Procurador "eleito" por órgão inexistente não pode instaurar inquérito, diz TRF-3
14 de agosto de 2020, 9h13
O procurador "eleito" sem qualquer critério republicano, por órgão inexistente na estrutura do Ministério Público, está investido inconstitucionalmente no cargo e não tem capacidade postulatória.
Com base nesse fundamento, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região trancou inquérito instaurado e conduzido pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC). A decisão é desta quinta-feira (13/8).
O caso concreto envolve mandado de segurança ajuizado pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp). Nele, a entidade solicitou que inquérito civil público aberto pelo PRDC, para colher informações sobre planos de incentivo praticados por empresas de comunicação, fosse trancado.
A turma seguiu, por unanimidade, voto-vista do desembargador Fábio Prieto de Souza. O magistrado não apreciou o mérito, mas analisou detalhadamente a incapacidade postulatória do procurador em exercício na PRDC.
Nos Estados, o procurador-chefe, o procurador eleitoral e o procurador dos Direitos do Cidadão são eleitos em sistema de chapas, como ocorre em sindicatos, por colégios de procuradores. O mandato tem o período de dois anos.
Trata-se de três funções estratégicas: a primeira tem poder organizacional e administrativo; a segunda, atribuição sobre a classe política; a terceira — responsável, no caso concreto, pela instauração do inquérito —, pode ajuizar ações contra o poder econômico e político.
Ocorre que, com exceção de uma portaria de 2003, nenhuma previsão legal confere a esses colégios estaduais o poder de investir procuradores em cargos públicos. Isso porque a Constituição determina que as promoções e remoções respeitem os critérios de merecimento e antiguidade. O estabelecimento desses critérios coroou a luta de gerações de procuradores — para que tivessem a mesma proteção da magistratura.
As eleições também contrariam a Lei Complementar 75/93, cujo artigo 49, inciso III, estabelece como função do procurador-geral da República designar o procurador federal dos Direitos do Cidadão e os titulares da Procuradoria nos Estados e no Distrito Federal, mas não a partir de um pleito organizado por entidade inexistente.
"Não se pode pretender a degradação do regime constitucional de garantias e prerrogativas, de que são expressões concretas a promoção e a remoção, os critérios de merecimento e de antiguidade, para dar luz à novo procedimento, a partir do conceito estrito e estreito de ato de designação", afirmou o desembargador em seu voto.
Segundo explicou, "colégios estaduais de procuradores da República" não existem no MP e "qualquer movimentação na carreira, quanto aos órgãos de execução do Ministério Público, fica na estrita dependência dos procedimentos de promoção ou remoção, pelos critérios alternados do merecimento e da antiguidade".
O fato das investiduras feitas nos colégios estaduais fixarem o tempo de mandato como sendo de dois anos, diz o magistrado, também não tem amparo, porque a lei complementar determina que todos os cargos do Ministério Público da União são vitalícios, salvo os de procurador-geral da República, procurador-geral do Trabalho, da Justiça Militar e da Justiça.
Fere, ainda, o regime da inamovibilidade das funções, definido no artigo 128, parágrafo 5º, I, da CF. A previsão garante a vitaliciedade de membros do Ministério Público em suas funções após dois anos de serviço.
Portaria PGR 588/03
As eleições começaram em 2003, quando a Procuradoria-Geral da República editou a Portaria PGR 588/03. Nela, ficou determinado que "decorrerá de processo eletivo a designação, pelo procurador-geral da República, do procurador-chefe, do procurador regional eleitoral e do procurador regional dos Direitos do Cidadão, pelo período de dois anos, permitida uma recondução".
Entretanto, diz a decisão, "se, em obediência à Constituição Federal, lei complementar não pode submeter as funções ministeriais a rodízio, em sistema de mandato, menos ainda, singela portaria".
Mais recentemente, em 2009, um outro ato da PGR, dessa vez a Portaria 145, buscou validade em sua irmã mais velha. Para o magistrado, entretanto, a Lei Complementar 75/93 é clara quanto à atribuição do Conselho Superior do Ministério Público, não da PGR, na elaboração de normas sobre a designação de integrantes da carreira.
"A portaria PGR nº 145, contra a Constituição Federal e a norma complementar do provimento vitalício, reduziu o exercício funcional à assunção de simples cargo de confiança, procedimento manifestamente incompatível com o regime de garantias e prerrogativas do Ministério Público e da Sociedade", diz.
Com isso em vista, o TRF-3 determinou o trancamento do inquérito aberto pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão e ordenou a devolução de todos os documentos encartados nos autos.
Lista tríplice
A portaria de 2003 surgiu no mesmo ano em que o então presidente Lula passou a escolher o procurador-geral da República a partir de lista tríplice organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
Em tal sistemática, os nomes dos três candidatos mais votados entre os membros do MP são apresentados ao presidente da República, que escolhe o novo PGR considerando essa "eleição".
A medida é criticada pelo desembargador Fábio Prieto desde que virou tradição nos governos petistas. Para ele, o Sistema de Justiça e as Forças Armadas, chamados entes garantidores de última instância, não podem criar facções.
O desembargador afirma que grupos criados no seio do MP não têm a mesma legitimidade conferida ao presidente da República por meio do voto. Assim, embora a lista tríplice aparente ser um processo democrático, funciona no sentido oposto.
Em entrevista concedida à ConJur em 2015, o magistrado disse que esse "assembleísmo" deve ser combatido e é um dos pontos essenciais para entender o movimento que se instaura nos conselhos.
"Isso é uma violação à Constituição e à democracia que está depositada nas mãos do povo brasileiro. O povo elege o presidente da República para escolher livremente os altos cargos da nação, inclusive o procurador-geral da República. As associações não podem participar dessa escolha, pois os agentes políticos da entidade têm poder de Estado, que o eleitor não tem. Assim fica absolutamente desigual", afirmou à ConJur em 2015.
Na decisão desta quinta, o magistrado voltou a criticar esse sistema de indicações. "Contra os seculares mecanismos de falseamento do voto popular, é oportuno lembrar que ‘partes interessadas’, na gestão do Ministério Público, não são só os sócios de associação privada – a alta respeitabilidade do quadro associativo não altera o regime constitucional de cooptação governamental", disse.
Ele também lembrou, em sua decisão, que o próprio ex-presidente Lula reconheceu, em entrevista concedida à ConJur no início deste ano, que a escolha do PGR por meio da lista tríplice é um equívoco.
"Eu tinha um problema, que era um viés da minha origem sindical. Eu achava que o indicado tinha que ser o primeiro. Obviamente que isso também não prova competência. Prova que o cara teve mais força dentro da categoria, ou seja, da corporação. É preciso estabelecer outros critérios para aferir como a pessoa se comporta na sociedade, quais são os valores da pessoa, os valores jurídicos, que visão a pessoa tem dos problemas sociais do Brasil, senão, você não tem chance de acertar", disse o ex-presidente à época.
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5007746-46.2017.4.03.6100
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