Carrefour oferece à viúva de Beto Freitas mesmo valor a vira-lata, dizem advogados
1 de abril de 2021, 14h36
*originalmente publicado pela Educafro
Quem escreve esta carta são os advogados da ex-companheira de João Alberto Silveira Freitas (Nego Beto) Milena Alves e sua filha, Stephanye, enteada dele, e pelo advogado do senhor João Batista, pai de João Alberto. Aproxima-se a Sexta-feira da Paixão, onde a morte injusta do Beto traz à tona todas as denúncias contra o poder econômico provindas com a morte de Cristo, queremos prestar contas à sociedade sobre o que andou e o que ainda está em ritmo lento. Queremos justiça!
As elites brasileiras parecem ter um hábito e um prazer mórbido e sadomasoquista secular, de pôr uma pedra sobre o nosso passado de servidão, sofrimento, castigos e holocausto dentro e fora dos navios negreiros. A dor da família do Nego Beto não é diferente dos afro-brasileiros oriundos da mãe África e castigados brutalmente pelos seus senhores brancos. A força que nos permite continuar lutando para que a voz de nosso povo jamais seja amordaçada novamente. Caro leitor, vale lembrar que o Brasil é o país com a maior população negra fora da África (56,2% de afro-brasileiros, negros e pardos).
Apoiamos integralmente a busca de indenização contra o Carrefour, por parte da sociedade. Entendemos que essa morte feriu todo o povo afro-brasileiro e não pode ficar sem uma punição à altura, para fazer mudar a cultura das empresas e do poder econômico brasileiro, em relação ao povo afro-brasileiro.
Primeiro, cabe relembrar que Beto, homem negro, foi brutalmente surrado e assassinado na noite do dia 19/11/2020, às vésperas do Dia da Consciência Negra, dentro de hipermercado Carrefour [Porto Alegre] pelos funcionários da empresa de segurança terceirizada Vector Segurança Patrimonial Ltda. Uma sequência infindável de socos, pontapés e asfixia despendidos por causa da sua cor o levaram a morte no local. Tudo isso, foi acompanhado pelos olhares incrédulos da Milena, impedida de prestar socorro pelos demais funcionários que presenciavam o ocorrido. No próximo dia 19 de abril, completaremos seis meses dessa tortura e barbárie.
O intuito central no patrocínio desta causa, além dos interesses da família, no caso, Milena, Stephanye e sogros, é de que, ao final, a morte do Beto sirva como um divisor de águas, ampliando a consciência e o combate ao racismo estrutural.
Passados alguns meses desde a morte dele, após algumas reuniões com o corpo jurídico do Carrefour, sentimo-nos conquistando pouco avanços, lutando contra um sistema engessado, que além de ser voltado para os poderosos, é racista, hipócrita e capitalista.
Vale lembrar que nesse sistema capitalista, o Carrefour S/A comprou Big por R$ 7,5 bilhões. Com a transação, o conglomerado passa a responder por um faturamento de R$ 100 bilhões, somando os R$ 74,9 bilhões do Carrefour, no ano de 2020, com R$ 24,9 bilhões do Big. Fica aqui uma pergunta para os acionistas dessa operação. Quanto vale a vida de um afro-brasileiro?
Cabe ressaltar que, caso Nego Beto fosse um indivíduo caucasiano, de pele branca e olhos claros, não negro, não pobre e não excluído, como de fato era, estaria vivo e jamais teria sofrido uma morte destas: covarde, violenta e brutal.
O racismo, em especial no Brasil, é uma realidade viva, não uma ficção ou um tema filosófico ou de "esquerda". Milhares de pessoas negras morrem apenas pela sua cor de pele, porque o policial "achou" que o menino ia sacar uma arma — mas, na verdade, era um celular — ou porque o policial o "confundiu" com um suspeito fugindo — mas, na verdade, estava brincando de correr.
Você já ouviu essa expressão? "Preto parado é suspeito, e correndo é ladrão". Assim, não se discute que o pré conceito está gravado no DNA da branquitude, que, ao olhar uma pessoa negra, o mesmo se torna suspeito, bandido, ou não goza do benefício da dúvida que os brancos possuem de forma natural. O negro por sua cor, já vem condenado desde o nascimento. Essa mesma condenação aconteceu com o Beto, morto pela ignorância, soberba e preconceito de uma sociedade racista e estruturalmente preconceituosa.
O racismo também é tema dentro do Poder Judiciário. A juíza federal, Adriana Cruz, que é negra, relata um cotidiano curioso: "Às vezes percebo um certo espanto por parte de alguns advogados, quanto entram na sala de audiência e deparam comigo. Acho que a expectativa inconsciente é de encontrar uma juíza branca" . Não podemos esquecer que no Congresso Nacional, só 17,8% dos parlamentares são negros. Câmara e Senado têm 106 das 594 cadeiras ocupadas por pretos e pardos; brancos são maioria nas duas Casas. Fica a pergunta. Como podemos ter Políticas Públicas Efetivas contra o Racismo Estrutural e aplicação das leis: 12.990, 12.288 e 12.711?
Sentimos exatamente isso nos contatos que viemos realizando com a rede Carrefour, a maior rede mundial de comércio de alimentos. Esta rede, numa atitude de soberba, e ainda como se fosse a dona do destino das pessoas, alicerçada num entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, realizou uma proposta leviana, acintosa e desrespeitosa para com a viúva de Beto, e como consequência, ofendendo a sociedade.
Apenas para se ter em mente, aos não operadores do direito, há um entendimento do Superior Tribunal de Justiça, de limitar as indenizações por morte em 500 salários mínimos, embora não haja um limitador expresso quanto às ações de danos morais.
Entretanto, esta limitação não é utilizada, normalmente, por tribunais estaduais, que entendem que os danos morais devem ser analisados caso a caso, tomando-se por base o poder econômico do ofensor e os danos causados ao ofendido. Quase sempre, quando a vítima é negra, colocam as indenizações lá embaixo. Isso é racismo estrutural e precisa ser combatido.
Como já referido, o Carrefour, no mês de março, anunciou a compra da rede Big, sua concorrente, pela bagatela de R$ 7,5 bilhões e alcançou, no ano de 2019, o lucro líquido de 1,1314 bilhão de euros. Esta poderosa empresa, das maiores redes de venda de alimentos do mundo, segue dando as cartas, colocando-se como dona e senhora da situação, aproveitando-se de uma saída jurídica para terminar o assunto do Beto, ofertando valor injusto à sua viúva, frente ao espantoso assassinado.
Apenas para ilustrar a atual situação de vida da Milena, desde a morte do companheiro, ela não teve mais coragem de entrar na sua própria casa. Apesar do contínuo tratamento psicológico, sofre, ainda, de estresse pós-traumático, profunda depressão e demais traumas desencadeados por sentir a forte ausência do seu companheiro, morto pelos seguranças do Carrefour a socos e pontapés, sendo tudo gravado pelas câmeras do sistema de monitoramento, semelhante a uma luta de UFC (Ultimate Fighting Championship).
Desde aquela noite, ela não sai de casa desacompanhada. Dorme pouco. Desperta com pesadelos. Tem crises de choro, episódios depressivos e outros tantos sofrimentos diários que estão aniquilando o seu existir. Colocar o lixo, mesmo após cinco meses do ocorrido, só é uma tarefa possível se realizada com a companhia de alguém. Milena nos confidenciou que perdeu seu companheiro, seu amigo e seu esteio, perdeu aquele que a esperava com a janta pronta e a casa arrumada. Beto sempre a aguardava, mesmo ela chegando tarde do serviço como cuidadora.
No que toca ao pai de Beto, senhor João Batista, a dor não é diferente. Falta-lhe o ar, assim como faltou o ar de Beto naquela noite.
Não conseguimos aceitar a inversão da ordem natural no ciclo da vida. Não estamos nunca prontos, não queremos enterrar um filho.
Quando é tirada da natureza cumprir o ciclo da vida, é-nos dolorosamente terrível e assombra. Beto era o filho de João Batista, sendo impossível medir a dimensão da dor desta perda, ainda mais da maneira que ocorreu.
A perda de um filho é uma ferida que jamais será cicatrizada, tão somente convertendo-se em saudades por alguns momentos, mas jamais será menor. Os pais ficam perdidos na sua dor, um vazio inconsolável, um lamento interminável.
Do valor dado ao "Manchinha" e ao Nego Beto
É de conhecimento público que, aqui no Brasil, o Grupo Carrefour é responsável por bizarrices que denotam falta de respeito com a vida alheia, seja ela de um cachorro ou de um ser humano.
Em 2018, o cachorro "Manchinha" foi morto. Era um cachorro sem dono e vira-lata, que foi assassinado por um outro funcionário de segurança terceirizada do Carrefour, que, covardemente, desferiu golpes no animalzinho que veio a óbito em razão da hemorragia interna oriunda dos ataques com as barras de ferro.
Em um outro estabelecimento do Carrefour, houve um funcionário que faleceu durante o expediente, mas o mesmo foi coberto por guarda-sóis, para que a loja não fosse fechada e a empresa não perdesse seu dia de vendas .
Como se vidas fossem apenas brincadeiras para a gigante Carrefour, no dia 19 de novembro de 2020 mais uma morte acontece: a de Beto, o negro que foi espancado até a morte pelos seguranças do hipermercado.
No caso do cachorro "Manchinha", o Carrefour realizou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), comprometendo-se a pagar R$ 1 milhão como indenização à sociedade, distribuindo este valor à diversos órgãos ligados a causa animal.
À senhora Milena Alves, viúva de Beto, foi oferecida a mesma quantia indenizatória paga pela morte do cachorro "Manchinha". Não podemos deixar de comparar o Manchinha com o Nego Beto.
Parece grosseiro fazer este comparativo, mas torna-se impossível não traçar um paralelo, pois parece que, para o Carrefour, o valor dado a vida de um cachorro e de um ser humano é exatamente o mesmo.
A título de conhecimento, a família de George Floyd, cidadão negro norte-americano, morto por um policial, em 25/05/2020, na cidade Minneapolis, fechou um acordo para receber uma indenização de US$ 27 milhões, algo em torno de R$ 150 milhões. A comparação é inevitável. Em outras palavras, necessitamos alterar a jurisprudência, mas também precisamos mudar a cultura, a partir dessa negociação! Fica mais duas perguntas para a sociedade brasileira. Quanto vale a vida de um negro afro-brasileiro e um negro afro-americano? Quando vai ter fim a síndrome do cachorro vira-lata?
É triste, mas é assim que o hipermercado trata a vida, é este o respeito que demonstra pelo outro, seja ele um cachorro ou um ser humano. O valor é tabelado, não importa se é "Manchinha" ou Beto, a indenização oferecida é a mesma. A vida de um homem está sendo igualada e nivelada pelos mesmos balizadores que a vida de um cachorro.
Todas as mortes merecem respeito, mas não se pode tratar de forma igualitária a morte entre humanos e animais, mesmo que ambas tenham acontecido por puro preconceito. Será que se o "Manchinha" fosse um poodle enfeitado e o Beto, um loiro de olhos azuis, ambos ainda não estariam vivos aqui entre nós?
Em qual curva nos perdemos?
Qual o valor de uma vida?
Senhores acionistas do Grupo Carrefour, quanto vale a vida de um negro afro-brasileiro?
Até quando vamos permitir que nossa sociedade despenque ladeira abaixo?
Porto Alegre, 31 de março de 2021.
CARLOS ALBERTO BARATA SILVA NETO
OAB/RS 76.596
email: [email protected]
cel: (51) 99918-1902
(advogado Milena)
HAMILTON RIBEIRO
OAB/RS 35.975
email: [email protected]
cel: (51 9998-9192)
(advogado Milena)
RAFAEL PETER FERNANDES
OAB/RS 64.218
Email: [email protected]
cel: (51 98195-9719)
(advogado João Batista)
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