Você sabe o que é fundamentação 'per relationem'?
13 de setembro de 2019, 8h00
A motivação das decisões judiciais é uma garantia expressamente prevista no art. 93, IX, da Constituição e é fundamental para a avaliação do raciocínio desenvolvido na valoração da prova. Serve para o controle da eficácia do contraditório, e de que existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder, principalmente se foram observadas as regras do devido processo penal. Trata-se de uma garantia fundamental e cuja eficácia e observância legitimam o poder contido no ato decisório. Isso porque, no sistema constitucional-democrático, o poder não está autolegitimado, não se basta por si próprio. Sua legitimação se dá pela estrita observância das regras do devido processo penal, entre elas o dever (garantia) da fundamentação dos atos decisórios.[1]
O problema começa quando isso não é observado e o julgador lança mão da fundamentação "per relationem". Mas, afinal, o que é isso?
É quando o juiz, ao invés de dar a sua motivação e as suas razões, ele se limita a repetir os argumentos alheios, quando se restringe a fazer uma mera remissão ou referência aos argumentos alheios. No processo penal se manifesta pela simples remissão ou transcrição por parte do julgador, ao alegado pelo Ministério Público. Sim, porque não há noticias de fundamentação per relationem dos argumentos defensivos. A defesa, como regra, não tem essa legitimidade toda, ao contrario do MP, cuja íntima relação e interação com os julgadores já faz parte da tradição histórica do primitivo processo penal brasileiro, agudizando ainda mais a diferença de tratamento.
Então o julgador, ao invés de dar conta do seu dever de fundamentar, adota os argumentos alheios, um recorta e cola. Inacreditavelmente, os tribunais superiores foram coniventes com essa prática vergonhosa.
Um caso interessante e recentemente julgado, em sede de embargos de divergência, bem tratou da matéria (ERESP Nº 1.384.669/RS – Relatoria do Min. Néfi Cordeiro)[2].
Antes de entrar no objeto, apenas um esclarecimento acerca do caminho processual percorrido: houve apelação na qual foi proferido o acórdão sem fundamentação idônea, com posterior interposição de Embargos de Declaração, obviamente denegados. Posteriormente a defesa ingressou com Recurso Especial, não admitido. Agravo em Recurso Especial, denegado em decisão monocrática pelo Ministro Relator. A defesa apresenta Agravo Regimental, que foi desprovido pela Quinta Turma. Muitos dariam a questão por encerrada, mas é preciso saber manejar bem os recursos processuais e conhecer as decisões dos tribunais superiores. Este é o lugar de conhecer as ferramentas processuais e jogar de modo assertivo.
Fazendo o cotejo analítico desta decisão proferida em Agravo Regimental, que aceitou a decisão 'per relationem', com outra decisão proferida na Sexta Turma no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 836.281/RS, em que foi dado tratamento diferente para a mesma matéria, a defesa apresenta um recurso pouco conhecido e manejado, os Embargos de Divergência em Recurso Especial, cujo objeto é exatamente esse: uniformização de jurisprudência quando há divergência de entendimento, sobre um mesmo tema, entre as duas Turmas.
Após toda essa verdadeira maratona recursal (com uma agravante: acusado preso preventivamente há 10 anos), a unanimidade a Terceira Seção do STJ deu provimento aos embargos de divergência e anulou o acórdão do Tribunal de Justiça, concedendo ainda habeas corpus de ofício para o acusado diante do manifesto excesso de prazo da prisão e ausência de atualidade do periculum libertatis.
Isso serve ainda para mostrar o outro lado do discurso punitivista, daqueles que sustentam haver excessos de recursos e abuso do direito de recorrer. Não existe (ab)uso do direito de recorrer quando se utiliza de recursos legalmente previstos. E, felizmente previstos, sob pena de gravíssimas injustiças/erros (como a presente) se perpetuarem. Como seria o caso.
Vejamos agora a questão da fundamentação 'per relationem'. No caso analisado, o desembargador relator afastou 09 teses preliminares com a seguinte decisão: "rejeito as preliminares dos recursos e o faço com os mesmos argumentos do ilustre Procurador de Justiça, Dr XXX, que bem analisou as questões levantadas pelas defesas, entendendo da desnecessidade de repisá-los, até porque eles são do conhecimento dos interessados."
Simples assim. Nove teses defensivas afastadas com uma decisão absolutamente sem fundamentação e exclusivamente remissiva. Infelizmente essa não é uma prática isolada, tanto por parte desse mesmo relator (que já teve outros acórdãos anulados pelo mesmo motivo), mas também em outros Tribunais.
E onde está a divergência?
Enquanto a Quinta Turma legitimou no caso do recorrente a adoção de parecer ministerial sem qualquer fundamentação específica, a Sexta Turma condiciona a validade da fundamentação per relationem ao acréscimo de fundamentação. Conforme decidido no AREsp nº 836.281/RS, julgado pela Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, não pode o acórdão utilizar-se da inteireza do parecer do MP " sem agregar qualquer fundamento próprio, mínimo que fosse, proceder este que não se coaduna com o imperativo da necessidade de fundamentação adequada das decisões judiciais, e que se afasta do entendimento adotado nesta Corte Superior a respeito do tema. De fato, este Tribunal Superior admite a técnica de fundamentação denominada per relationem ou aliunde, hipótese em que o ato decisório se reporta a outra decisão ou manifestação existente nos autos e as adota como razão de decidir. Não obstante, em respeito ao postulado constitucional da necessidade da motivação adequada e suficiente das decisões judiciais, previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, exige-se do magistrado certa dose de fundamentação própria, concreta, ainda que sucinta, a respeito das alegações trazidas pela parte no corpo do recurso aviado, situação inocorrente in casu, já que o Tribunal utilizou-se tão somente e exclusivamente do parecer ministerial, sem agregar, uma linha sequer que fosse, de fundamentação própria."
Acolhendo os Embargos de Divergência, a Seção decidiu que a fundamentação 'per relationem' exige acréscimo de fundamentação e não pode se limitar a fazer remissão ministerial sem tecer qualquer consideração acerca das preliminares arguidas, pois não se coaduna com o imperativo da necessidade de fundamentação adequada das decisões judiciais.
É preciso compreender que esse método de julgamento não pode ser endossado, pois viola permanentemente o devido processo legal dos acusados. Mais do que anular o presente caso, trata-se de passar um standard de legalidade obrigatório a ser seguido pelos julgadores, proibindo o método de “cópia e cola” em acórdãos. Mais um passo para garantir o devido processo legal substancial.
Clique aqui e confira o fato narrado por Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Junior.
[1] LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal. 16ª Edição, Editora Saraiva, p. 107; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2019.
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