Do "direito adquirido" à orientação jurisprudencial
8 de agosto de 2020, 8h00
Na última coluna do Observatório, Victor Marcel Pinheiro trouxe reflexão oportuna sobre a formação de precedentes. Aproveitando esse tema geral, proponho colocar em discussão a instigante questão relacionada à modulação dos efeitos de decisões judiciais, prevista no artigo 927, § 3º, do CPC, segundo o qual "na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".
Já havíamos tratado sobre o tema da modulação em agosto de 2014, antes do advento do atual Código de Processo Civil[1]. Na ocasião, reconhecíamos que a expectativa de previsibilidade e segurança jurídica se projetava no campo da jurisprudência, estando na pauta das discussões à época formas de prevenir viradas bruscas de orientações jurisprudenciais, sobretudo dos tribunais superiores, e de evitar surpresas na prestação jurisdicional.
Naquela época, alguns defendiam a aplicação ampla, em todos os campos da jurisdição, do artigo 27 da Lei 9.868, de 1999, segundo o qual "ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".
Defendíamos, naquela oportunidade, que o artigo 27 da Lei 9.868, de 1999 não seria um expediente disponível para a generalidade do Poder Judiciário, dado que não se deve confundir os mecanismos próprios de atuação do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional que lhe compete, com a prática judiciárias dos demais juízes e tribunais, mesmo que superiores.
Essa lacuna agora, sem dúvida alguma, restou preenchida pelo mencionado artigo 927, § 3º, do CPC, admitindo a aludida modulação nas hipóteses em que o Tribunal Superior modificar sua orientação ("alteração da jurisprudência dominante"), quando houver razões de interesse social e segurança jurídica.
Para interpretar o dispositivo, parece natural que se inspire no artigo 27 da Lei nº 9.868, de 1998, mas com a cautela de não mimetizar, sem acurada reflexão, o entendimento do STF a respeito dessa ferramenta do controle de constitucionalidade na atuação dos demais Tribunais Superiores, sendo indispensável a formação de uma dogmática processual própria[2].
Para ilustrar, é válido pensar no Superior Tribunal de Justiça. Não obstante o STJ tenha nos últimos 20 anos assumido, paulatinamente, a função de uma Corte de Precedentes[3], essa feição do STJ não permite atribuir-lhe uma função assemelhada a de uma Corte Constitucional (da legalidade), pois os planos da legalidade e da constitucionalidade não são assimiláveis.
A jurisdição (ordinária), vale lembrar, voltada à composição de conflitos ou ao suprimento de vontades pela aplicação da lei, é marcada pela imparcialidade do julgador que decorre da sua vinculação ao direito posto, destinando-se a jurisdição à atuação da vontade do direito sobre a vontade das partes.
Na jurisdição ordinária, pois, o juiz reconhece o direito (sem colocá-lo em xeque) e o aplica ao caso em julgamento. Mesmo no exercício do controle difuso de constitucionalidade, há uma diferença de atitude do julgador quando aplica a lei ou quando declara a sua inconstitucionalidade incidental (reconhecendo sua aplicação em tese no caso em julgamento, mas deixando de utilizá-la em função do vício da inconstitucionalidade), daquela relativa à jurisdição constitucional prestada pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade.
Igualmente, não se afirma que "o juiz é a boca da lei", mas sim que a atividade judicial padrão deve sim ser concebida como uma atividade estatal que os processualistas chamam de secundária e substitutiva (Calamandrei e Chiovenda). Relembro a ponderação de Ingborg Maus:
"A concepção de Montesquieu do juiz como um autômato (‘inanimé’) de aplicação da lei contém, na verdade, a excessiva ilusão de que toda sentença em particular no caso de aplicação (singular) seria definitivamente determinada pela formulação da lei (geral). No entanto, Montesquieu profere neste contexto o entendimento correto de que, em todo caso, a vinculação legal da justiça garante, em geral, a liberdade dos cidadãos diante de abusos estatais arbitrários. Sem esta vinculação, 'viveríamos na sociedade sem conhecer exatamente as obrigações que contraímos nela'[4]."
E aqui entra o cerne da nossa reflexão sobre a modulação, nos termos do artigo 927, § 3º, do CPC, sobre a necessidade de vincular eventual modulação de decisão pelos Tribunais Superiores quando houver modificação de sua jurisprudência (a indicar que a decisão da modulação só está disponível para o Tribunal Superior que altera sua jurisprudência e não para as instâncias inferiores) e houver razões de interesse social e segurança jurídica, com o objetivo de assegurar que a sociedade conheça "exatamente as obrigações que contraímos nela".
Pamela Stephens, ao tratar da doutrina da retroatividade (das decisões judicia da Suprema Corte norte-americana), lança algumas luzes sobre a discussão[5].
Relata a professora Stephens que, no âmbito penal, a Suprema Corte, a partir da decisão Griffith x Kentucky, decidiu que "ideias fundamentais de correção e de procedimento legal ditam que as mesmas regras devem ser aplicadas a todos os casos semelhantes em revisão direta"[6], seguindo o antigo entendimento do Justice Harlan, no sentido de que o devido processo legal exige que a Corte "aplique seu melhor entendimento sobre princípios constitucionais a todos os casos perante ela em revisão direta e ideias fundamentais de correção ditam que partes semelhantemente situadas sejam tratadas semelhantemente"[7].
Por outro lado, segundo ela, em matéria cível, o teste da retroatividade observa os seguintes parâmetros (teste de 3 fases do caso Chevron Oil): 1) se a Corte anunciou um novo princípio de direto; 2) o objetivo e o efeito desse novo princípio e se o processo retroativo fomentará esse objetivo; 3) a iniquidade de aplicar retroativamente o novo princípio[8]. Fácil perceber que o primeiro critério dialoga com o requisito da alteração da jurisprudência dominante, previsto no artigo 927, §3º, do CPC.
No caso American Trucking vs. Smith, a Suprema Corte assentou que o princípio que está na base da doutrina de irretroatividade, no âmbito civil, é a proteção da legítima confiança (enquanto na retroatividade penal há o princípio da igualdade e da expansão da proteção aos demandados criminais em face do Estado).
Relata a professora Pamela Stephens que a discussão sobre a retroatividade ainda gera perplexidades na Suprema Corte dos Estados Unidos, havendo movimentos pendulares para ora se aproximar da presunção da retroatividade da nova orientação e ora dela se afastar. Mas, para os fins dessa breve reflexão, essa experiência oferece subsídios para aprimorar nosso entendimento sobre o instituto.
Entendo que a definição de interesse social e segurança jurídica, a justificar a decisão ou não de modulação, deve observar parâmetros do direito material.
No plano do direito público, é forte a tendência de expandir a esfera de proteção do cidadão frente ao Estado. São indicativos dessa tendência o disposto nos artigos 140 e 146 do CTN, para o âmbito das lides tributárias, ou no artigo 2º, parágrafo único, XIII, da Lei nº 9.784, de 1999, para questões envolvendo o contencioso administrativo[9], a que se agrega ainda o artigo 23 da LNDB, recentemente introduzido no nosso ordenamento jurídico. No plano do direito eleitoral a questão já foi enfrentada considerando as peculiaridades de cada ciclo eleitoral[10]. No âmbito do direito privado, a discussão parece ser mais complexa, dado que sempre haverá o litigante que busca ver sua conduta avaliada pela orientação passada, que balizou sua decisão e, do outro lado, a contraparte que com essa interpretação antiga nunca se conformou, levando ao Judiciário sua irresignação. A boa-fé certamente será um instituto relevante para essa reflexão.
É preciso destacar, no entanto, que a regra que deriva do artigo 927, § 3º, do CPC, é a orientação geral de que a nova orientação do Tribunal Superior deve retroagir, salvo se preenchidos os requisitos postos na norma. Essa leitura prestigia uma visão do princípio da Separação de Poderes, segundo o qual o Poder Judiciário é estruturado com a função de dizer o que o direito é, deixando ao legislador a função de modificá-lo[11].
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse aqui o portal do OJC.
[1] Em artigo intitulado “modulação dos efeitos não pode ser banalizada pelo Poder Judiciário”, https://www.conjur.com.br/2014-ago-09/observatorio-constitucional-modulacao-efeitos-nao-banalizada-poder-judiciario
[2] Uma rápida pesquisa é suficiente para demonstrar que há hoje no Brasil farta doutrina processual sobre o tema de precedentes, em geral, e sobre a modulação, em específico, em que se identificam ricas divergências. Apenas para ilustrar: DIDIER JR., Fredie et al. (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016 (com artigos de vários autores, como Lenio Streck, Georges Abboud, Daniel Mitidiero, Cruz e Tucci); PEIXOTO, Ravi. A modulação de efeitos em favor dos entes públicos na superação de precedentes: uma análise da sua (im)possibilidade. Revista de processo, v. 246, p. 381-399, ago.2015; PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2016 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014; THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015; MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2018; ARRUDA ALVIM, Teresa. Modulação na alteração da jurisprudência firma ou de precedentes vinculantes. São Paulo, RT, 2019.
[3] É o que se revela por sua função constitucional de garantir a integridade da legislação federal e a uniformidade de sua interpretação (artigo 105 da Constituição), pelas reformas legislativas que ampliaram a força de suas decisões, no CPC-73 e no CPC-2015 (vide, por exemplo, os arts. 557, 518 e 543-C do CPC-73, com a redação conferida pelas Leis nº 9.756, de 1998, 11.276, de 2008, e 11.672, de 2008, respectivamente) e pelas nossas práticas judiciárias.
[4] MAUS, Ingeborg. Separação dos poderes e função judiciária: uma perspectiva teórico-democrática. In: BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (org.). Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 30
[5] STEPHENS, Pamela J. A nova doutrina da retroatividade: igualdade, confiança e stare decisis. Trad. Pablo Giordano Bernardi Bombardelli, revisão de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2012.
[6] Opinião do Justice Stevens em American Trucking v. Smith, 496 US at 212 apud STEPHENS, op.cit, p. 40.
[7] STEPHENS, op.cit, pp. 40-41.
[8] STEPHENS, op.cit, pp. 30-33.
[9] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Irretoratividade e jurisprudência judicial. In: FERRAZ JR. Tércio Sampaio; CARRAZA, Roque Antonio; NERY JUNIOR, Nelson. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. 2ª ed. São Paulo, Manole, 2009. pp. 1-13.
[10] Sobre o ponto, vide RE 637.485 (STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 21/5/2013) e a dissertação de mestrado de Wagner Une (UNE, Wagner Akitomi. O princípio da segurança jurídica e modulação dos efeitos da alteração da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitora. Brasília, IDP, 2017).
[11] Nesse sentido, o voto do Min. Teori Zavascki, quando integrava o STJ, nos autos do paradigmático julgamento ocorrido no ERESP 738.689 (STJ, 1ª Seção, DJ 22/10/2007).
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