Eugenia à brasileira: inconstitucionalidade de normas hierárquicas de saúde
1 de junho de 2020, 8h24
Estima-se que aproximadamente 14% dos casos de infecção por Covid-19 sejam graves, o que exige internação hospitalar e oxigenoterapia, enquanto, por volta de 5% dos pacientes, necessitam de internação em unidades de terapia intensiva (Organização Mundial da Saúde. Clinical management of severe acute respiratory infection when COVID-19 disease is suspected).
Estudos mais recentes constataram que as projeções são ainda mais preocupantes. Até 25% dos casos podem demandar internação hospitalar, e até 8% dos acometidos pela doença podem necessitar de tratamento intensivo (Ryan C. Mavesa, James Downar e outros. Triage of scarce critical care resources in COVID-19 an implementation guide for regional allocation. Chest Journal. Abril de 2020).
No Brasil, estima-se que existam duas UTIs para cada 10 mil habitantes, o que atende às exigências sanitárias da OMS. Entretanto, além de distribuídos desigualmente pelo território nacional, apenas 44% dos leitos são integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual é responsável pela assistência de três quartos da população. Ainda que os Poderes Públicos pudessem realizar — nos termos do artigo 5º, inciso XXV, da Constituição; do artigo 3º, inciso VII, da Lei n.º 13.979/2020 e do artigo 3º, inciso VII, da Lei n.º 13.979/2020 — a requisição administrativa das UTIs privadas, o que permitiria planejamento, contingenciamento mais abrangente e, consequentemente, mitigação da escassez, a omissão generalizada já ensejou a saturação do sistema de saúde em expressiva parcela dos municípios brasileiros.
Em razão da escassez, foram adotadas iniciativas que instituem procedimentos de tomada de decisão para priorizar determinados perfis de pacientes no acesso aos leitos, isso por meio da adoção das seguintes premissas: salvar o maior número de vidas, de anos a serem vividos e, ainda, oportunidade para que os indivíduos passem pelos diferentes ciclos da vida.
Destaque-se, desde já, que a oferta de leitos de UTI no Brasil, mesmo no cenário anterior à atual pandemia, já se baseava não só na necessidade de terapias de suporte orgânico, mas também na disponibilidade de leitos e na probabilidade de recuperação. Consequentemente, diante de uma situação de escassez, o Conselho Federal de Medicina (Resolução n.º 2.156/2016) já determinava a priorização daqueles que necessitassem de intervenções de suporte à vida, possuíssem alta probabilidade de recuperação e sem qualquer limitação de suporte terapêutico.
Ante o atual cenário de pandemia, o Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco editou a Recomendação n.º 05/2020 para eleger pacientes de acordo com a previsão de sobrevivência a curto e longo prazo (considerando, para tanto, os métodos Sequential Organ Failure Assessment simplificado, Charlson Comorbidity Index e Clinical Frailty Scale), além da probabilidade de sobrevivência global e de resposta terapêutica (Karnofsky Performance Status). Admitido o paciente, ele será submetido à reavaliação diária exclusivamente com a adoção do Sequential Organ Failure Assessment. Independentemente da pontuação, em havendo agravamento clínico prolongado, o paciente perderá o tratamento intensivo. Ainda que não haja a utilização isolada dos fatores idade e gestação, eles influenciam sobremaneira na triagem, já que, conforme demonstraremos, são aspectos indissociavelmente ligados aos sistemas de pontuação eleitos.
Com efeito, o Sequential Organ Failure Assessment avalia as disfunções orgânicas (neurológica, cardiovascular, pulmonar, hepática e renal, em especial) ao passo que o Charlson Comorbidity Index coteja a existência de doenças prévias, tais como, dentre outras, infarto do miocárdio, demência, úlcera, diabetes, leucemia, hepatite e tumor sólido metastático. O Performance Status de Karnofsky leva em consideração, independentemente da existência de doenças crônicas, a capacidade do paciente — previamente à infecção — de desempenhar atividades rotineiras (por exemplo, trabalhar e cuidar de si próprio). A Clinical Frailty Scale, aplicada para pessoas acima de 60 anos, é uma medida clínica global de condicionamento físico e fragilidade que classifica os pacientes de acordo com, em especial, a frequência de atividade física e as limitações à prática de atividades rotineiras.
Outra iniciativa, esta pelo Conselho Medicina do Rio de Janeiro (Rec. n.º 05/2020) considera variáveis similares, mas adota métodos em parte específicos para aferir a previsão de sobrevivência de acordo com a gravidade de doenças incuráveis e progressivas (Supportive and Palliative Care Indicators Tool), além da funcionalidade prévia à admissão na unidade de saúde (Eastern Cooperative Oncology Group).
Medidas similares foram adotadas pelo CRM do Distrito Federal (Parecer CRM-DF n.º 12/2020). No âmbito do Município de São Paulo, foi editado o Decreto n.º 59.396/2020 para determinar à Secretaria Municipal da Saúde que implemente protocolo para priorização no acesso às UTIs de acordo com as “melhores normas internacionais e técnicas”, razão pela qual certamente serão adotados os mesmos métodos aqui detalhados.
Ainda que adotando critérios em parte específicos, os procedimentos elencados valem-se, dentre outros, da funcionalidade para eleger determinados pacientes pressupondo que eles possuem melhores chances de responder ao tratamento intensivo e maiores expectativas de sobrevida. Parece assustador, pois não?
A estratificação de acordo com a gravidade de determinadas disfunções orgânicas, ainda que transitórias, parte do pressuposto de que elas permitem aferir a sobrevivência a curto prazo, bem como selecionar aqueles que possuem maior probabilidade de recuperação da infecção por Covid-19. Entretanto, estudos científicos realizados quanto à utilização do Sequential Organ Failure Assessment durante pandemia decorrente do vírus H1N1 no ano 2009 constataram que o critério se mostrou inadequado para priorizar o acesso às UTIs, uma vez que a mortalidade aferida posteriormente não refletiu as estimativas prévias (Michael D. Christian e outros. Care of the critically ill and injured during pandemics and disasters. Chest Journal, 2014).
Ainda que os modelos elaborados no Brasil atualmente considerem outras variáveis, as quais vão além das disfunções orgânicas, não há evidências científicas conclusivas quanto à eficácia dos scores. Outro ponto de discussão é que referido critério — ao incorporar, exemplificativamente, índices relativos à pressão arterial, dopamina, dobutamina, noraeponefrina, creatina e diurese — gera desvantagem para as gestantes, as quais desenvolvem alterações significativas em tais aspectos.
Guardadas as devidas proporções, os citados critérios de priorização fazem repercutir — com alguma sofisticação e obnubilação — superadas teorias sociais darwinianas por meio das quais a utilidade à sociedade é um critério para determinação do valor humano. O falacioso argumento justificador da seleção é o de que só mediante critérios de triagem nos moldes apresentados haveria maior eficiência na gestão dos recursos escassos, assim entendida como a maximização da assistência médica para o maior número de pessoas, o que não poderia ser alcançado por meio da alocação com base na ordem de chegada (Ryan C. Mavesa, James Downar e outros. Triage of scarce critical care resources in COVID-19 an implementation guide for regional allocation. Chest Journal, 2020).
Não nos deparamos com uma mera questão de eficiência na gestão de recursos escassos. A dignidade, a igualdade e a solidariedade são princípios que devem conformar, para além de qualquer critério epidemiológico puro, o acesso aos serviços públicos de saúde. O SUS tem sua origem na realização das conferências nacionais de saúde. Tais conferências possuem sua origem no governo Vargas, com a Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, que reorganizou o Ministério da Educação e Saúde. A primeira conferência nacional de saúde ocorreu em junho de 1941, sob a organização de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde. De lá para os dias atuais, houve dezesseis conferências nacionais, sendo a última realizada em agosto de 2019. Não é difícil comprovar a origem coletiva do direito à saúde, quando da concretização deste direito previsto nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal. O salto mais importante se deu quando da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986: a criação de um sistema único de saúde, separado da previdência social, e de caráter universal, o que derivou na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde: o único sistema no mundo onde quem não contribui pode usufruir dos serviços de saúde. Portanto, a reafirmação de seu caráter universal.
Esta articulação normativa se deixa comprovar na previsão dos princípios, dentre outros, da universalidade do acesso às ações e serviços públicos de saúde (art. 7º, inciso I, da Lei nº 8.080/1990); da igualdade de assistência, o que pressupõe ausência de preconceitos ou privilégios (art. 7º, inciso IV); e, ainda, da utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática (art. 7º, inciso VII). Essa regulamentação visa a atender aos ditames constitucionais que asseguram os direitos à saúde (art. 6º; art. 23, inciso II; art. 24, inciso XII; art. 194; art. 196; art. 197; art. 198; art. 199 e art. 200), à vida (art. 5º, caput; art. 227 e art. 230) e à igualdade (art. 5º, caput, inciso IV e art. 196). Do mesmo modo, a República brasileira é fundamentada na dignidade (art. 1º, inciso III, da Constituição) e tem por objetivos fundamentais e permanentes, dentre outros, a construção de uma sociedade justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I, III e IV, da Constituição). Também é relevante destacar que, no âmbito do Direito Internacional Público, dentre diversos tratados internacionais pertinentes ao tema, destaque-se, em especial, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, segundo a qual as questões éticas relacionadas à medicina são informadas pela dignidade, igualdade e solidariedade. A propósito, a Sociedade Brasileira de Bioética, na sua Recomendação n.º 1/2020, posicionou-se pela alocação de recursos que “assegure o direito de todos os pacientes, inclusive os não infectados por SARS-CoV2, de receber cuidados de acordo com suas necessidades, promovendo-se a melhor assistência à saúde cientificamente reconhecida” (item I), que sejam garantidos “os direitos dos pacientes, incluindo acesso igualitário, em todos os níveis de atendimento” (item V) e que seja assegurado “o princípio da equidade, para que não ocorra qualquer distinção que importe a desvalorização e discriminação de pessoas, comunidades ou grupos socialmente vulneráveis no acesso aos serviços” (item VII), dentre outras 1.
Tais normas, e mesmo as mais balizadas recomendações, impõem o afastamento da priorização no acesso aos leitos de UTI no formato apresentado. Isso tudo tem nome: hierarquização de vidas. E um subnome: eugenia. Em outras palavras, é contrário à essência humanista da nossa Constituição.
Ainda que a mensuração para fins de priorização no acesso às UTIs não se baseie na relação superioridade-inferioridade em que se centra a teoria eugenista na sua acepção clássica formulada por Francis Galton (Hereditary talent and character. Macmillan’s Magazine, 1865), a adoção da probabilidade de cura com base em critérios pretensamente científicos dificilmente conversíveis em linguagem comum afeta, em especial, o sentimento de comunidade e, consequentemente, a integridade da nossa própria estrutura social. A relação de causalidade, bem como a estigmatização de determinados grupos qualificados como descartáveis contraria a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição). Em suma: as regulamentações médicas aqui tratadas são absolutamente inconstitucionais.
Para quem ainda não entendeu: Nunca será demais recuperar a advertência histórica a respeito de critérios de separação para acesso a tratamento de saúde do século XX, materializada, de forma especial, pela pesquisa de Ernst Klee e sua rica documentação sobre a medicina durante a Alemanha nazista ((Deutsche Medizin im Dritten Reich – Karrieren vor und nach 1945. Frankfurt. M: S. Fischer Verlag, 2001; organizado com Willi Dressen e Volker Riess: “The Good Old Times”: The Murder of the Jews as Seen by the Perpetrators and Bystanders. New York: Free Press, 1988).
O destaque fica por conta da conhecida Aktion T4 e os processos de “eutanásia” que levaram à morte milhares de pessoas classificadas como “vidas sem valor” (lebensunwerten Leben). A Aktion T4 foi assim denominada em razão de tal “Ação” ser efetivada pelo Posto de Serviço Central T4 (Zentraldienststelle), de Berlim, quando mais de 70 mil pessoas, portadoras de deficiências físicas ou mentais, foram exterminadas.
Integrava o rol de “vidas sem valor” para a medicina nazista – que contou com o apoio de médicos, como Leonardo Conti, Ministro da Saúde do III Reich e responsável por políticas de extermínio – aqueles “sem condições de vida”, doentes e que não reunisse condições físicas de trabalho. Não somente nos campos de concentração eram aplicados tais critérios, mas na sociedade alemã e nos territórios ocupados pelo avanço da guerra desencadeada pelo nazismo. Medidas sanitárias de segregação foram elaboradas pelo médico Karl Brandt, “médico particular” (Begleitartz) de Adolf Hitler, bem como amplamente difundidas pela editora de Julius Friedrich Lehmann, a J. F. Lehmanns Verlag, encarregada da difusão de ideias de uma medicina nacionalista e racista. O nome de Brand ficou lembrado na chama Aktion Brandt, que se definia na descentralização da negligência médica de pacientes classificados como incuráveis ou de improvável recuperação. Referida “Ação” era disseminada tanto em hospitais como mesmo em estações de tratamentos intermediárias.
A medicina não fugiu à orientação da ideologia racial do regime nazista. Integrou a organização de um Estado que direcionava todos os seus esforços administrativos, científicos, financeiros etc. para a construção de uma sociedade “superior” com a eliminação dos que não se enquadrassem em tal categoria definida pelo mesmo regime. O ambiente institucional desta realidade iniciou logo quando em 30 de janeiro de 1933 Hitler foi nomeado Chanceler do Reich. Já em 7 de abril do mesmo, foi aprovada a “Lei da Reorganização do Serviço Público” (Gesetz zur Wiederherstellung des Berufsbeamtentums), pela qual profissionais “não arianos” estavam impedidos do exercício do serviço público, o que excluiu médicos de origem judia, eslava ou de outras procedências. Em 15 de setembro de 1935 foi aprovada a “Lei dos Cidadãos do Reich” (Reichsbürgergesetz), que retirou dos médicos de origem judia a “aprovação” pública (Approbation) para o exercício profissional da medicina. Inserida neste contexto de aberta e legal discriminação e seletividade, a medicina restou nas mãos do regime nazista e transportou as mesmas discriminação e seletividade para suas práticas médicas.
Nesses termos, a solidariedade entre os membros do pacto social não se enfraquece em situações de pandemia. Ao contrário, ela se afirma. Também sob essa perspectiva, a segregação baseada na pretensa bioética das situações pandêmicas não deve se basear numa questão de eficiência na alocação de recursos escassos, mas na preservação do próprio pacto social por meio de critérios singelos e objetivamente aferíveis pela comunidade e rejeitadores de qualquer ideal eugênico de perfeição do ser humano.
Por fim, inclusive em razão das limitações dos estudos epidemiológicos adotados como referenciais para fins de seleção no acesso aos leitos de UTIs, a pretensão de intervenção no domínio da saúde pública não se justifica. A eliminação – sim, vamos dar nome às coisas – de determinadas pessoas com base numa pretensa neutralidade científica, ainda que travestida de uma poderosa roupagem técnica, é um primeiro passo para práticas biotecnológicas seletivas da espécie humana numa escala que causaria inveja a Adolf Hitler.
Isso tem de ser dito. Começa assim o totalitarismo.
1 www.sbbioetica.org.br/Noticia/754/RECOMENDACAO-SBB-N-012020-aspectos-eticos-no-enfrentamento-da-COVID-19
Fazemos, contudo, reservas quanto à parte final da Recomendação, em especial, a Tabela I e o Anexo II, quanto ela remete para a “segunda versão das Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19”, em razão do uso do critério SOFA para a triagem de pacientes: como já dissemos acima, estudos sobre o chamado Sequential Organ Failure Assessment, durante a pandemia decorrente do vírus H1N1, no ano 2009, constataram que o critério se mostrou inadequado para priorizar o acesso às UTIs, uma vez que a mortalidade aferida posteriormente não refletiu as estimativas prévias (Michael D. Christian e outros. Care of the critically ill and injured during pandemics and disasters. Chest Journal, 2014). Não haveria, salvo melhor juízo, estudos científicos consolidados que, para além de qualquer dúvida razoável, permitissem justificar o uso do SOFA, ainda que combinados com outras variáveis.
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