Paradoxo da Corte

Nulidade do julgamento padronizado num recente acórdão do STJ

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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8 de dezembro de 2020, 8h03

O dever de motivação dos atos decisórios está consagrado, pela lei e pela moderna doutrina processual, na esfera dos direitos fundamentais, como pressuposto do direito de defesa e da imparcialidade e independência do juiz.

Assinala, a propósito, Barbosa Moreira que o pronunciamento judicial, destinado a firmar a inteireza da ordem jurídica, deve estar baseado no direito vigente; "e é preciso que esse fundamento se manifeste, para que se possa saber se o império da lei foi na verdade assegurado. A não ser assim, a garantia torna-se ilusória: caso se reconheça ao julgador a faculdade de silenciar os motivos pelos quais concede ou rejeita a proteção na forma pleiteada, nenhuma certeza pode haver de que o mecanismo assecuratório está funcionando corretamente, está deveras preenchendo a finalidade para a qual foi criado" ("A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito", Revista Brasileira de Direito Processual Civil, 16, 1978, pág. 118).

Daí porque, a exemplo da publicidade dos atos processuais, o dever de motivação dos atos decisórios vem catalogado entre as garantias do devido processo legal, estabelecidas nas constituições democráticas, com a primordial finalidade de assegurar a transparência das relações dos jurisdicionados perante o poder estatal e, em particular, nas circunstâncias em que é exigida a prestação jurisdicional.

Embora a garantia do dever de motivação não tenha sido inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais, o legislador constituinte brasileiro a situou nas disposições gerais atinentes ao Poder Judiciário. Seja como for, foi ela contemplada na Constituição Federal em vigor, no artigo 93, inciso IX: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes".

A despeito de não ter traçado a distinção entre as espécies de provimentos decisórios, o artigo 489 do vigente Código de Processo Civil, no que concerne ao dever de motivação, a exemplo do regime anteriormente adotado, preocupa-se mais com a forma do que com o conteúdo.

É de entender-se, no entanto, que as decisões interlocutórias, as sentenças terminativas (isto é, "sem resolução do mérito"), os acórdãos interlocutórios e, ainda, as decisões monocráticas que admitem ou negam seguimento a recurso, comportam fundamentação mais singela, sem embargo da excepcional possibilidade de o juiz ou tribunal deparar-se com episódio que imponha motivação complexa.

As sentenças e os acórdãos definitivos (isto é, "com resolução do mérito") devem preencher, rigorosamente, a moldura traçada no artigo 489, ou seja, conter, no plano estrutural, os elementos essenciais neste exigidos.

Partindo-se, pois, da regra geral insculpida no artigo 11, fácil é concluir que, a rigor, o Código de Processo Civil em vigor não admite pronunciamento judicial, de natureza decisória, despida de adequada fundamentação.

De resto, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial generalizado, prestigiando a citada garantia constitucional, a falta de exteriorização da ratio decidendi do pronunciamento judicial acarreta a sua invalidade.

Ademais, sob diferente enfoque, o nosso Código de Processo Civil revela acentuada preocupação com o dever de motivação das sentenças em hipóteses pontuais. Mesmo preferindo incorrer em inescondível redundância, o legislador procurou ser incisivo, para deixar bem claro que, em determinadas ocasiões mais delicadas, o juiz deve estar atento para fundamentar os seus respectivos atos decisórios.

Vale destacar, nessa linha argumentativa, o disposto no artigo 373, inciso II, parágrafo 1º, in verbis: "Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído".

Acrescente-se, outrossim, que, por outra perspectiva, o vigente diploma processual contém original e importante regra no parágrafo 1º do artigo 489, que arrola determinadas situações — não raras, diga-se de passagem —, nas quais a própria lei se adianta, antevendo ofensa ao disposto no seu respectivo inciso II, que impõe fundamentação. Desse modo, preocupado ainda uma vez com o disposto no supratranscrito mandamento constitucional do dever de motivação, o Código de Processo Civil, de forma até pedagógica, estabelece os vícios mais comuns que comprometem a higidez do ato decisório, seja ele interlocutório, sentença ou acórdão.

Entre as hipóteses previstas nesse aludido parágrafo 1º do artigo 489 encontra-se aquela que veda a pseudofundamentação, vale dizer, "fundamentação artificial", aparentemente padronizada, apta a justificar qualquer ato decisório. 

Se de fato essa norma legal for considerada pelos tribunais, desde que observada com rigor, constata-se facilmente que inúmeros provimentos judiciais, frequentes em nossa atual praxe judiciária, estarão eivados de inequívoca nulidade.

O paradigma mais típico desse criticável modelo de decisão descortina-se aquele que, há muitos anos, inadmite recursos especial ou extraordinário, no âmbito de competência da maioria dos tribunais brasileiros.

Em regra, tal ato decisório monocrático, de todo abstrato e lacunoso, emerge totalmente divorciado dos autos, fazendo até crer que, no limite, não foram examinadas as razões deduzidas na respectiva impugnação.

No que toca, por exemplo, à interposição de recurso especial, com fundamento na violação à disposição de lei federal (artigo 105, inciso III, letra "a", da Constituição Federal), afirmar, simplesmente, em inúmeras decisões padronizadas, que se: "Observa não ter sido demonstrada sua ocorrência, eis que as exigências legais na solução das questões de fato e de direito da lide foram atendidas pelo acórdão ao declinar as premissas nas quais assentada a decisão", não é motivar; é, na verdade, apenas dissimular fundamentação.

Deparando-se com decisão análoga a essa, a 2ª Turma do STJ, em expressivo pronunciamento, no julgamento do agravo regimental no Agravo de Instrumento nº 1.264.053/SP, proveniente do TJ bandeirante, teve oportunidade de decidir que: "A matéria agitada no recurso especial, cuja caminhada foi obstada, merece ser reapreciada no âmbito desta corte de Justiça. Diante disso, necessário se faz determinar a subida do recurso especial, sem prejuízo do juízo de admissibilidade definitivo que será oportunamente realizado neste tribunal. Ademais, o despacho de admissibilidade negativo, exercido pelo tribunal de origem, é extremamente genérico. Este fato, por si só, prejudica o exercício do direito de defesa da parte, que fica impossibilitada de compreender quais os pontos específicos que obstaram a subida do apelo…". De aduzir-se que, no corpo desse importantíssimo aresto, de relatoria do ministro Humberto Martins, lê-se o seguinte: "Por fim, não custa lembrar que quando o tribunal de origem afirma que os fundamentos do recurso especial não são suficientes para infirmar as conclusões do acórdão, ele acaba por adentrar na questão de fundo e a exercer juízo de valor que compete a esta corte superior".

Igualmente, nessa mesma linha de raciocínio, serão também "reprovados" alguns atos decisórios do próprio STJ, visto que, à guisa de fundamentação, reportam-se ou simplesmente transcrevem a ementa de precedentes.

E isso, porque incide nessas situações a regra do inciso V do parágrafo 1º do artigo 489, que reitera o quanto já está, de certo modo, previsto no precedente inciso III. Coíbe-se aqui a mera referência a súmula ou precedente judicial no corpo da sentença, sem que o juiz demonstre, de forma cabal, a sua pertinência com o objeto da controvérsia.

Em perfeita simetria com esta regra, dispõe o parágrafo 1º do artigo 927 do Código de Processo Civil que, na dinâmica da observância das decisões arroladas em seus respectivos incisos, os juízes e tribunais deverão considerar as regras dos artigos 10 e 489, parágrafo 1º, isto é, ressaltar que a súmula ou precedente invocado se identifica com o cerne da tese debatida no processo.

Daí, porque, o juiz ou tribunal não poderá fundamentar o seu respectivo decisum baseando-se exclusivamente em precedentes pronunciamentos pretorianos, sem qualquer argumentação adicional, deixando de revelar fundamentação própria, conexa com o objeto do processo sob julgamento.

Em recentíssimo acórdão, enfrentando essa questão, a 3ª Turma do STJ, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial nº 1.880.319/SP, com voto condutor do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, anulou um acórdão da corte de Justiça paulista, lavrando-se a seguinte ementa:

"1. Controvérsia acerca da validade de acórdão genérico prolatado pelo Tribunal a quo, delegando ao Juízo de primeiro grau a atribuição de aplicar o referido acórdão ao caso concreto, sob a justificativa da existência de multiplicidade de recursos versando sobre questões atinentes à liquidação da sentença proferida na ação civil pública nº 0632533-62.1997.8.26.0100/SP.
2. Nos termos do artigo 489, parágrafo 1º, inciso V, do CPC/2015, não se considera fundamentada a decisão ou acórdão que 'se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos'.
3. Imprescindibilidade, no exercício da jurisdição em caráter difuso, da resolução das questões atinentes à especificidade do caso sob julgamento.
4. Inobservância da regra do artigo 489, parágrafo 1º, inciso V, do CPC/2015 no caso concreto.
5. Inviabilidade de delegação de competência funcional hierárquica ao juízo de primeiro grau para aplicar o referido acórdão genérico ao caso dos autos, em virtude da ausência de previsão legal.
6. Recomendação para que seja instaurado incidente de demandas repetitivas no tribunal de origem para enfrentar de maneira uniforme a multiplicidade de recursos identificada naquele sodalício.
7. Anulação do acórdão recorrido por negativa de prestação jurisdicional, restando prejudicado o mérito recursal".

Como se extrai desse excelente julgado, a determinação para que juízes de primeiro grau apliquem "acórdão genérico" a um caso concreto configura, na verdade, delegação de competência jurisdicional. Nesse sentido, bem é de ver que não há amparo legal para tal fundamentação.

Partindo-se, pois, dessa premissa, o acórdão da 3ª Turma anulou o julgado recorrido, que então havia sido proferido, sob a alegação da existência simultânea de múltiplos recursos relacionados à decisão interlocutória proferida no bojo de liquidação de sentença, que julgou uma ação civil pública então aforada contra uma empresa de telefonia.

Diante da interposição de mais de seis mil recursos, uma das turmas o TJ-SP decidiu elaborar um voto padrão que abarcasse o posicionamento definitivo sobre todas as questões controvertidas na hipótese concreta. Assim, a orientação constante do julgado foi a de impor ao juiz de primeiro grau os termos do acórdão em todos os casos análogos.

No entanto, o relator do recurso interposto pela empresa, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, asseverou que, a despeito de o número de recursos interpostos perante o órgão fracionário do TJ-SP ser realmente alarmante, a ponto de comprometer a capacidade da corte de julgar em tempo razoável, "a solução para esse problema não pode escapar dos limites da legalidade". A 3ª Turma, secundando os termos do voto do relator, assentou que: "No caso dos autos, a lei processual civil foi flagrantemente desrespeitada ao se prolatar um acórdão genérico, que apenas elenca os entendimentos pacificados na jurisprudência daquela corte, sem resolver, efetivamente, as questões devolvidas no caso concreto sob julgamento".

Depois de afirmar que as decisões judiciais devem ser particularizadas e jamais padronizadas, a turma julgadora concluiu, de forma correta, que: "Registre-se que a solução legalmente prevista no Código de Processo Civil de 2015 para enfrentar o cenário de multiplicidade de recursos identificado pelo relator do tribunal de origem é o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), previsto no artigo 976".

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