Lavagem de dinheiro e prova indiciária
11 de novembro de 2020, 20h58
No momento em que há um debate sobre as possíveis alterações na Lei de Lavagem de Dinheiro, cabe a reflexão de um tema ainda tormentoso que trata do problema da prova para o oferecimento da denúncia. É certo que o atual dispositivo legal trata da possibilidade de oferecimento da inicial acusatória tão somente com indícios da infração penal antecedente e pensamos que essa questão merece ser revisitada para o bem da segurança jurídica.
É certo que o processo penal é por vezes considerado um instrumento necessário de proteção dos valores recolhidos pelo Direito Penal, cuja função principal consiste em dotar o Estado de um procedimento preestabelecido para a aplicação do ius puniendi. A finalidade, portanto, das medidas restritivas de direitos fundamentais suscetíveis de serem adotadas no processo penal orientar-se-iam, assim, em princípio, a permitir aos órgãos do Estado a satisfação dos fins próprios do Direito material, dando deste modo resposta ao interesse de persecução penal que anima sua atuação neste âmbito e que se opõe ao ius libertatis dos cidadãos [1].
O questionamento que se impõe é acerca dos limites do Estado na tentativa de efetivar essas medidas de persecução penal sem ferir os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Ainda que o crime de lavagem seja um crime grave, não se pode permitir ao Estado que viabilize uma acusação contra o indivíduo baseada em "indícios suficientes" das infrações antecedentes. Nesse sentido, transcorridos mais de 20 anos da edição da Lei 9.613/98, é chegado o momento de fazermos uma revisão dessa estrutura processual, permitindo, com isso, a implementação de um processo justo ao cidadão acusado.
Montañez Pardo [2], ao tratar da prova indiciária na Espanha, afirma que é possível a aceitação desta, mas adverte que ela deve observar alguns requisitos e os resume desta forma: a) os indícios devem estar plenamente seguros. Assim, não valem as meras conjecturas ou suspeitas, pois não é possível construir certezas sobre simples probabilidades; b) concorrência de uma pluralidade de indícios. É necessário que concorram uma pluralidade de indícios, pois um fato único ou isolado impede fundamentar a convicção judicial com base na prova indiciária; c) existência de razões dedutivas. Entre os indícios provados e os fatos que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as regras do critério humano.
Talvez, utilizando-se desse critério para a verificação dos indícios da infração antecedente, seria possível que se viabilizasse a inicial acusatória pelo crime de lavagem de dinheiro. Acreditamos que o melhor seria uma prova segura da infração antecedente, o que necessariamente não significa uma sentença condenatória, mas que permita ao juiz a verificação dos fatos típicos e antijurídicos que geraram os bens aptos a serem lavados.
Em que pese parte da doutrina brasileira mencione a desnecessidade de descrição minuciosa da infração antecedente na denúncia, sob o argumento de que isso deve ser feito em relação ao crime de lavagem, enfatiza que cabe ao Ministério Público demonstrar ao juiz que a inicial acusatória está fundamentada em seguros indícios de que o crime de lavagem foi praticado em relação direta ou indireta aos produtos da prática de infrações antecedentes [3]. Na ausência de tal demonstração, a denúncia, a nosso ver, deverá ser rejeitada [4].
Novamente insistimos que a questão merece ser revisitada agora, pois a prova indiciária da infração antecedente não pode e não deve servir de sustentação jurídica para fundamentar uma denúncia de lavagem de dinheiro. Uma revisão nesse dispositivo da lei de branqueamento de capitais permitiria um processo adequado à Constituição e impediria a rejeição de denúncias sem os requisitos fundamentais, ou, até mesmo, ações penais que ao final são fulminadas por ausência de provas.
[1] GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolas, Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal. Madrid: Colex, 1990, p. 243.
[2] MONTAÑES PARDO, Miguel Angel, La presunción de Inocencia. Madrid: Marcial Pons, 1999, pp. 106/109.
[3] Cfr. BARROS, Marco Antonio, ob. cit., p. 82.
[4] GOMES, Luiz Flávio, em CERVINI, Raul / TERRA DE OLIVEIRA, Willian / GOMES, Luiz Flávio, ob. cit., p. 356.
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