitativo (uma perseguição que gere ataques à liberdade, não apenas à tranquilidade), exigiu uma intensidade quantitativa maior (não basta um único episódio, é necessário que seja reiteradamente). Portanto, como já dito, para as condutas antigas de perturbação da tranquilidade que foram praticadas de forma reiterada, com acinte e motivo reprovável, e que tenham gerado uma perturbação da esfera de liberdade ou privacidade da vitima, não há que se falar em abolitio criminis.

Convém lembrar que no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher essas perturbações reiteradas eram relativamente comuns. Assim não houve abolitio criminis quanto às condutas de ligações telefônicas ou mensagens reiteradas, ou ainda de perseguição pessoal reiterada, como ir diversas vezes à casa da vítima, ou ao seu trabalho, ou ainda caminhar em seu encalço em locais públicos.

Ademais, o novo crime também se aplica fora do contexto de violência doméstica, como no caso do stalking pelo "admirador" não correspondido, que nada mais é que uma forma de assédio sexual que se insere no continuum de violências de gênero experimentadas pelas mulheres, cujo ápice é o feminicídio. Nesse sentido, "o stalking deve ser analisado sob a perspectiva de gênero, tanto porque a 'cultura do estupro', termo que segundo a ONU é utilizado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens, indica que, na visão popular, a mulher se coloca como 'disponível', quando adota determinados comportamentos, como também porque os valores da autoridade masculina, numa sociedade ainda patriarcal, 'permitem' que homens se sintam menosprezados diante da negativa da mulher" [2].

Ainda é importante ressaltar que a novatio legis abrange novas situações, antes não previstas na já revogada contravenção penal. Por exemplo, a conduta de injúria reiterada (muito comum no contexto das redes sociais) pode agora ser vista como uma forma de perseguição que gera invasão ou perturbação à esfera de privacidade (o cyberstalking). Da mesma forma, ameaças reiteradas, em continuidade delitiva, passam a configurar o novo crime de perseguição, por disposição legal expressa ("ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica").

Uma questão que continuará sendo objeto de análise da doutrina e da jurisprudência refere-se ao problema de avaliar e definir qual seria a frequência dos contatos para se configurar uma ação "reiterada". Várias vezes em um único dia? Todo dia durante uma semana? Uma vez por semana durante um prazo significativo de tempo? E se for uma vez por mês durante um ano? As respostas exigirão um necessário refinamento da dogmática penal, mas já se adianta o posicionamento de que seriam necessários ao menos três episódios com alguma conexão de proximidade ou frequência que permita sua leitura como um ato continuado de perseguição.

Dentro dessa problemática de se definir a frequência dos atos que configurariam a sua reiteração, quando se trata de violência doméstica e familiar será necessária uma maior e mais aprofundada análise do contexto de violência para reenquadrar condutas aparentemente isoladas de perseguição, inserindo-as num conjunto de outros atos de violência doméstica persecutória, principalmente em relação àqueles entendidos como de violência psicológica. Ademais, haverá necessidade de se conhecer todo o histórico da violência, quando começou, como se dá, e compreender o comportamento do agressor em todos os seus detalhes. Ainda assim, inúmeros atos de perseguição isolada ficarão sem correspondência criminal por conta da já mencionada revogação expressa do artigo 65 da Lei de Contravenção Penal.

As questões acima explicitadas devem ser objeto de análise também quando da concessão de pedidos de medidas protetivas de urgência, em razão de nova tipificação ser mais restritiva. A análise dos pedidos de Ministério Público da União exigirá dos juízes uma maior abertura para a possibilidade de sua concessão para atos de violência psicológica sem correspondência criminal, nos termos do artigo 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha.

Mais uma questão importante a ser analisada: o novo tipo penal prevê uma pena mais gravosa, tendo havido, portanto, uma novatio legis in pejus. Em face disso, aos casos ocorridos antes da nova lei, mantêm-se a pena prevista para a contravenção penal (prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa) por ser mais benéfica. Há, portanto, a ultra-atividade da pena antiga, derivada da proibição de retroatividade da nova lei mais gravosa. Foi o que aconteceu com a criação do crime de estupro de vulnerável, que antes era previsto no artigo 213 c/c artigo 224, alínea "a", ambos do CP, e posteriormente foi transplantado para o novo artigo 217-A. Não houve abolitio criminis, pois a conduta continuou sendo prevista no ordenamento jurídico, ainda que com o uso de expressões normativas distintas, aplicando-se a pena do tipo antigo, mais branda, às condutas praticadas sob sua vigência.

A Lei nº 14.132/2021 trouxe mais uma novidade ao exigir a representação para a ação penal pelo crime de perseguição. Em razão de tal mudança, ainda que haja continuidade normativa na tipificação de uma conduta de perturbação reiterada, essa parte do dispositivo, por ser mais benéfica, deve ser aplicada de forma retroativa às investigações criminais em curso. Caso semelhante ocorreu com a edição da Lei n° 13.964/2019 (conhecida como pacote "anticrime"), que condicionou à representação o crime de estelionato. A jurisprudência está dividida sobre o tema, com precedentes da 1ª Turma do STF (HC 187341 e HC 190683) e da 5ª Turma do STJ (RHC 139715, AgRg PET ARESP 1649986) entendendo que a exigência de representação apenas se aplica às investigações em curso no momento da vigência da nova lei, sendo, todavia, dispensável no caso de haver ajuizamento da denúncia, ao argumento de que a representação seria uma condição de procedibilidade à ação penal, e não uma condição de prosseguibilidade, posterior ao ajuizamento. Ou seja, a denúncia ajuizada de acordo com as regras daquele momento processual seria um ato jurídico perfeito, não havendo legislação específica exigindo representação superveniente. Todavia, a 6ª Turma do STJ possui precedentes entendendo que a exigência de representação se aplica retroativamente aos processos em curso sem trânsito em julgado (AgRg RHC 140917, HC 583837), estando o tema pendente de uniformização no STJ.

Em nosso entendimento, a primeira corrente é a mais acertada. Portanto, para as investigações penais em curso pela contravenção penal de perturbação da tranquilidade, praticada na forma de perseguição reiterada que perturba a liberdade ou privacidade da vítima, será necessário intimar a vítima para que esta apresente a representação, caso não tenha indicado tal manifestação de vontade expressa ou tácita no momento do registro da ocorrência policial. O termo inicial do prazo decadencial de seis meses será a data da vigência da novatio legis (1º de abril de 2021). Todavia, para as ações penais ajuizadas antes da Lei n° 14.132/2021, será desnecessária a representação. Vale registrar que se a vítima voluntariamente comunicou os atos de perseguição reiterada e solicitou providências à autoridade policial, já há a representação, por ausência de necessidade de rigor formal (nesse sentido, v. STJ, HC 618235). No mesmo sentido é a posição de Rogério Sanches [3]. Convém ao Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial, expedir recomendação à polícia civil para zelar pela intimação para representação no curso das investigações.

Tendo em vista o conteúdo do novo tipo penal, é de suma importância que, já nos atendimentos policiais e das equipes multidisciplinares que envolvam casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, seja questionado e investigado sobre a eventual existência de condutas que configuram o novo tipo penal, especialmente esclarecendo os impactos que a perseguição teve sobre a mulher (medo de sair na rua sozinha, ansiedade, vergonha da exposição etc.).

Essa especial atenção nos casos de violência doméstica e familiar decorre do fato de que o novo tipo penal pode, em muitos casos, servir como forma de prevenção de crimes ainda mais graves, como o feminicídio. Estudos apontam que atos de perseguição são um grave fator de risco de feminicídio, mesmo quando isolado de outros fatores [4]. Em casos de perseguição, a pronta intervenção estatal, com devida concessão das medidas protetivas de urgência e a responsabilização criminal, pode servir de desestímulo à progressão criminal. A responsabilização é um relevante instrumento comunicativo da presença do Estado na proteção à mulher, de inaceitabilidade dos comportamentos de posse e coisificação. Não se está aqui endossando uma deriva punitivista, já que o acento primeiro deve continuar sendo nas políticas públicas de prevenção, conforme a visão holista prevista na Lei Maria da Penha. O que se sustenta é que a elevação das penas do stalking (que deixa de ser mera contravenção e passa a constituir crime) possui proporcionalidade com a reprovabilidade do injusto, diante da elevadíssima gravidade dos seus impactos na saúde psicológica da vítima e em seu direito fundamental a uma vida livre de violência. Todavia, a mera e isolada abordagem punitiva, dissociada da pronta concessão das medidas protetivas e de sua integração em uma rede de serviços de apoio à mulher, devidamente estruturada e integrada, provavelmente não será suficiente para evitar a escalada da violência feminicida.

 


[1] GOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice e DAHER, Flávio. Curso de direito penal 1: parte geral (artigos 1º a 120). 2. ed. Salvador: Juspodvm, 2016, p. 150.

[2] BIANCHINI, Alice; BAZZO; Mariana Seifert; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 109.

[3] SANCHES, Rogério. Lei 14.132/21: insere no Código Penal o artigo 147-A para tipificar o crime de perseguição. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/04/01/lei-14-13221-insere-no-codigo-penal-o-art-147-para-tipificar-o-crime-de-perseguicao/.

[4] NICHOLLS, Tonia L. et al. Risk assessment in intimate partner violence: a systematic review of contemporary approaches. Partner Abuse, v. 4, n° 1, p. 1-86, 2013.

Autores

  • é advogada, vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada (CNMA-OAB), vice-presidente da ABMCJ/Nacional e doutora em Direito pela PUC-SP.

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT), pós-doutor em Criminologia pela Monash University e professor associado do PPGD UniCEUB.

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