Diário de Classe

O diálogo Críton de Platão e o árduo combate ao ativismo judicial

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  • é advogado mestrando em Direito Público – Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos – pelo programa de pós-graduação da Unisinos membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-RS membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e membro do DASEIN (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) coordenado pelo professor Lenio Luiz Streck.

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  • é graduando do curso de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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26 de janeiro de 2019, 7h00

No diálogo Críton, ou o Dever, Platão, através de Sócrates, nos ensina porque devemos respeitar as decisões judiciais mesmo que, aparentemente, sejam injustas. O diálogo se passa na prisão, após Sócrates ter sido condenado à morte. O problema central deste diálogo é saber se é correto e justo o (des)cumprimento desta sentença.

Sócrates, na cadeia, aguarda a execução da sentença condenatória. Enquanto isso, Críton e outros amigos de Sócrates tentaram lhe persuadir para que ele fugisse. Entretanto, Sócrates se manteve firme no seu proceder, afirmando que obedeceria às leis e à cidade, mesmo discordando da justiça da decisão.

Críton faz uso de três argumentos para persuadir Sócrates a fugir da cadeia, a saber: primeiro, Sócrates é um amigo sem igual para ele; segundo, a reputação de Críton será maculada, pois o povo comentará que este tinha condições de providenciar a fuga de Sócrates, mas preferiu poupar seu dinheiro em vez de salvar seu amigo; por fim, tendo esposa e filhos para criar e, mesmo assim, escolhendo cumprir a pena de morte quando poderia fugir, Sócrates opta por abandonar sua família.

Contra o argumento de que a reputação dos seus amigos será maculada, Sócrates diz que não é a toda opinião que se deve prestar atenção, mas somente à opinião qualificada. Para demonstrar isso, cita o exemplo de um atleta e de seu técnico, em que questiona se, para cuidar do corpo, o atleta deve obedecer ao técnico ou à opinião da multidão. A partir disso, faz uma analogia às leis e à cidade, pois elas representam a opinião qualificada sobre a justiça (mesmo que, aparentemente, injustas) e, se é o corpo do atleta que pagará pela desobediência às ordens do técnico, será a alma de Sócrates que sofrerá os prejuízos do descumprimento das leis humanas no Hades.

Além disso, desrespeitar às leis será enfraquecer as instituições da cidade. Sócrates diz que não devemos cometer injustiças voluntariamente nem retribuir a injustiça com a injustiça. Pois não há diferença entre cometer o mal e uma injustiça.

Sócrates cria uma ficção, um diálogo seu com as leis e a cidade. São elas que lhe apresentam as decorrências do seu posicionamento (de Sócrates): uma convenção (as leis da cidade) deve ser cumprida, mesmo que injusta; descumprir a lei, mesmo que injusta, é cometer injustiça (e não devemos retribuir a injustiça com outra injustiça). Ao invés da desobediência, quem não estiver satisfeito com as convenções da sua cidade deverá modificá-las através do Direito. Por fim, além da oportunidade de modificar as leis pelo Direito, quem não conseguir fazer isso e ainda estiver em desacordo com elas poderá ir embora da cidade.

O diálogo de Críton é importantíssimo para ilustrar o que ocorre no atual cenário jurídico do país. Podemos afirmar que a democracia tem seus bônus e, por sua vez, também seus ônus. Portanto, sempre existirá um elemento de princípio que jamais pode ser violado. Eis a questão: qual seria este elemento de princípio que jamais poderá ser violado? O respeito às regras preestabelecidas. Todavia, em tempos de ativismos judicial desenfreado, é impossível que se mantenha a integridade de regras preestabelecidas.

Devemos recordar nesta sala de aula que o professor Streck sempre advertiu que o ativismo está ancorado em um utilitarismo supostamente moral e na vontade de quem o pratica, o que se torna uma ameaça extremamente perigosa ao regime democrático. Portanto, podemos afirmar que a violação da Constituição Federal é sempre uma ameaça à democracia[1].

Aqui se faz importante uma observação, a fim de evitar velhas confusões: o cumprimento da lei e o respeito ao texto legislativo nada têm a ver com positivismo, como parecem sugerir as tão frequentes quanto equivocadas interpretações de, sobretudo, autores como Kelsen. O positivismo exegético do século XIX, na França, propugnava um juiz bouche de la loi, mas o fato é que o positivismo jurídico, em suas vertentes modernas e contemporâneas, não passa pela aplicação da lei; sequer passa por uma teoria da decisão. Respeitar o texto legislativo não se trata de exegetismo; é uma questão de princípio, de democracia e institucionalidade. Sobre isso, ver o verbete Positivismo jurídico, do Dicionário de Hermenêutica de Streck.

Magistrados que não estiverem satisfeitos com as regras preestabelecidas devem abandonar a toga e ir para o parlamento tentar modificá-las. Sempre lembrando que, caso não consigam modificá-las e ainda estiverem em desacordo com tais regras, ainda existirá a possibilidade de irem embora da cidade.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 258

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