A evolução do Direito Ambiental e a sua definição no Brasil
23 de março de 2019, 8h05
O século XX pode ser considerado como a era do despertar dos homens para o perigo que sua sobrevivência[2] sofre em razão de suas próprias atividades, da emergência da sociedade de risco[3] e do atual período que alguns geólogos cunharam, não sem alguma controvérsia, de “antropoceno”, ou seja, a transformação física da terra por ação do próprio ser humano[4]. Essa realidade, na percepção de Sachs, suscita a questão da superação dos “limites planetários”, para além dos quais as atividades humanas podem impulsionar o planeta em direção a situações desconhecidas e perigosas de desequilíbrio climático, perda da biodiversidade e mudança na composição química do ar, da terra e dos oceanos[5].
A importância da preservação ambiental recebeu impulso na segunda metade do século XX, com a publicação da obra Silent Spring, em 1962, por Carson[6], ao alertar sobre a má utilização de produtos tóxicos e seus impactos sobre o meio ambiente e o próprio ser humano; da Declaração de Estocolmo de 1972; da publicação pelo Clube de Roma de Os limites do crescimento[7]; da criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (denominada atualmente de ONU Meio Ambiente ou UN Environment), e dos atos internacionais subsequentes: o lançamento do documento “Nosso Futuro Comum” e do Relatório Bruntland em 1987, da Declaração do Rio de 1992, de Joanesburgo de 2002 (Rio+10) e do Rio de 2012 (Rio+20), da aprovação em 2015 dos “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, por meio do documento “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima de 2015 (COP 21), sucedido pelo de Marrakech de 2016 (COP 22) e de Bonn de 2017 (COP 23), apenas para citar alguns instrumentos considerados relevantes para o ambientalismo global.
A legislação ambiental brasileira evoluiu na medida que se ampliou a preocupação internacional com a necessidade de tutela do equilíbrio ambiental e dos direitos das presentes e das futuras gerações. Como refere Benjamin:
Retrospectivamente e em favor da clareza didática, podemos identificar três momentos (mais modelos do que propriamente períodos) históricos na evolução legislativo-ambiental brasileira. Não se trata de fases históricas cristalinas, apartadas, delimitadas e mutuamente excludentes. Temos, em verdade, valorações ético-jurídicas do ambiente que, embora perceptivelmente diferenciadas na forma de entender e tratar a degradação ambiental e a própria natureza, são, no plano temporal, indissociáveis, já que funcionam por combinação e sobreposição parcial, em vez de substituição pura e simples. A interpenetração é sua marca, deparando-nos com modelos legais que convivem, lado a lado — o que não dizer harmonicamente —, não obstante suas diversas filiações históricas ou filosóficas, o que, em certa medida, amplia a complexidade da interpretação e implementação dos textos normativos em vigor[8].
Para o jurista, as três fases que marcam a evolução histórica da proteção jurídica do ambiente são: a) a fase da exploração desregrada; b) a fase fragmentária; e c) a fase holística[9]. A fase da exploração desregrada tinha na omissão legislativa sua principal característica, “relegando-se eventuais conflitos ambientais ao sabor do tratamento pulverizado, assistemático e privatístico do direito de vizinhança”[10]. Na fase fragmentária foram marcantes leis como o Código Florestal de 1965; os códigos de Pesca e de Mineração, ambos de 1967; a Lei de Responsabilidade por Danos Nucleares, de 1967; a Lei do Zoneamento Industrial nas Áreas Críticas de Poluição; de 1980; e a Lei de Agrotóxicos, de 1989. Nesta fase, “o legislador já estava preocupado com largas categorias de recursos naturais, mas ainda não com o meio ambiente em si mesmo considerado”[11]. A fase holística foi inaugurada com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), “na qual o ambiente passa a ser protegido de maneira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado e com autonomia valorativa”[12].
Em decisão emblemática sobre o estado atual da disciplina jurídica ambiental pátria, ressaltou o referido ministro:
No Brasil, ao contrário de outros países, o juiz não cria obrigações de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de juízes ativistas, pois o ativismo é da lei e do texto constitucional. Felizmente nosso Judiciário não é assombrado por um oceano de lacunas ou um festival de meias-palavras legislativas. Se lacuna existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito na lei; é por ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial dos inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador[13].
Decisões, portanto, bastante progressistas tem emanado do Superior Tribunal de Justiça nesta fase holística, inserida na era das mudanças climáticas, das catástrofes causadoras de externalidades ambientais negativas e da extinção de espécies.
O Direito Ambiental pode ser conceituado, portanto, como o conjunto de princípios, regras e valores relativos ao meio ambiente como bem de uso comum do povo. Constitui-se de normas decorrentes do Direito Internacional, da Constituição Federal e da legislação ordinária que regulam atividades potencialmente danosas ao meio ambiente, visando sempre a sua proteção. Ou, como referido por Prieur, é composto de um conjunto de regras jurídicas relativas à proteção da natureza e à luta contra as poluições[14].
As atividades humanas em geral, e o Direito em particular, sempre foram centrados nos interesses e desejos do ser humano. Os bens ambientais e a vida não humana sempre foram considerados como instrumentais aos objetivos socioeconômicos da humanidade, despidos de valor intrínseco, de dignidade própria e de direitos.
A abordagem ética de “justiça ecológica”[15] da sustentabilidade reformula, a olhos vistos, a concepção antropocêntrica e individualista de dignidade, de modo que “sempre haverá como se sustentar a dignidade da própria vida de um modo geral”[16]. Bosselmann, ao defender uma perspectiva ecológica de justiça, e confirmando o aqui alegado, refere que as “diferentes abordagens à justiça ecológica têm como objetivo integrar o mundo não humano na tomada de decisões ambientais”[17].
O regime do Direito Ambiental brasileiro, consequentemente, reconhece um valor intrínseco à vida em geral (não exclusivamente humana), como se verifica, por exemplo, da vedação de qualquer tratamento cruel contra os animais no artigo 225, parágrafo 1º, inciso VI da Constituição Federal. De ressaltar que o STF, como não poderia deixar de ser, já entendeu como ilegítimas práticas tradicionais que se caracterizam como crueldade contra os animais e, com isso, declarou inconstitucionais a “rinha do galo”[18], a “farra do boi”[19] e, mais recentemente, a “vaquejada”[20].
No Direito Ambiental, como esclarecem Fensterseifer e Sarlet, “assume relevo a disputa entre ‘antropocentristas ecológicos (ou moderados)’ e ‘biocentristas (ou ecocentristas)’”. Predomina, porém, o entendimento de que o regime constitucional ambiental brasileiro esposa um antropocentrismo moderado, relativo, alargado ou “jurídico ecológico”[21], para “reconhecer o valor intrínseco e não meramente instrumental atribuído ao ser humano e a outras formas de vida não humanas e, é possível afirmar, à própria Natureza em si”[22]. Os direitos à vida e ao meio ambiente equilibrado, portanto, devem ser respeitados em uma acepção ampla, ficando vedados retrocessos inconstitucionais.
[1] De modo aprofundado sobre o tema e com base em pesquisa realizada na Columbia Law School, mais especificamente no Sabin Center for Climate Change Law e no Earth Institute ver, WEDY. Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.
[2] De acordo com Juarez Freitas, ao que tudo indica, “nos próximos milhões de anos, o planeta não será extinto. A humanidade é que corre real perigo” (In: Sustentabilidade: direito ao futuro. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 25).
[3] BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.
[4] Como advertiram Crutzen e Stoermer, em razão dos diversos impactos das atividades humanas sobre a Terra e a atmosfera, em escala global, especialmente nos últimos dois séculos, que irão perdurar por um longo período, seria apropriado enfatizar o papel central do ser humano na geologia e na ecologia pelo uso do termo “Antropoceno” para a atual era geológica (CRUTZEN, Paul J.; STOERMER, Eugene F. The “Anthropocene”. Global Change Newsletter, n. 41, p. 17-18, mai. 2000. Disponível em: <http://www.igbp.net/download/18.316f18321323470177580001401/1376383088452/NL41.pdf>. Acesso em: 13.mar.2019).
[5] SACHS, Jeffrey. The age of sustainable development. New York: Columbia University Press, 2015.p. 16.
[6] CARSON, Rachel. Silent Spring. Boston/New York: Mariner Book, 2002.
[7] BAHRENS III, William W. et al. The Limits to Growth. New York: Universe Books, 1972. Disponível em: <http://collections.dartmouth.edu/published-derivatives/meadows/pdf/meadows_ltg-001.pdf>. Acesso em: 4.nov.2015.
[8] BENJAMIN, Antonio Herman V. Introdução ao direito ambiental brasileiro. P. 41-91. In: Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental. V. I. Organizadores: MACHADO, Paulo Affonso; MILARÉ, Édis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 45.
[9] Ibid.
[10] Ibid.
[11] BENJAMIN, Antonio Herman V. Introdução ao direito ambiental brasileiro. P. 41-91. In: Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental. V. I. Organizadores: MACHADO, Paulo Affonso; MILARÉ, Édis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 45.
[12] Ibid.
[13] STJ, 2ª T., REsp 650.728/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 23/10/2007, DJe 02/12/2009.
[14] PRIEUR, Michel. Droit de l’Environnment. Paris: Dalloz, 1984. p. 17. Sobre a evolução, o conceito e a definição do direito ambiental brasileiro de modo aprofundado e com amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, consultar: WEDY, Gabriel; MOREIRA, Rafael Martins Costa. Manual de Direito Ambiental: de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.
[15] BOSSELMANN. Klaus. The Principle of Sustainability: Transforming Law and Governance. Farnham: Ashgate, 2009. p. 131.
[16] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 43.
[17] BOSSELMANN, op. cit., p. 120.
[18] “(…) A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da ‘farra do boi’ (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. Precedentes. – A proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade. – Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (‘gallus-gallus’) (STF, Pleno, ADI 1856, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26/05/2011, DJ 14/10/2011). Igualmente: STF, Pleno, ADI 3776/RN, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 14/06/2007; Pleno, ADI 2514/SC, Rel. Min. Eros Grau, j. 29/06/2005.
[19] COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’
(STF, 2ª Turma, RE 153531, Rel. Min. Francisco Rezek, Rel. p/ Ac. Min. Marco Aurélio, j. 03/06/1997, DJ 13/03/1998).
[20] “(…) VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada.
(STF, Pleno, ADI 4983, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 06/10/2017). Cabe mencionar que, em reação a este julgado do STF, foi criada a Lei n. 13.364/2016, que eleva “o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial”. Além disso, a pressão daqueles que se sentiram prejudicados com a decisão do STF conduziu à aprovação da emenda constitucional n. 96 de 2016, que acrescentou o § 7º ao art. 255 da Constituição Federal, com a seguinte redação: “Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”. Esses dispositivos certamente serão objeto de novo questionamento de constitucionalidade perante o STF.
[21] FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Princípios do Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 61.
[22] Ibid.; p. 61-62.
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