Embargos culturais

Sansão e as ambiguidades da admiração e do desprezo

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20 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
Sansão (o Sol, o Ensolarado) é personagem do Velho Testamento que nos propõe questões fundamentais sobre quem somos, o que pensamos, e com quem vivemos. É um lembrete permanente de que a vida exige discernimento, paciência, tolerância. Do ponto de vista literário (e minhas reflexões são de literatura e direito, e não de teologia, não tenho competência ou treinamento para isso) Sansão nos desperta, ao mesmo tempo, admiração e desprezo. É uma ambiguidade permanente. Sanção é de uma bondade certamente maquiavélica. Contradição maior não pode haver.

Sansão é um dos personagens do livro de Juízes, de autoria desconhecida, atribuído tradicionalmente a Samuel, a quem a tradição também conferiu a autoria do livro de Rute. Data, provavelmente, de cerca do ano 1.000 a.C. Ao lado de Otoniel, Débora, Baraque, Gideão, Jefté, Jair, e tantos outros, Sansão viveu num período difícil para os israelitas, então em constante conflito com os filisteus. Sansão era originário do campo de Dã, ao sul da Palestina. Essa tribo remontava a um filho de Jacó.

A tradição não dá conta de que Sansão era um nazireu. Isto é, separado e consagrado para servir a Deus. Submetido a um voto, era vinculado a muitas proibições: não podia beber álcool, tocar um corpo morto e cortar o cabelo. Sua força, assim, não derivava necessariamente de sua imensa cabeleira. Decorria de uma aliança, simbolizada no cabelo. Tem-se aqui inclusive uma pista para se afirmar que Samuel também seria um nazireu, porque sua mãe, Ana, teria afirmado que sobre a cabeça do filho não passaria navalha. O simbolismo da força de Sansão, representado por seu cabelo, é decorrência de um pacto de devoção, e não de um fato biológico e inexplicável.

Fisicamente imbatível (matou um leão, tirou e carregou as portas de Gaza), era ao mesmo tempo moralmente deplorável (era um incontido). Temperamento colérico e irrefletido, Sansão rompeu com a noiva na festa do casamento. Exasperado com o sogro que entregou a pretendente para outro homem, oferecendo como opção uma outra filha, Sansão jogou contra aquela gente toda sua vingança. Amarrou 300 raposas pela cauda, de duas em duas, atando tochas de fogo. Na fuga desesperada os animais tocaram fogo em todas as plantações.

A Sansão faltava domínio próprio e senso de proporcionalidade. Por vezes, era um pueril. Essa tolice não se acomodava com a posição política que protagonizava. Sansão era um juiz, e nessa qualidade, precisava de bom senso e de discernimento. Vingativo ao extremo, argumenta-se que não aprendera a lição, no sentido de que somente a Deus a vingança pertencia, conforme escrito em Deuteronômio.

Atraído por Dalila, que o traiu, a pedido e soldo dos príncipes filisteus, Sansão também simboliza aqueles que se acreditam amados. Talvez, como todos os mortais, Sansão viveu aquela angústia sintetizada na frase de Borges, para quem, na vida, busca-se, simplesmente, amar, e ser amado. Essa busca, muitas vezes, é a navalha em nossos cabelos e senha para nossa decaída.

Ainda que tentasse várias vezes enganar Dalila, Sansão ao fim revelou que sua força decorria de seu cabelo. Dalila, recompensada com algumas mil moedas de prata supervisionou o corte do cabelo de Sansão, enquanto o indisciplinado juiz dormia. Traição, suborno, irresponsabilidade, são ingredientes de uma narrativa que desafia todos os intérpretes. Preso, ferido, humilhado, com os dois olhos furados pelos filisteus, Sansão desperta então um inegável sentimento de perdão e de piedade.

O cabelo voltou a crescer. Sua morte, quando destruiu o templo dos filisteus, deixou mais mortes do que mortes provocou em vida. Sansão inspirou poetas (Milton), pintores (Rubens, Van Dyck, Rembrandt), músicos (Haendel).

Dentre todas as prováveis leituras de Sansão, uma delas não escapa ao leitor contemporâneo. A exemplo das discussões ocorridas em Ricardo II, de Shakespeare, a narrativa de Sansão, que bem se amolda a um conto, pela tensão e pela rapidez, provoca discussões em torno da responsabilidade dos governantes por seus atos e por suas emoções. Fiel, apenas a si mesmo, e a suas obsessões, o nosso portentoso herói talvez se esqueceu de que tinha uma missão. Esse esquecimento, que ainda tentou redimir, é a explicação porque corremos o risco de decepcionar aqueles que em nós confiam.

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