Processo Familiar

Desconstituições da filiação em rupturas do vínculo paterno-filial

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  • é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

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13 de setembro de 2020, 11h01

Recente decisão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça admitindo a supressão parcial de prenome composto, porquanto a sua titular sofria o constrangimento de lembrar que o seu primeiro prenome fora incluído pelo pai que a abandonou ainda criança (REsp 1.514.382, j. em 1/9/2020) [1], suscita novas latitudes em prol da dignidade dos filhos.

Uma delas, a mera exclusão registral dos patronímicos; outra, a própria desconstituição do vínculo de filiação, como instituto da desfiliação parental, ainda não previsto e regulado em lei, às situações mais graves de manifesto repúdio filial.

Essas rupturas de vínculos parentais sucedem apenas nas hipóteses do:

I) Vínculo biológico: pelo artigo 1.626 do Código Civil, quando pela adoção atribui-se a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais. No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, no caput de seu artigo 41, que "a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais".

ÍI) Vínculo ficto: em ação imprescritível prevista pelo artigo 1.601, CC, assegurado ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. As negatórias de paternidade, em bom rigor, não rompem o vínculo biológico porque estes, de fato, inexistem; as sentenças apenas o declaram inexistente.

III) Vínculo registral: quando têm sido admitido o processamento da ação negatória de paternidade, inclusive nos casos em que a filiação foi declarada por decisão já transitada em julgado, mas sem amparo em prova genética (v.g. RESp. 1.375.644-MG, Rel. p/ o Acórdão ministro João Otávio de Noronha, j. 01.04.2014).

Em todos os casos acima reportados, operam-se as desfiliações parentais, em ordem de romper os vínculos paterno-filiais. As situações recorrentes apontam, todavia, pela desconstituição da filiação nos sítios restritos da paternidade registral voluntária (quando inexistente a biológica) ou por adoção.

Entretanto, a desfiliação da parentalidade paterna ou materna (ou ambas), apresenta-se também como um direito existencial do filho, constituindo um novo fenômeno jurídico que o Direito deve contextualizar no sistema normativo.

São vieses jurídicos, às avessas, em que é o filho quem busca romper uma filiação não desejada.

No caso julgado, a jovem deixou de ser nominada Ana Luíza, permaneceu Luíza, mas não terá perdido o vínculo parental biológico. Na hipótese, em mantido em sua designação nominal o patronímico paterno e o nome do genitor abandonante em havendo continuado constando em seu assento de nascimento e nos demais documentos civis, ter-se-á apenas ocorrente a alteração do prenome composto, sem outras consequências jurídicas.

Induvidosamente a retirada jurídica da função parental, em destituição da autoridade do poder familiar, e/ou a ruptura do vínculo biológico, com alterações mais significativas, tem diversos fundamentos e causas; notadamente quando colocados os filhos em desamparo material-afetivo, por abandono paterno, sevicias ou maus-tratos.

Numa situação parelha, em 18/3/2015, o Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, por decisão unânime, autorizou a supressão do sobrenome do pai e o acréscimo do sobrenome da avó materna ao nome de um rapaz. Ele abandonado pelo pai desde a infância, fora criado somente pela mãe e pela avó.

O filho recorreu ao STJ contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que incluindo o sobrenome da avó em seu nome civil, manteve o sobrenome paterno, arrimada nos princípios da imutabilidade do nome e da indisponibilidade do sistema registral. Para o tribunal paulista, a mudança descaracterizaria o nome da família.

Pois bem. Questões fáticas subjacentes podem autorizar desconstruírem-se as filiações legais, sob o suporte de direitos personalíssimos dos filhos, alçados como direitos constitucionalizados. Vejamos:

I) Adoção desconstituída
Diante de vínculo de filiação constituído pelo artigo 1.626 do Código Civil, pode-se admitir a sua desconstituição, a partir da teleologia normativa do próprio instituto da adoção. Nessa diretiva, consigne-se, de logo, que o artigo 1.625 do Código Civil dispõe que "somente será admitida a adoção que constituir efetivo benefício para o adotado".

Em ser assim, o TJ-SP admitiu requerimento de uma mulher que pediu o cancelamento de sua adoção e a exclusão do sobrenome do pai, em virtude da inexistência de vínculo socioafetivo com o pai adotivo. A autora da ação arguiu que fora adotada pelo requerido quando já tinha 15 anos de idade, e que por diversas situações fáticas, incluindo crimes de abusos sexuais, nunca se sentiu filha do adotante, demonstrando-se uma manifesta falta do vínculo.

Nessa hipótese, operou-se a desfiliação da pessoa adotada em face do pai adotante, podendo-se cogitar, com base nessas premissas de fato e em casos que tais, a desconstituição da adoção, inclusive por iniciativa dos próprios pais biológicos dos filhos deles já desvinculados. Ou seja, os pais biológicos que tiveram seus vínculos transferidos aos adotantes, assumem legitimidade processual para essa desconstituição de filiação adotiva.

II) Renúncia ao patronímico por infortúnio
Por imperativos éticos, por motivos fundantes de soerguimento existencial, por repulsa natural ao abandono afetivo do qual tenha sido vítima ou por razões outras determinantes, a supressão do patronímico é circunstância decorrente quase sempre de dano afetivo.

Opera-se, a nosso sentir, uma desfiliação de ordem social, porquanto a supressão do patronímico, expurgido o nome paterno (ou materno), implica em uma ruptura registral dos apelidos a nível social do vínculo do seu titular em face de sua origem genética.

Efetivamente, "o que se pretende com o nome civil é a real individualização da pessoa perante a família e a sociedade" (STJ, 4ª Turma, REsp. nº 66.643/SP) e essa alteração condiz com a necessidade psicológica da supressão de patronímico por infortúnio.

Diz-nos, então, Christiano Chaves: "É de se reconhecer, assim, a possibilidade de mudança excepcional do nome nos casos em que a proteção da dignidade humana esteja evidenciada, sendo impossível, por óbvio, uma limitação legal taxativa. Seja qual for o caso, se a dignidade humana reclamar, admite-se a mutação. Não é por outro motivo que o Superior Tribunal de Justiça, proclamando esse entendimento, permitiu que um filho, abandonado pelo seu genitor, apesar de reconhecida a paternidade, alterasse seu nome patronímico" [2].

No mais, a questão da rejeição ao sobrenome paterno (ou materno), como consabido, tem suas razões em desordens coexistenciais entre a autoridade parental e o filho, quando em determinado curso da vida ou mesmo no berço das origens, o abandono paterno sonega, desde há muito ou desde sempre, o vínculo biológico existente.

De fato, "o registro civil deve realmente espelhar a dinâmica da vida, e não a situação estática posta no momento em que houve o seu lançamento". Assim tem sido na reassunção do nome da genitora enquanto solteira, nos registros civis, após a ruptura da vida conjugal, e em outros experimentos registrais.

Posta assim a questão, a supressão do sobrenome paterno do nome de filho(a) que foi rejeitado(a) pelo pai, quando esse sobrenome representa severos constrangimentos, configura-se como um direito personalíssimo.

Um dos acórdãos paradigmas situa-se em julgamento da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, realizado em 5 de outubro de 2005. Para o relator do recurso, desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, o abandono e ausência paterna nos mais importantes momentos de sua vida são razões juridicamente relevantes, "a ensejar a supressão judicial do sobrenome paterno e não podem ser desconsideradas pela simples aplicação do princípio da imutabilidade". Asseverou que não há razão plausível para impedir a alteração, "em consonância com a nova ordem jurídico-constitucional que alçou o nome a direito da personalidade, afeto à dignidade da pessoa humana" (Proc. nº 70011921293) [3].

Todavia, a retirada ou supressão do patronímico em ordem da nominação civil do registro terá uma mera simbologia de ruptura, quando nada obstante ali permaneça mantida a identificação biológica registral. Em busca de uma correta inteligência da doutrina familista, tenha-se pelo emprego da "lógica do razoável", ao entendimento de a supressão deferida interimplicar a ruptura do próprio vínculo biológico, constitutiva da desfiliação.

A desfiliação deve ser entendida como exercício pleno da autonomia privada para a ruptura do vínculo paterno-filial. Trabalhe-se, então, o conceito de desfiliação, a partir dos estudos de Robert Castel, em que a família "que é, ao mesmo tempo, uma maneira de habitar um espaço e de partilhar dos valores comuns sobre a base de uma unidade de condição", apresenta-se como vetor fundamental da inserção relacional [4].

Ora. A desfiliação será exatamente extraída como consequência da não inserção de um dos pais ou de ambos nas regras de filiação, dispostas em lei e/ou nos princípios da dignidade da pessoa do(s) filho(s).

Em outro giro, é de se indagar, por oportuno: em situações dessa ordem, aquele filho que renunciou ao patronímico terá direitos sucessórios, à simples circunstância do vínculo biológico ser entendido como permanente? A sua habilitação em inventário seria moralmente inaceitável, diante da anterior quebra de uma dialética afetiva-parental e quando se apresenta antiético o mero interesse pecuniário a ditar a pretensão de recolher a herança [5].

Em mesma identidade teleológica da desfiliação, situa-se a hipótese de deserdação por abandono. O PL-CD nº 3.145/2015, com análise atual pelo Senado, altera o Código Civil, dispondo sobre a privação do direito de herança pelo fato do abandono de idosos por filhos e netos quanto o abandono de filhos e netos por pais e avós.

III) Rejeição ao poder familiar
A partir da percepção e convencimento de que as relações sócio-afetivas passaram a ser reconhecidas de forma significativa no Direito de Família, não podemos afastar a possibilidade de incluir nesse contexto a "rejeição ao poder familiar" como um novo valor jurídico.

Um adolescente de 14 anos, Patrick Holland, ingressou na Justiça americana, em 2004, para retirar o poder familiar do seu pai, Daniel Holland que matou a genitora do menor e de quem estava separado. Foi uma ação inusitada, até então, para dissolver o vínculo de autoridade parental com a perda do poder familiar.

Em nosso país, a destituição do poder familiar está prevista no artigo 155 do Estatuto da Criança e do Adolescente e no artigo 1.638 do Código Civil, implicando essa penalidade romper por completo o vínculo de filiação.

A exemplo do case norte-americano, entenda-se que nos fins da destituição do poder familiar, a legitimidade processual para o pedido não apenas reserva-se ao Ministério Público, mas a todo aquele que tenha legitimo interesse. Incluem-se, portanto, o próprio filho ou pessoa outra, mesmo que não seja parente.

Nesse sentido, julgado sob a relatoria do ministro Marco Buzzi enunciou:

"O foco central da medida de perda ou suspensão do poder familiar é, na sua essência, salvaguardar o bem-estar da criança ou do adolescente, motivo pelo qual a legitimidade para o pedido está atrelada à situação específica factual, notadamente diante dos complexos e muitas vezes intrincados arranjos familiares que se delineiam no universo jurídico de amparo aos interesses e direitos de menores" [6].

A nosso sentir, o rompimento dos vínculos parentais opera-se com a perda do poder familiar e não somente quando a criança ou adolescente seja colocado em família substituta, por meio da adoção.

Como é certo que se insere da natureza desse instituto que os vínculos originais são desconstituídos em face dos pais e dos demais parentes, também torna-se certo, a nosso sentir, que a perda do vínculo com os pais biológicos não deve se apresentar somente adveniente da adoção, porquanto em determinadas situações, apenas um deles é o destituído do poder familiar, sem acarretar a consequência da adoção. Quando o outro genitor não é atingido pela medida decretada, dado que não lhe deu causa, inexistirá razão, de fato, para a colocação da criança em família substituta, resultando apenas a ruptura do vínculo parental de um deles.

Bem de ver que a lei não oferece conceitos jurídicos de paternidade/maternidade. Mas, ao tratar da parentalidade, cuida defini-la em seu amplo espectro, dispondo o artigo 1.593 do Código Civil que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem".

Não há negar que paternidade e vínculo biológico não se confundem. Seus valores são distintos. O primeiro é o valor jurídico do afeto (suficiente em si mesmo), seja biológica ou não a paternidade, e quando socioafetiva consolida o estado de filiação, antes que qualquer provimento judicial o diga existente, para seus devidos efeitos. A seu turno, diante da paternidade responsável (artigo 226 §7º, da Constituição Federal) a força normativa do vínculo genético carrega consigo o valor jurídico da origem natural como um determinante obrigacional inexorável.

O que se depreende, porém, é que não deve perdurar o vínculo biológico, quando a relação paterno-filial afronta a realidade afetiva que deve orientar todos os vínculos.

Assim, inexistirão filhos pródigos. Pródigos serão os pais que deixaram os seus vínculos biológicos apenas nos assentos registrais; não assentando, sem arrependimentos, a vida no destino que deve unificar outras vidas.

 

[1] Consultor Jurídico, 01.09.2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-set-01/stj-admite-exclusao-nome-escolhido-pai-abandonou-familia

[2] CHAVES, Christiano. Escritos de Direito de Família, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p. 34-35.

[3] TJ-RS. Web: http://www.serjus.com.br/noticias_antigas/on-line/gaucha_obtem_autorizacao_judicial_exclusao_do_sobrenome_paterno_07_11_2005.html

[4] CASTEL, Robert. Cahiers de Recherche Sociologique”, 1994. E “La désaffiliation: précarité du travail et vulnerabilité relationelle”. In: DONZELOT, J. (org.) Face à l’exclusion: le modèle français. Paris: Ed. Esprit., 1992. Web: https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/view/18664/12038

[5] A propósito de uma filiação sucessória, conferir, com identidade de razões, o estudo de Rolf Madaleno. Web: https://ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/102.pdf

[6] Consultor Jurídico, em 16.10.2019. Web: https://www.conjur.com.br/2019-out-16/destituicao-poder-familiar-pedida-quem-nao-parente

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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