Configuração de abuso de autoridade exige animus abutendi
30 de junho de 2020, 8h00
Nesse contexto, fácil notar a relevância da Lei de Abuso de Autoridade. A Lei 13.869/19 substituiu a Lei 4.898/65 e trouxe o atual regramento sobre a matéria, contendo a tipificação de crimes funcionais, cometidos pelo agente público que extrapola os limites de atuação e fere o interesse público.
Diferentemente da antiga Lei de Abuso de Autoridade, cujas infrações penais eram de menor potencial, a atual Lei de Abuso contém também crimes de médio potencial ofensivo. A nova Lei, apesar de eliminar o problema das penas insuficientes, exagerou em algumas sanções penais, persistiu com crimes vagos demais, criminalizou infrações disciplinares e foi editada sem discussão suficiente do tema.
O elemento subjetivo geral no abuso de autoridade é o dolo. Não há previsão legal de abuso de autoridade culposo. Entretanto, logo no seu artigo inaugural a lei evidencia que o dolo, por si só, não é suficiente para que o crime se perfaça. Além da consciência (elemento cognitivo) e da vontade (elemento volitivo) que compõem o dolo, é preciso algo a mais, uma finalidade específica que deve animar a conduta do agente. Vejamos o dispositivo:
Art. 1º. (…)
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.
Além da consciência e da vontade de realizar as condutas descritas na lei, o agente público deve agir com a finalidade específica (elemento subjetivo especial) de, alternativamente (art. 1º, §1º):
a) prejudicar outrem;
b) beneficiar a si mesmo ou a terceiro;
c) por mero capricho;
d) por satisfação pessoal.
Prejuízo é o dano, a perda. Benefício é a vantagem, o ganho. Podem ser de qualquer natureza. Evidente que o prejuízo ou benefício devem extrapolar o exercício regular das funções do agente público. Todavia, também previu o legislador como elemento subjetivo específico, alternativamente, o mero capricho ou satisfação pessoal, que constituem expressões vagas, de alto grau de subjetividade.
Capricho é a cisma, a vontade birrenta ou arbitrária, o desejo injustificado. Satisfação pessoal é o sentimento de prazer, regozijo. Claro que o agente público vocacionado experimenta certa satisfação ao cumprir seu dever; o que a lei pune não é o advento dessa satisfação após cumprir sua missão buscando o interesse público, mas agir objetivando ab initio o deleite individual, transformando a consequência em causa.3 Assim agindo, coloca seu interesse particular acima do interesse público, como por exemplo quando atua com desiderato de autopromoção ou endeusamento de sua imagem.4
Esse elemento subjetivo específico do tipo não precisa efetivamente se concretizar, bastando que exista na mente do autor, ou seja, é suficiente que a conduta do agente seja orientada por essa particular motivação, que deve ser demonstrada com base em elementos objetivos do caso concreto. Aliás, caso a acusação não demonstre expressamente na peça inaugural essa finalidade especial que anima o agente, a denúncia ou queixa será inepta e deverá ser rejeitada (art. 395, I, do CPP), por impossibilitar ao réu o exercício de seu direito de defesa.
Os tipos penais da Lei de Abuso de Autoridade são incongruentes, porquanto requerem a demonstração não somente do dolo (vontade e consciência de realizar os elementos do tipo penal), mas também de um especial fim de agir do agente. Outras leis já utilizam essa técnica de pluralidade de elementos subjetivos do tipo. O que há de novo aqui é a presença de multidolos específicos e cumulativos.
Esse elemento subjetivo especial que anima a vontade do agente e que deve permear todas as condutas criminosas é rotulado como animus abutendi. A exigência de um dolo e de mais um requisito subjetivo que o transcende dificulta a incidência dos tipos penais da Lei de Abuso de Autoridade.
Um ponto que precisa ficar acentuado é que em havendo conflito entre o elemento subjetivo especial reclamado pelo tipo penal e aqueles previstos no art. 1º, §1º, deve preponderar o primeiro. Em sendo possível a compatibilização entre os dois, ambos deverão ser comprovados no caso concreto.
A título de exemplo, a procrastinação de uma investigação em favor do investigado não configura o crime do art. 31 da Lei 13.869/19, porque o dispositivo requer que a procrastinação seja em prejuízo do investigado e não em seu favor. Assim, a conduta do delegado de retardar a conclusão de uma investigação para que um elemento defensivo seja produzido ou até mesmo para que ocorra a prescrição, não se subsume à figura típica descrita no citado dispositivo legal. Por mais que uma das finalidades especiais elencadas no art. 1º, §1º seja o de beneficiar a terceiro, não há como desconsiderar o elemento subjetivo especial que lhe contrapõe e é exigido pelo próprio tipo penal.
Claro que paira sobre a conduta do agente a presunção (relativa) de boa-fé, cabendo àquele que pretende desconstituí-la o ônus de demonstrar a má-fé por meio de elementos concretos e não meras suposições (v.g., de que estaria o agente atuando de forma arbitrária ou por puro prazer):
Obviamente, esse especial fim do agente não se presume, nem se deduz, e deverá ser demonstrado por prova inequívoca. As hipóteses, principalmente as de “por mero capricho ou satisfação pessoal” somente poderão ser comprovadas pela admissão da própria autoridade ou por testemunha que dela tenha ouvido tal relato, sendo impossível de ser demonstradas por raciocínio dedutivo.5
Portanto, não comete abuso de autoridade o agente que errar ou atuar com desídia, sendo incorreto concluir que a preguiça ou o equívoco equivalem à má-fé.
A norma evidencia que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (art. 1º, §2º). Veda-se o crime de hermenêutica. A natureza jurídica desse dispositivo é de causa excludente do elemento subjetivo (dolo), pois se no caso há apenas discordância na análise da norma, do fato ou da prova, é sinal de que o agente não atuou para causar benefício ou prejuízo, ou por capricho ou satisfação pessoal. Fosse uma excludente de ilicitude, teríamos que admitir que o sujeito, pelo tão só fato de pensar juridicamente de modo diverso, praticaria fato típico com fim específico exigido pelo tipo (beneficiar, prejudicar, capricho ou satisfação pessoal). A própria localização topográfica da norma (abaixo do elemento subjetivo) confirma que se trata de excludente da finalidade específica.
Excepcionalmente existem limitações à interpretação. É o que ocorre diante de súmula vinculante, não podendo o agente público simplesmente ignorar seu comando sob a justificativa de estar realizando atividade hermenêutica.6 Nessa linha, a causa de atipicidade não alberga interpretações absurdas e teratológicas, que pretendam subverter o sentido óbvio das palavras.
Outros sistemas jurídicos adotam entendimento semelhante, como o da Alemanha (BGHSt 43, 183, 190), em que a criminalização do abuso de autoridade não alcança qualquer aplicação equivocada do direito, mas apenas aquela em que o agente se distancia conscientemente de forma gravíssima do Direito.
Se a autoridade, na justa intenção de cumprir seu dever, acaba cometendo excesso, haverá ilegalidade, mas não crime de abuso de autoridade por ausência da intenção específica de abusar. As autoridades precisam de um mínimo de segurança jurídica para atuarem sem receio de represálias, não sendo razoável que fiquem sujeitas a punições por mera divergência de entendimento e subjetivismos.
Não se vislumbra compatibilidade com o dolo eventual, pois a finalidade específica exigida do agente só pode ser atingida com vontade, e não com mera assunção do risco de atingir o resultado.7
Diga-se ainda que todo particular ou agente público comete erros involuntários, decorrência da própria natureza humana.
Quanto aos agentes públicos, no caso dos operadores do Direito, além de poderem tomar decisões com calma em seus gabinetes, em geral o erro cometido em manifestação jurídica pode ser corrigido por meio de recurso, sem maiores problemas.
Já com relação aos policiais e ao delegado (cuja carreira é policial e também jurídica), as deliberações em regra são tomadas com urgência (em segundos ou minutos) no calor dos acontecimentos, muitas vezes sob o cansaço do fim de um plantão ou expediente, ocasião em que o policial, na maioria das vezes está sedento, faminto e sonolento. Para piorar, alguns atos podem ser incorrigíveis, como o disparo de arma de fogo mal executado.
Por isso, no caso dos policiais, a análise de eventual abuso de autoridade deve considerar as peculiaridades de suas funções. Assim na legítima defesa (que também afasta a ilicitude da conduta), o exame da situação não pode ser feito de forma rígida e matemática, mas de modo flexível, e não em doses milimétricas, como se pudesse ser aferida numa balança de precisão.8
É preciso reconhecer e respeitar as dificuldades estruturais da Polícia, que infelizmente sofre com insuficiência de recursos humanos e materiais. A omissão do Estado reforça a presunção de boa-fé do policial que não consegue executar a contento e com urgência todas as atribuições policiais, acarretando por exemplo o descumprimento de prazo.
De mais a mais, a suposta vítima de abuso de autoridade deve se abster de ofertar noticia criminis do alegado abuso quando for incapaz de apontar que não se trata de mera divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas. Assim, não importa que a decisão do juiz da qual discorda tenha sido revista pelo Tribunal à unanimidade, ou que o inquérito policial instaurado pelo delegado tenha sido trancado pelo Judiciário, ou a denúncia ofertada pelo MP tenha sido rejeitada. É leviana a imputação de crime a esses agentes públicos sem demonstração da finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou terceiro, ou capricho ou satisfação pessoal.
O inconformismo de advogados e das partes com as decisões das autoridades deve ser combatido com recursos administrativos, e ações e recursos judiciais que ataquem os atos das autoridades e não as próprias autoridades. A boa-fé do agente público é presumida, sendo incumbência de quem alega má-fé comprová-la.
Da mesma forma que se exige justa causa para se iniciar qualquer investigação, sob pena de crime do art. 27 da Lei 13.869/19, exige-se justa causa também para que juízes, promotores e delegados sejam representados por abuso de autoridade. A representação leviana por abuso de autoridade pode ensejar responsabilização criminal por comunicação falsa de crime (comunicar crime que não se verificou – art. 340 do CP) ou denunciação caluniosa (dar causa à instauração de investigação contra inocente – art. 339 do CP).
Diga-se, por fim, que assim como a injúria ao juiz não acarreta sua suspeição (art. 256 do CPP), a representação indevida por abuso de autoridade não tem o condão de acarretar a suspeição do agente público. Isso para evitar que alguém consiga por ato unilateral afastar a autoridade que não seja mais conveniente a seus interesses, impedindo que o autor da artimanha se beneficie da própria torpeza.
1 Para um estudo completo sobre a matéria: COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.
2 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2010.
3 LIMA, Renato Brasileiro de. Nova lei de abuso de autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 32.
4 AGI, Samer. Comentários à nova Lei de Abuso de Autoridade. Brasília: CPIuris, 2019, p. 18.
5 CAPEZ, Fernando; ROBERT, Hans. Lei de abuso: limite da liberdade jurisdicional para assegurar a individual. Revista Consultor Jurídico, out 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-07/lei-abuso-limite-liberdade-jurisdicional-liberdade-individual. Acesso em: 08 out. 2019.
6 AGI, Samer. Comentários à nova Lei de Abuso de Autoridade. Brasília: CPIuris, 2019, p. 18.
7 GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de autoridade. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 13.
8 LINHARES, Marcello Jardim. Legítima defesa. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 344
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