Embargos Culturais

Clarice Lispector, a felicidade clandestina e a dimensão da consciência

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15 de setembro de 2019, 8h00

Juridicamente falando, de pouco adiantaria o acréscimo do direito à felicidade nas declarações de direitos que ornam textos constitucionais. A questão não é de quantidade. É de qualidade. Não é matéria jurídica. Ao direito foge regulamentar o que se passa em nossa alma, já diziam os jusnaturalistas que cismavam com as dissemelhanças entre direito e moral. Além do que, a felicidade também é um pouco clandestina. A felicidade não é matéria de direito. E nem de fato. Não comporta provas. E nem se presume. E só é reconhecida, quando em nós apenas seja uma saudável e terna lembrança. Vale pelo que foi, ou pelo que desejamos. Mas raramente se constata no que é e no que somos.

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Há uma referência literária que ilustra essa reflexão. Felicidade clandestina, de Clarice Lispector[1], é conto densamente melancólico, como melancólica me parece a maior parte dos textos dessa escritora brasileira nascida na Ucrânia, de família judaica, e que chegou ao Brasil com dois meses de idade. Clarice perdeu a mãe quando tinha nove anos. Escritora vigorosa, contista incomparável, intimista, Clarice é um desafio, enigma permanente, leitura sempre surpreendente.

Tem-se nesse conto, Felicidade clandestina, em suas várias e possíveis interpretações, entre outras, uma declaração de amor pelos livros. A escritora reconhece que aqueles que vivemos entre livros, e pelos livros, vivemos uma vida encantada, ainda que eventualmente melancólica. Livros provocam todo tipo de emoções. A dimensão e o limite daqueles que compartilhamos a vida com os livros se encontram no infinito e nas possibilidades e ambiguidades dos próprios livros.

Tem-se a impressão de que Clarice compreende que vivemos muitas vidas, que somos múltiplos, ainda que encerrados em nós mesmos. Protagonizamos infinitos papeis. O tema da felicidade é recorrente nos melancólicos, e não sei se a recíproca seria verdadeira. Os supostamente felizes, de tão felizes, esquecem-se de que há infelizes, ou não veem que também há infelicidade no mundo. Por isso são felizes.

No conto Felicidade Clandestina a autora apresenta uma menina “(…) gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados [que]tinha um busto enorme (…) enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas”. No entanto, prossegue Clarice, aquela menina possuía “(…) o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. A menina talvez encarnava todos os desejos de Clarice. A menina era talentosamente cruel. Humilhava a narradora [Clarice], negando-lhe os livros que esta última pedia emprestados. Esses livros, a menina de cabelos meio arruivados certamente nunca lia.

No texto, a narradora casualmente ficou sabendo que a ruivinha possuía belíssima edição de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Foi com esse livro que a menina tiranizou Clarice, exercendo “com calma felicidade o seu sadismo”. O livro de Lobato, segundo Clarice, “era um livro grosso (…) um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”. A menina prometeu que emprestaria o livro. Clarice deveria apanhá-lo no dia seguinte.

A narradora foi à casa da ruivinha arrogante. E por muitos dias Clarice repetiu a tentativa. E todos os dias a menina surpreendia com uma evasiva, uma desculpa, um senão, um porém. O livro nunca estava em casa. Estava com alguém, em algum lugar, em outro lugar. Conta Clarice que um dia, quando estava à porta da casa da menina, ouvindo humilde e silenciosamente mais uma recusa, subitamente apareceu a mãe da tiraninha.

Talvez, prossegue a escritora, a mãe teria percebido sua presença diária à porta da casa. A mãe pediu explicações. Seguiu confusão e silêncio, que a narradora marcou como entrecortados por palavras pouco elucidativas. A mãe lembrou à filha que aquele livro jamais havia saído de casa, e que a menina jamais quis lê-lo.

O livro foi imediatamente emprestado à Clarice, pelo tempo que quisesse. Segundo a narradora, o pelo tempo que quisesse, valia muito mais do que a posse definitiva do próprio livro. Incrédula, pegou o livro. E conta que, chegando em casa, começou a lê-lo. Fingia que não tinha o livro, porque queria o susto de o ter. Fingia que não sabia onde havia guardado o livro. Conta Clarice que criava as mais falsas necessidades, porque queria viver a felicidade clandestina de possuir aquele livro. Sentia-se uma rainha delicada. Balançava na rede com o livro. Concluiu que a felicidade era tamanha, que não se sentia uma menina com um livro, sentia-se uma mulher com seu amante. Contando as brincadeiras de infância, o jogo de elástico.

Ainda que na forma de conto, a estória tem um traço inegavelmente autobiográfico, que não se resume somente ao vento de Recife, reforçado pela narrativa em primeira pessoa. Clarice Lispector é inconfundível. Esse desejo pelos livros é mais do que a noção freudiana de pulsão (Trieb); é muito mais do que carga energética que enfrenta uma angústia do legítimo desejo de sairmos de nós mesmos, e de nos libertarmos dos desencontros de nossas trajetórias. Pode ser uma fuga. O livro era o significante da felicidade.

A felicidade talvez esteja para a existência como o dolo para o crime, a reserva mental para o vício redibitório, a responsabilidade solidária para a vontade das partes, o lucro cessante para as coisas fungíveis, e a presunção para a inocência. É também vontade. E é juridicamente intangível. É grandeza de reconhecimento íntimo; satisfação incomunicável, mas indisfarçável. Não se dispõe na Constituição. Não se garante pela lei. Justamente porque foge ao padrão, ao regulável e ao alcançável. Porque, muitas vezes, realiza-se na clandestinidade e no livre espaço dos sonhos, como sugere esse belíssimo conto de Clarice Lispector.

 


[1] LISPECTOR, Clarice, Felicidade Clandestina a partir de MORRICONI, Italo, Os Melhores Cem Contos Brasileiros do Século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

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